Há uma diferença grande entre violência e agressividade. Ambas são movidas pela raiva, num primeiro momento. Uma e outra tendem a ser, aparentemente, impulsivas. E as duas são formas de “expulsar” de dentro para fora de nós — sobre outra pessoa, de preferência — uma amálgama de sentimentos maus como se, com esse vómito azedo, agressividade e violência tivessem uma função catártica. E ajudassem a limpar, por dentro, aquilo que nos dói ou nos magoa.

Há, no entanto, algumas diferenças fundamentais entre violência e agressividade. Desde logo, a gravidade daquilo que se manifesta. A violência expressa uma destrutividade corrosiva. Sem acesso a experiências de culpa ou a gestos de reparação. Acompanhada de uma veleidade de supremacia de quem violenta sobre quem é violentado. E tanta, mas tanta raiva contida — acompanhada por repugnância, desprezo e rancor — que aquilo que parecia ser “só” raiva não deixa de se manifestar, sobretudo, como ódio. Desmedido!

A raiva, acaba por ser, ela também, a “correia de transmissão” desde o que se sente até à agressividade que se manifesta. Gera um movimento, irreflectido, de fúria. Diz-se aquilo que se sabe que magoa, num ímpeto, e de rompante. Mas, de seguida, leva à consciência da forma como trouxemos dor a quem prezamos ou a quem amamos. Por isso, a agressividade ajuda-nos a perceber que um impulso nos orienta, muitas vezes, para descobrir a bondade.

É claro que quer a agressividade como a violência, depois de manifestadas em jacto, desencadeiam uma consciência daquilo que se fez. Que vem acompanhada de vergonha. Só que enquanto a agressividade apela, depois de um impulso, à procura da desculpa, à proximidade e à transformação, na violência a vergonha mascara-se de arrogância. E é associada a um sentimento de euforia e de triunfo. E à repetição do gesto de violência como forma de imputar a quem é violentado a culpa pelos actos compulsivos com que a violenta.

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A agressividade é um antidepressivo. E um ansiolítico. Surge como estabilizador de humor diante do medo, por exemplo. Ou quando nos sentimos contrariados. Ou decepcionados. Na verdade, é um mecanismo de defesa. Reflexo. Espontâneo. Muitas vezes, impulsivo. Mas é, também, um património da humanidade. Porque é da forma como vivemos a agressividade e a sublimamos através da rivalidade ou do jogo, que aprendemos a vivê-la com lealdade  e com maneiras. A urbanidade conquista-se com a sublimação da agressividade. E a democracia, também. A vinculação e a ternura são territórios conquistados à agressividade. E a sexualidade de um casal, por exemplo, é um inacreditável exemplo da forma como a agressividade que se sublima é colocada ao serviço da paixão e do amor.

Mas talvez tenhamos sido todos muito mal educados para a agressividade. As crianças são demasiado sedentárias, aleijam-se pouco, sujam-se pouco e jogam pouco à bulha, por exemplo. E tirando a actividade e a competição desportiva, aprendem pouco a usar a agressividade dentro dum perímetro de regras que as ensine a perder e a ganhar. E, com isso, que lhes traga  a humildade, a perseverança ou a convicção de irem atrás de uma vitória por mais que tenham tido várias derrotas até lá chegarem. Por outro lado, as crianças perdem pouco, na escola. E as experiências de jogo a que acedem passam, sobretudo, pelo digital. Onde os enredos são desajustados às suas idades. E são, invariavelmente, convidadas ao impulso e à violência. Que as “educam” mais para a violência do que para a agressividade.

