Geralmente os seres humanos não conseguem gerir bem a diferença e a mudança. Na contemporaneidade, os discursos brotam no sentido de aprendermos, precisamente, a estarmos atentos a um mundo novo, que é complexo, dinâmico, matizado, multidimensional; ainda assim, os comportamentos pautam-se por hábitos de um certo conservadorismo, onde o outro é costumeiramente um estranho, alguém excêntrico do qual devemos sempre suspeitar. Existe, pois, uma espécie de dissonância cognitiva nas sociedades atuais entre o pensamento ou a atitude e as ações levadas a cabo pelos seus cidadãos.
O que tenho percebido, todavia, é que quando esta dissonância ocorre ao nível da temática da imigração e da presença e da conduta dos imigrantes, aplica-se um provérbio popular, de resto bastante tradicional. Lamentando desde já algum prosaísmo, aqui vai: “pimenta no cú dos outros é refresco”. E aliado a este adágio surge outra ideia, a de que as realidades mais “periclitantes” estão sempre longe, nunca alcançando o espaço em que nos encontramos. O insólito nunca é cá e nunca é nosso, por isso reservamo-nos o direito de propagar chuvas de ideias sobre o que acontece lá fora e com outras pessoas. Pelo que, quando os fenómenos cá chegam, não sabemos muito bem o que são ou como lidar com eles.
Como jovem que nasceu e sempre viveu em território português, nunca ouvi falar tanto de imigração como nestes últimos tempos – e, especificamente, como nestas últimas eleições europeias. Até há pouco tempo, Portugal nunca sofrera de um mal-estar e dos problemas concretos que outros países europeus enfrentam há vários anos. Talvez porque a população imigrante no nosso país fosse, proporcionalmente, mais reduzida do que em França ou na Alemanha, por exemplo, ou porque tínhamos uma representação de sermos um povo caloroso e afetivo, nunca nos preocupámos muito com quem entrava neste jardim à beira-mar plantado.
Agora, com a crescente chegada de novos imigrantes, de repente, deparámo-nos com um facto social que parecemos encarar como imprevisível, quando poderíamos ter olhado para as causas, os efeitos e as medidas tomadas dentro do nosso próprio continente. Tornamo-nos hostis para com uma imigração que desembarca em busca de melhores condições de vida e maior segurança, e que já deu provas do seu trabalho. E, destarte, geramos os sintomas para uma imigração que, por não termos calculado, se tornou mal prevista e, consequentemente, mal acarinhada e mal cuidada.
Sou filho de um pai português e de uma mãe brasileira, portanto, imigrante que chegou a Portugal há mais de 30 anos e que, como milhões de nacionais e estrangeiros, contribuiu para o desenvolvimento de um país que, na altura, ainda convivia “bem” com as suas ruralidades e demorava a atingir a marca do progressismo. Por já estar cá há tanto tempo ela presenciou dificuldades ligadas ao anterior Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou com uma discriminação de um contexto ainda relativamente preso a alguma aversão ao imigrante. No entanto, também a minha mãe não se lembra de se falar tanto daquilo que os imigrantes são ou deixam de ser nem de sentir tamanha tensão que tem sido produzida e difundida na sociedade.
Haver um espaço legitimado para a propagação de um discurso estereotipado sobre o imigrante é o que dá gás a esta angústia coletiva. Ninguém diz que não devam existir regras para quem entra no país, pois se tudo na vida implica normas e procedimentos não existe razão particular para que o fenómeno migratório seja negligenciado ou olhado sem atenção. Não obstante, parece que, em prol da nossa fobia às nacionalidades não europeias, nos estamos a esquecer de quem somos. A nossa própria identidade, de povo calmo, seguro, cordato, hospitaleiro, que promovíamos por todo o lado, está a ser substituída por práticas arruaceiras e agressivas, ou seja, nada pacíficas e nem sequer cientificamente fundamentadas.
O português “verdadeiro” não existe, nem geneticamente, nem socialmente, sendo antes um conceito abstrato criado para sustentar as vozes dos mais extremistas. Para quem passa tanto tempo a insuflar a teoria da Grande Substituição – e eles sabem quem são – resta-me perguntar: de tão nacionalistas que se afirmam, como podem conceber estarem a eliminar uma dimensão tão grandiosa da nossa identidade portuguesa como recebermos bem e tratarmos bem quem vem de fora?