O tema da legitimidade e soberania de Taiwan é amplamente noticiado e debatido no atual quadro da intimidação Chinesa dirigida a este estado. Constantes ameaças de uso de força militar para anexar Taiwan por parte de Xi Jinping, são pronta e resolutamente contrariadas por Joseph Biden que, por sua vez, promete não poupar esforços militares para proteger a ilha.[1] Nesta escalada de tensão, reminiscente da guerra fria, aproximam-se as eleições autárquicas em Taiwan. No run-up para as eleições locais, que se realizaram no sábado, 26 de novembro,  e apesar da chuva forte, os candidatos saem à rua em campanha pelas diferentes autarquias do estado insular, na esperança de conquistar o favor desta população distinta e com uma história intrincada.

A importância destas eleições autárquicas será deveras mais significativa do que possa parecer para olhos alheios à complexa história de Taiwan. Torna-se necessário compreender o impacto desta história no panorama político atual, na posição e opinião do eleitorado e, em última análise, no futuro deste estado singular. Através da observação da guerra civil chinesa, da fundação da República da China (ROC, vulgo Taiwan, ex Formosa), e da transição para a democracia moderna, a situação política de Taiwan pode ser compreendida de forma mais integrada e global.

Guerra Civil Chinesa:  As origens de Taiwan como uma identidade política

No ano de 1927, Chiang Kai-Shek, o líder do Partido Nacionalista Chinês Kuomintang (KMT), e sucessor do médico seu fundador Sun Yat-sen, liderou uma campanha militar que é hoje conhecida como “A Expedição do Norte” (北伐战争).[2] Esta expedição foi uma marcha militar com o objetivo de destronar o poder que então governava a nação — os chamados Senhores da Guerra, que mantinham a China sob o domínio de um poder feudal fraturado e com inúmeras facções rivais. As forças nacionalistas aliaram-se então ao Partido Comunista Chinês (PCC), formando a Primeira Frente Unida.

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O alcance da unificação da nação e a derrota dos Senhores da Guerra não trouxe paz duradoura. A diferença ideológica entre o PCC e o KMT levaram à continuação da guerra civil entre estas duas facções. Apesar de cooperarem, por motivos de necessidade maior, durante a invasão japonesa e a Segunda Guerra Mundial, os dois partidos voltaram à luta pelo poder em 1945. Com a União Soviética a fornecer ajuda ao PCC e o KMT a receber apoio dos Estados Unidos, a China tornou-se um dos palcos para a guerra fria, conflito ideológico que duraria várias décadas.[3] A 1 de Outubro de 1949 o PCC, segundo maior movimento político na China de então, e liderado pelo ativista político Mao Zedong, saiu vitorioso e instaurou a República Popular da China, continuando no governo até aos dias de hoje. Neste processo, o KMT perdeu o domínio sobre a maior parte do território, saindo completamente derrotado. Chiang Kai-Shek viu-se então expulso do território nacional, com poder militar diminuído face ao PCC.

O último encontro entre Mao Zedong e Chiang Kai-Shek (Jack Wilkes, 1945)

Sem qualquer autoridade no território continental, Chiang Kai-Shek, 600 000 tropas, e cerca de dois milhões de refugiados simpatizantes do movimento nacionalista, refugiaram-se na ilha de Taiwan. Em dezembro de 1949, Chiang Kai-Shek proclamou Taipei como a capital provisória da República da China, e declarou o direito do KMT como autoridade legítima de toda a China.[4] Contudo a República Popular da China também reclamava este direito à governação. No seguimento da proclamação de Taipei como capital provisória da China, havia especulação sobre a possível ocupação de Taiwan pela República Popular da China. Neste contexto, o Presidente Americano Harry Truman ordenou à sétima esquadra dos Estados Unidos que evitasse uma invasão comunista. As quatro décadas seguintes seriam determinantes para o futuro de Taiwan.

Desenvolvimento, Reforma Económica e Ditadura

Após a sua retirada para Taiwan, o KMT tomou posse do governo, de instituições públicas e departamentos civis. O partido via o seu exílio como um período temporário, e esperava retomar o acesso e domínio do território continental em 5 anos. Como consequência desta linha de pensamento, a prioridade do governo em Taiwan era fazer crescer o poderio militar e adquirir o armamento e recursos necessários para o conflito, prioridade esta que era considerada essencial, acima de qualquer desenvolvimento económico. No entanto, a hiperinflação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial fazia-se sentir na China e Taiwan de forma severa. Então o KMT foi obrigado a efetuar uma série de reformas económicas para consolidar o seu governo na ilha.

