Todos os anos se fala de professores, ou porque são muitos, ou porque são poucos. E estes seres nunca estão contentes com o que têm, sempre a reclamar, sempre com greves à sexta-feira. Afinal o que querem eles? Têm três meses de férias, já para não falar do Natal e da Páscoa, passam o dia sentados e ganham muito bem para o que fazem.

Isto é o que eu ouço frequentemente, e porque de tantas vezes se repetir uma coisa ela torna-se banal.

Hoje em dia, em qualquer situação, as pessoas são números, e logo eu que sou alérgica à matemática também sou um número. O que muitas vezes nos esquecemos é que por detrás de um número existe uma pessoa, que tem família, amigos, cão, gato e um periquito talvez. Certo dia vi uma reportagem sobre professores deslocados. Sim, também já o fui, mas naquela altura da minha vida gostei, gostei de viver em outras cidades, conhecer novas realidades, novas pessoas. Quando se está a começar faz todo o sentido, sair do conforto da casa dos pais. E foi uma experiência maravilhosa. A diferença é que nessa reportagem os intervenientes não tinham vinte e tal anos, tinham todos mais de trinta, quarenta talvez. Quase todas as histórias eram tocadas pela solidão e pela tristeza, porque recomeçar todos os anos é difícil. Imaginem se tivessem de mudar de local de trabalho ano após ano, se tivessem de mudar de casa todos os anos, de cidade… uma professora nessa reportagem disse que a sua vida estava guardada em caixas e que a única companhia era o cão. Fiquei triste por ela, e por todos os outros na mesma situação. E feliz por mim, por ter tomado a decisão certa, embora por vezes possa não parecer… “ah! se não tivesse recusado aquela renovação de contrato a trezentos e tal quilómetros de casa podia ter tido uma hipótese de vincular”, mas teria perdido vínculos mais importantes, momentos únicos que jamais se repetirão. As primeiras palavras dos meus filhos, os seus primeiros passos, os seus sorrisos, os seus abraços, as histórias antes de dormir e os momentos em família e com amigos também! A vida não é para estar fechada dentro de caixas, nem para estar a trezentos ou a seiscentos quilómetros, nem para ser adiada. Ouvi tantas vezes: “quando tiver estabilidade faço isto, faço aquilo…” e se já for tarde demais?

Somos milhares de professores, somos milhares de números, mas cada número representa sonhos adiados, alguns pais de fim de semana, projetos esquecidos, vidas dentro de caixas, horas de solidão. Vi colegas que todas as segundas deixavam os filhos para trás, casais separados pela distância. Ser professor não é ser um número, é ser Humano. Um número não cria laços com as pessoas, com os alunos, com os colegas, com os funcionários, com a comunidade escolar. A escola não é a nossa segunda casa? Em casa existem regras, mas também existem afetos e preocupações. Como em qualquer casa, as pessoas que lá habitam têm

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personalidades diferentes, umas são mais perfeitas que outras, porque somos pessoas e não números.

Já vos disse que a minha memória é alérgica a números? Por isso, o que ela retém destes quinze anos de trabalho são as pequenas grandes coisas que vão muito para além dos números e das taxas e relatórios infindáveis de (in)sucesso. Nessas taxas não aparece o Tiago, aluno de um curso profissional, que não ligava a mínima às aulas de Português, mas que um dia quando abordei o 25 de abril na aula foi o mais interessado e participativo (sejamos honestos se eu tivesse trabalhado a noite inteira numa padaria para ajudar a minha mãe a criar os meus irmãos, também não queria saber de funções sintáticas para nada). Nesses números também não aparece o Ricardo que disse violentamente que me cortava o pescoço (e naquele momento desejei que o teletransporte fosse uma realidade) porque o ambiente em casa não era dos melhores, mas que era o primeiro a ajudar os colegas de cadeiras de rodas nos dias de chuva. Os números não falam da Ana e do seu sorriso contagiante que afinal escondia uma história obscura de abusos sexuais; nem do Miguel, autista, que no final do ano se despediu de mim com um grande abraço, ou do João que após a separação dos pais tinha sido “depositado” em casa dos avós, porque os progenitores (atenção que não escrevi “pais”) tinham formado novas famílias, com novos filhos e ele era um estorvo… como será que está o João agora? Ele que no meio disto tudo foi o menos culpado e o mais prejudicado. E o Manuel? Que após alguns recados na caderneta devido a mau comportamento, recebo uma mensagem do encarregado de educação para não me preocupar porque o futuro do filho já estava traçado: a prisão! E a Tatiana? Que um dia disse que me queria mostrar uma coisa, e quando levantou as mangas da camisola tinha os braços cortados?

