O espírito de Fauda

Muitos terão visto na NETFLIX a série Fauda, passada nos chamados “territórios ocupados”, entre Israel e a Palestina. Fauda quer dizer caos, em árabe, e é também a palavra usada pelos militares israelitas para as operações que correm mal. Contribui para o realismo da série o facto de os actores, roupas e interiores serem locais, bem como os idiomas falados – dispensando o inglês como língua franca do género.

Um dos grandes méritos de Fauda é procurar escapar (e não estou a dizer que escapa) ao habitual maniqueísmo de “bons” e “maus” do spy thriller, a que nem o mestre John Le Carré escapou. Ao retratar uma realidade humana e política que põe em permanente confronto os sentimentos e as emoções das pessoas e as razões de Estado ou do bem comum (ou as razões da insurreição, que são o bem comum dos inimigos do bem comum institucional), Fauda fá-lo com equilíbrio, mostrando “bons” e “maus”, de um lado e de outro, e “bons” e “maus” praticando “bondades” e “maldades”. Isto apesar de os heróis da fita estarem na unidade especial dos Serviços de Inteligência e Operações israelitas que protagoniza a história.

É o relato de uma situação no fio da navalha, de inimizade radical, de medo, de desconfiança mútua, de vingança cruzada e sem grandes perspectivas de paz, mas onde o inimigo é, apesar de tudo, tratado com dignidade e as suas razões e humilhações não são ignoradas.

O que tem Fauda a ver com as esquerdas e as direitas na Europa e em Portugal, de que quero aqui falar? É que, apesar de as regras da “política como forma de continuação da guerra por outros meios” (na célebre glosa de Lenine a Clausewitz) só serem válidas em caso de guerra civil ou quando parte dos cidadãos se sente rejeitada ou estranha à comunidade, tais desvios faudianos tendem hoje a ser estimulados em sociedades constitucionais e democráticas, onde persistem elementos de unidade e de identidade fortes.

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Há, nas sociedades democráticas, uma regra de jogo: a rejeição da violência no confronto político e a entrega ao voto dos eleitores da escolha dos seus representantes, sob um princípio de respeito e garantia das liberdades individuais. Querer aí aplicar princípios e critérios de sobrevivência do tipo Fauda, do mors tua, vita mea, é abrir um perigoso precedente.

É o que sucede quando, por exemplo, se pretende proibir partidos ou formações políticas em nome de critérios ideológicos. O princípio democrático é a instituição de regras para a competição do poder; vencer segundo essas regras pouco tem a ver com “bondade” ou “maldade” ou com aquela espécie de bênção teológica rousseauniana, que atribuía à “vontade geral”, expressa através da maioria dos votantes, atributos de sabedoria e infalibilidade quase mágicas ou divinas.

A introdução de factores teológicos, morais, éticos, num processo laico, legal, técnico-jurídico, de escolha livre por cidadãos livres é uma perigosa contradição. E o facciosismo e maniqueísmo analíticos que os secundam e confirmam, ainda tornam tudo pior.

Como, em última instância, o decisor é “o Povo”, sempre que os senhores da palavra – os académicos, os intelectuais, os jornalistas, “a esquerda”, porque, em Portugal, quem domina a palavra ainda é a esquerda – querem substituir-se à Constituição, às leis e ao voto do povo e ser os árbitros do Bem e do Mal, os cidadãos votantes tenderão a rejeitá-los nas urnas, como tem vindo a acontecer por toda a Europa.

Assim, aplicar arbitrariamente a um partido, a parte do eleitorado ou a todo um espaço político um epíteto e um tratamento de “inimigo da Democracia” é atentar contra a própria essência do sistema, é transplantar para uma sociedade em paz civil o espírito da guerra das sombras, empolgante, é certo, porém desajustado e perigoso numa sociedade de brandos costumes mas empobrecida e cheia de problemas.

Contra a decadência

Já houve tempos de Fauda na sociedade portuguesa, quando, para alguns de nós – à direita e à esquerda –, estavam em jogo valores definitivos, valores contrários mas que, para uns e outros, eram igualmente essenciais. Foi assim nos anos 60 e foi assim nos primeiros tempos da revolução. Aí, uns e outros, fomos conscientemente coerentes, levando as coisas até ao fim e correndo os riscos necessários…Sendo que, como sempre, os que verdadeiramente os correram não falam muito disso, porque acham normal correr riscos por aquilo em que acreditam e pagar o preço das suas convicções.