O partido tomou conta dos monopólios industriais em Taiwan, abandonados depois da ocupação japonesa da ilha durante a guerra. Cerca de 17% da economia foi nacionalizada; o ouro que o KMT tinha trazido consigo da China continental, aquando da sua retirada para Taiwan (cerca de 114 toneladas) foi utilizado como reserva para estabilizar a criação do novo dólar de Taiwan e pôr fim à hiperinflação. Estas medidas deram origem ao processo de reconstrução pós-guerra, e a novas reformas governamentais. Entre estas foi criado o programa de reforma agrícola, que redistribuiu a terra por pequenos produtores e aliviou impostos sobre esta indústria ao longo da década de 1950. Com a chegada de outros empreendedores da China continental, a ilha sofreu um período de transição de uma economia maioritariamente agrícola para uma economia comercial e industrializada. Os Estados Unidos contribuíram de forma substancial para o desenvolvimento económico de Taiwan, chegando mesmo a injetar 1.5 mil milhões de dólares em ajuda económica.[5]

Memorial a Chiang Kai-Shek, Taipei

As reformas no sector económico levaram a que Taiwan se tornasse uma forte potência de exportação, fenómeno que lhe garantiu um lugar entre os quatro “Tigres Asiáticos” — quatro estados que são caracterizados pela estabilidade social e económica (sendo os outros três, Coreia do Sul, Hong Kong e Singapura). Apesar deste desenvolvimento, o panorama político de Taiwan caracterizou-se, durante décadas, por um quadro de repressão e ditadura. Em 1949, o KMT declarou a lei marcial com a justificação de prevenir uma rebelião ou golpe comunista. Este período de lei marcial, que durou até ao ano de 1992, é conhecido como 白色恐怖 (terror branco).[6] Durante 4 décadas, o governo perseguiu dissidentes, críticos ou quaisquer organizações que pudessem vir a subverter o regime. Mecanismos de tortura diversos foram utilizados, assim como mecanismos de vigilância em massa. É estimado que entre 3000 e 4000 cidadãos civis tenham sido executados durante este período. Contudo, a resistência ao regime começou a aumentar, e o seu poder, apesar de consolidado, não estava livre de ameaça.

Transição para a Democracia

Chiang Kai-Shek faleceu em 1975, sendo sucedido pelo seu filho Chiang Ching-Kuo. Este tinha sido líder da polícia secreta do regime, mas reconhecia a importância de apoio internacional para o desenvolvimento de Taiwan (ROC). Ao longo da sua administração, Chiang Ching-Kuo permitiu um alívio das restrições políticas e sociais. Dissidentes deixaram de ser perseguidos e novas ideias começaram a ser discutidas. No entanto, só em 1986 foi fundado o Partido Democrático Progressista (PDP), partido que até hoje é a principal oposição ao KMT. Com aquelas medidas, o KMT permitiu a transição para a democracia de forma gradual, sem abrir mão de continuar a governar. As eleições do ano 2000 marcaram o final da hegemonia do KMT como governo. Desde aí, estes partidos têm alternado no governo de Taiwan, embora com mais vitórias para o PDP.

Os acontecimentos que levaram Taiwan até à democracia têm, portanto, um impacto claro no panorama político de hoje. As eleições autárquicas que se aproximam marcam um período importante face à ameaça de invasão pela República Popular da China. É conhecimento comum que a China procura influenciar o resultado de eleições em Taiwan ao nível local, para que, futuras eleições legislativas tragam políticas de atitude amigável e aberta em relação à China.[7] Através das redes sociais, a China pretende alimentar a polarização com o objetivo de influenciar certos segmentos da população em Taiwan a votar a favor de políticas mais relacionadas com a reunificação. Temas controversos como a reunificação com a China continental, a possibilidade de invasão e a preservação da sociedade democrática, são fatores com grande carga histórica, que terão peso significativo nas eleições. Este legado histórico nas suas várias formas, será, possivelmente, o maior fator de mobilização do eleitorado.

Chiang Wan-An, bisneto de Chiang Kai-Shek e candidato a presidente da Câmara de Taipei (George Tsorng, 2018)

[1] Wong, T., (2022). “Biden Vows to Defend Taiwan in Apparent US Policy Shift”, BBC News
[2] Jordan, D., (1976). “The Northern Expedition: China’s National Revolution of 1926-1928” University of Hawai’i Press
[3] Kennedy, A., (2008). “Can the Weak Defeat the Strong? Mao´s Evolving Approach to Asymmetric Warfare in Yan´nan” The China Quarterly, no. 126
[4] Chang, C., (2000). “From the Marches, a Capital is Born –The Story of Taipei ” Taipei Panorama
[5] Yan, H., (2020). “Analysis of Taiwanese Economic History and Policies” Berkeley Economic Review
[6]Cheung, H., (2016). “Taiwan in Time: The precursor to Total Control” Taipei Times
[7] Sando, B., (2022). “Taiwan Local Elections are Where China´s Disinformation Strategies Begin” Council on Foreign Relations