Os números não sabem que há miúdos que só comem na escola, sim já todos ouvimos isto, mas passa sempre ao lado porque nunca vimos. Até o dia em que vamos parar a uma escola (quase) no meio do nada e vemos a vontade com que um rapaz come um prato de arroz e depois repete o segundo e o terceiro… E também há os que só têm a oportunidade de tomar banho lá, e os que não sabem as regras básicas de higiene ou como se comportar em sociedade, porque nunca lhes foi ensinado. Queria ver um número a ensinar isso, em 45 minutos semanais, a um rapaz que passava o tempo todo com a cabeça enfiada dentro da camisola… ou aos outros dois rapazes que preferiam contar-me como assaltavam carros, roubavam motas e compravam droga.

Os números não apoiam as mães adolescentes, nem identificam as depressões, os desaparecimentos, o abandono, a violência doméstica, nem confortam quando um familiar próximo está doente, não dão esperança, não dão um abraço quando é preciso, nem limpam as lágrimas se for necessário. Não dizem que eles são capazes, que podem ter um futuro melhor

se estudarem, mesmo que seja difícil, mesmo que quem esteja à espera deles em casa não considere isso importante. Também não ouvem os dramas juvenis dos primeiros amores, nem a professora a dizer “não se preocupem porque quando perdem um autocarro, logo a seguir vem outro e com ar condicionado”. Os números não dizem às adolescentes que elas são bonitas e que aquelas fotos que aparecem nas redes sociais não são bem o que parecem, não tentam encontrar um vestido para o baile de finalistas para que ninguém fique de fora, nem compram casacos e botas e sapatilhas para o frio, não emprestam livros, nem planeiam visitas de estudo, porque não sabem que por vezes é a única forma de alguns meninos saírem da terra onde vivem.

E porque um número é e será sempre apenas um algarismo, nunca saberá o que é cumplicidade. Um número nunca interromperia uma aula para falar sobre a morte e a vida, porque nunca entenderia que naquele momento era mais importante para a turma falar sobre o suicídio de um colega da escola do que cumprir o programa. Se eu fosse um número a minha colega Liliana não teria andado mais dez quilómetros durante um mês para me dar boleia quando tive um acidente de automóvel, nem a Elisabete me teria apoiado quando me aventurei numa nova disciplina, nem as colegas da ES Mem Martins teriam trocado aulas comigo para que eu “fosse de fim de semana” para o Porto mais cedo. Não teria partilhado bons momentos com os colegas da ES D. Dinis e do AE de Aljezur, momentos que fizeram com que não sentisse a tal solidão de chegar a um sítio e não conhecer absolutamente ninguém. A D. Rosa nunca me teria embrulhado as sandes em papel de alumínio “porque, menina professora, assim é mais fácil de transportar no comboio”, a D. Antónia nunca saberia que gosto de tomar pela manhã meia de leite, a D. Ana nunca me teria guardado a pen vermelha que deixava sempre no computador da sala, a D. Maria nunca me teria fotocopiado os testes em cima da hora, porque entendia que tirar um mestrado e trabalhar era complicado.

Ser professor não é ser um número, porque se assim fosse a Mariana nunca me teria enviado as fitas de final de curso por correio para assinar, não me teria emocionado (e vá lá, ter deixado discretamente uma lágrima cair) numa reunião de encarregados de educação online em plena pandemia, nem teria ouvido e lido palavras tão bonitas por parte dos alunos ao longo destes anos, nem teria escutado “obrigado por não desistir de nós”, nem me teriam deixado fatias de bolo e flores em cima da secretária. Os números não comem bolos, nem cheiram flores, pois não sabem o que perdem!

Tânia Santos Professora contratada de Português e Espanhol no AE Paço de Sousa, Penafiel (e um número desde 2006)

Nota: Os nomes dos alunos são fictícios.