Agora, devagar mas inexoravelmente e sem percepção directa ou imediata, Portugal tem vindo a perder condições de viabilidade e de independência, não só na economia e nas comparações económicas com a União Europeia, mas também em termos de identidade e de soberania. Nisso, estamos em contra-rotação em relação à maioria das nações europeias, onde há vozes e forças que lutam contra a decadência e pela memória dos seus fundadores e heróis, que reagem à tragédia demográfica e que não cedem à diluição e reinvenção à la carte de identidades e “famílias”, cuja “legislação avançada” é quase sempre negociada à porta fechada; e que, na economia, defendem as condições económico-financeiras da independência, denunciando a entrega de empresas estratégicas ao primeiro condutor de burros carregados de ouro.

Em Portugal, é mais antiga e mais continuada a hegemonia da Esquerda, também porque não temos entre nós, em força e evidência, as causas que, no resto da Europa, têm levado à reacção: a Leste, houve uma maciça vacinação contra a Esquerda, produto de décadas de comunismo; a Ocidente, há, por exemplo, em França, uma imigração de difícil integração nacional e, em Espanha, movimentos separatistas poderosos. Mas se o separatismo não existe por cá, as ideias simpáticas e levianas da regionalização, que agora renascem no Centrão, podem vir a trazer perturbações semelhantes; bem como a marginalização ética e legal de forças políticas que cumprem as regras do sistema.

Viragem à direita?

Contudo, não restam dúvidas de que, mesmo na Europa que vira eleitoralmente à direita (em França, em Itália, em Espanha), o esquerdismo ou oitocentismo mentais permanecem no espectro político maioritário – continuando a contaminar com os seus interditos grande parte das elites e até os que já deviam estar imunes ao vírus.

Assim, quando Éric Zemmour, o candidato-surpresa da direita nacional e identitária às eleições presidenciais francesas, antevê o fim da hegemonia política da esquerda, não deixa de notar a permanência do “magistério” dessa mesma esquerda:

“Creio que vivemos um momento especial da nossa História. Particularmente para a minha geração, que conheceu uma esquerda triunfante que dominava escandalosamente o espaço público e ideológico francês. Vivemos o fim da Esquerda. Isto não significa que ela tenha deixado de ser nociva. Nem que tenha deixado de exercer o seu magistério nos media, nas universidades, na escola, no cinema, no mundo da cultura. Mas significa que, politicamente, o povo francês desviou-se da Esquerda, porque a Esquerda se desviou do povo francês, para se submeter às minorias”

Por cá, não se antevê que a Direita vá crescer a ponto de desalojar a Esquerda pelo voto. Pelo menos para já. Mas como estão e como irão ficar as coisas entre a Esquerda e a Direita em Portugal?

Quando aqui falo em “direita”, refiro-me a concepções do mundo e da vida com determinadas bases filosóficas e políticas úteis como classificação. A direita é realista, logo, anti-utópica, nacionalista, popular, meritocrática e conservadora em costumes. E, em economia, defende o mercado dentro da solidariedade e da preferência comunitária.

Quando falo em “esquerda” refiro-me a concepções do mundo e da vida, também generalizadas, radicalmente opostas às que hoje definem a “direita”. A esquerda é optimista, utópica, internacionalista, intelectualmente elitista, moralista, igualitária e tributária da desconstrução da sociedade e do homem, fazendo, tendencialmente, “do passado tábua rasa”. Economicamente, o caminho das esquerdas é, quase sempre, o pouco imaginativo aumento da carga fiscal.

Nem num caso nem noutro estamos, por enquanto, em tempos de Fauda, já que e os irmãos próximos, socialistas e sociais-democratas, ainda amparam um grande centrão enfeudado à esquerda. Mas a degradação lenta das coisas remete-nos para a velha história da rã em banho-maria – pode estar muito bem em águas mornas, mas acaba, inevitavelmente, cozida.