E, sobretudo, as famílias são, muitas vezes, um mau exemplo da forma como as pessoas usam o conflito como uma ponte ao serviço da aprendizagem de formas “arredondadas” de viver a sexualidade. E de passar dela à admiração e ao respeito. À consciência do reconhecimento do efeito dos nossos actos nos outros. E à capacidade de passarmos a escutar. A sermos empáticos. A negociar. A decidir em parceria e de forma colegial. São mais frequentes as situações de fúria explosiva e fracturante duma família. As circunstâncias de silêncio espesso e inacessível. Ou os amuos que nos imputam culpas indecifráveis. E a forma como, depois, não se fala sobre nada disso. Nem se aproveitam os momentos infelizes para crescermos com eles. E essas imagens ficam presas ao serviço do medo. Tornam as pessoas assustadas. E atormentadas. Os traumatismos fazem-se de imagens de agressividade contida que, por vezes, gota a gota, constroem a violência.

É verdade que a agressividade é saudável. E que o pensamento e a liberdade não florescem sem a agressividade Mas é, também, verdade que só os seres humanos são violentos. E que a violência não traz consigo nem reflexão nem crescimento. Antes perpetua uma fuga para a frente que flagela terceiros a propósito de confabulações ou de derivas supremacistas, tirânicas ou hegemónicas que, repetidamente, promovem o sofrimento. E que perseguem. Sem culpa. Sem reparação. E com indiferença.

Se as experiências de agressividade que se reciclam e se transformam contribuem para que a agressividade se lapide e se eduque, é verdade que com a violência não sucede assim. Por mais que a violência humana comece na família. Não só com os maus tratos físicos (que, em muitas circunstâncias, expuseram muitas crianças a experiências de quase-morte). Mas, também, com exposição ao abandono. Com experiências de humilhação e de ultraje. Ou com os mais diversos tipos de abuso. Que, em muitas circunstâncias, não são acompanhadas por relações que tragam nem que seja um pequeno contraponto de bondade por parte de alguém.

As experiências de maus tratos não desencadeiam, regra geral, agitação, irritabilidade ou experiências anti-sociais. Como qualquer traumatismo, ficam guardadas para as relações mais próximas e mais íntimas que venham no futuro. Porque é sobre elas que são depositadas as maiores expectativas de reparação de todos os sofrimentos sem nome que se acumularam. E é justamente por isso que elas parecem repercutir e amplificar todo o sofrimento que se acumulou. Porque a expectativa de que elas branqueiem todas as dores e cicatrizes fica comprometida.

Compreender que a violência começa na família não justifica que ela tenha atenuantes, quando se trata de a enquadrarmos socialmente. A violência doméstica é, felizmente, um crime público. Porque a protecção dos valores da humanidade e da urbanidade são um compromisso de todos. Que, depois, quem promove a violência se faça de vítima, alegue cabalas ou se refugie em adereços narcísicos isso são só manifestações colaterias de quem promove a violência a coberto do olhar dos outros. E que não deixa de ser, simplesmente, cobarde. Um violentador é uma pessoa de mil caras. Tão depressa abusa, agride, humilha ou amarfanha. Como, a seguir, se corrói com inúmeros: “o que é que eu fiz?”, com que finge uma culpabilidade que não tem. Como, a seguir, projecta a culpa pelos seus actos na pessoa que vitimizou. E os repete. E os repete. Para que, sempre que ela dá um vislumbre de autonomia e de coragem, se humilhar, se despojar e suplicar por uma última oportunidade de mudança. Para que, ao descobrir que os seus propósitos manipulatórios fracassaram, intimide, insinue e difame. E, por fim, cultive ódio por quem vitimizou. Enquanto procura outra pessoa frágil junto de quem replique tudo, uma outra vez.

A violência na família não é doméstica. É selvagem! Por mais que decorra em contexto doméstico. A violência na família — e jamais a confundamos com a agressividade — é um crime de ódio. Que não pode merecer julgamentos púbicos ou milícias justiceiras. Mas tem que suscitar atitudes públicas claras, serenas, musculadas e justas sem as quais quem vitima parece ganhar mais do que era suposto que acontecesse. E quem é vitimizado tem nas distracções de quem não denuncia, as cumplicidades improváveis com a violência que só o tornam mais só, mais abandonado e mais vítima, ainda.