Gisèle Pelicot mostrou-nos que há heróis na vida real. A coragem ganhou um sinónimo novo. Não só para todas as mulheres, mas especialmente para as mulheres.
A vergonha é algo que nos colam ao género, até quando somos vítimas. Quantas de nós fomos traídas e sentimos vergonha? Quantas de nós fomos assediadas e sentimos vergonha? Quantas de nós fomos abusadas e violentadas, física ou emocionalmente, e sentimos vergonha?
Vergonha de assumir, vergonha de falar, vergonha de apontar o dedo. Sim, não é só medo. É, essencialmente, a vergonha que nos remete ao silêncio. Infelizmente, há demasiadas mulheres que nunca falaram dos abusos que sofreram porque sentiram vergonha.
A mulher aprendeu a sentir vergonha até daquilo que deseja ser. Foi sempre a vergonha que se ergueu como um muro intransponível no caminho de tantos direitos. Muros que foram sendo derrubados ao sabor da coragem de tantas mulheres que esqueceram a vergonha. Ainda assim, mesmo hoje, numa sociedade que se devia obrigar a derrubar preconceitos e a lutar pela igualdade de oportunidades, uma mulher livre que deseje ter poder, fama ou dinheiro, que deseje casar ou não casar, ser mãe ou não ser, exprimir a sua sexualidade, fazer o que quiser com o seu corpo, ainda pondera (demasiado) se deve e o que deve. E sim, é essencialmente por vergonha que se castra e se limita. Não tanto por medo (ou falta de coragem, como lhe queiram chamar).
Gisèle Pelicot podia ter optado pelo anonimato, ou por se esconder atrás de uns óculos escuros ou de um chapéu ou até de um porta-voz. Mas não. Surgiu, sem vergonha e cheia de humanidade, a mostrar que quem merece sentir vergonha não é ela, uma mulher abusada e violentada de forma torpe e chocante, mas sim quem a violentou.
A justiça que Gisèle Pelicot fez a si própria e a milhares de mulheres pelo mundo fora, é muito maior do que qualquer justiça que os tribunais consigam fazer-lhe.
É deste feminismo que precisamos. De mulheres e de homens. É preciso ser feminista, sublinho eu. E ser feminista tem pouco que ver o soutien na gaveta e dar liberdade aos mamilos. É preciso sê-lo com orgulho, com liberdade e com sentido de responsabilidade. E com muita coragem.
Porque os factos, não as opiniões, são alarmantes. A violência contra mulheres deve incomodar toda a gente, de todas os quadrantes, de todas as idades, de todos os géneros. A violência contra as mulheres deve ser afastada, prevenida e condenada e nunca, mitigada, desvalorizada ou até normalizada.
Acima de tudo, nós mulheres precisamos deixar a vergonha de lado e nos lembrarmos desta mulher incrível que deu uma lição ao mundo. Somos todas Gisèle Pelicot.