As novas formas de entretenimento digital estão cada vez mais disponíveis nas pequenas palmas das mãos das nossas crianças. Embora seja recomendada a sua evicção ou limitação horária por médicos, pediatras e neurocientistas, há cada vez mais bebés e crianças expostos a conteúdos que promovem uma alienação da realidade e a um novo fenómeno que eu normalmente designo techsitting.
Essa alienação da realidade ocorre, na maior parte das vezes, ainda no primeiro ano de vida, como recurso a auxiliar nas primeiras refeições do bebé: um género de bobo da corte digital para o rei que está sentado no seu trono a ser alimentado por um serviçal. O techsitting – essa nova arte, provida de cor e efeitos psicadélicos com uma música estridente – é sinónimo de uma hiperestimulação, acompanhada de uma inconsciente absorção alimentar e que termina com um grato agradecimento a el-rei, com palmas, pela ingestão de doses descomunais de comida.
Como esta estratégia resulta, e como o adulto cuidador precisa de tempo para ele próprio consumir conteúdos digitais, deixa a criança sentada, junto a um tablet ou uma televisão, a, assim decidir, ou melhor, que o algoritmo decida por ela, qual o conteúdo seguinte que irá estar na moda.
Começa por apenas alguns minutos, mas como o bebé fica vidrado naquele jogo de sons e imagem e está “quietinho”, como se dum animal de estimação se tratasse, estende-se por horas e este deixa de saber controlar os seus impulsos naturais de descoberta física e motora que tantos milénios levou a Humanidade a conquistar.
Mais tarde, quando esta hipotética criança, que todos conhecemos à nossa volta, fica adita do tempo ao ecrã, muda de plataforma em plataforma; de jogo em jogo; até que chega às redes sociais.
Ignorando todas as regras, termos e condições da maior parte das redes sociais, os cuidadores autorizam a compra de equipamentos móveis sem qualquer aplicação de controlo de responsabilidade parental associada e, consequentemente, a instalação e a visualização de conteúdos criados a pensar nos jovens cuja idade mínima recomendada é de 13 anos – portanto, a adolescência.
E o que isso implica?
Implica a desconstrução de toda a infância que todos nós temos o dever de proteger.
A criança, para se desenvolver de forma plena, tem de passar por vários estados físicos, mentais e morais que estamos a comprometer com o uso excessivo de tecnologia.
A criança deixou de socializar de forma física e verbal com os seus pares para interagir através de emojis e de rituais dançáveis que ela pouco sabe compreender e contextualizar como um género de softporn cuja objetificação do corpo é notória, nomeadamente da criança-rapariga, através das coreografias sensuais que, ainda que inocentemente, ela o faça.
Essa exposição leva, não só a essa questão moral sexual, como a outras questões morais – o bullying, a opressão, a segregação com base em números de seguidores ou de publicações feitas.
E porque isso é preocupante?
Segundo alguns estudos, ao longo de milénios, a necessidade de adaptação ao meio envolvente fez desenvolver o lobo frontal do cérebro de tal forma que é a zona cerebral que mais diferencia o humano como ser racional do resto dos outros mamíferos.
É nele que se regula a memória funcional, que controla os movimentos voluntários e que trabalha a partir do pensamento consciente e em todo o pensamento abstrato.
Esta parte do cérebro é também constituída por uma estrutura – o córtex pré-frontal – que é responsável pela personalidade, sentido de humor, etc.
Não querendo reduzir nesta comparação animal versus humano a apenas uma parte da nossa anatomia cerebral, o que podemos constatar é esta “pequena” mas enorme peça que diferencia os nossos comportamentos voluntários, racionais e abstratos como uma característica intrínseca do ser humano. Ser humano atual que está desde criança a ser exposto a algo involuntário, que não promove a interação entre pares e que apenas alimenta a saciedade de desresponsabilização do adulto cuidador no seu mais importante papel – a educação dos novos seres.
Fontes:
Nolte, J. The Human Brain: An Introduction to its Functional Anatomy. Mosby
Standring, S. Gray’s Anatomy: The Anatomical Basis of Clinical Practice. Churchill Livingstone