Julia Rivera começava seu ensaio sobre “Filosofia y Tauromaquia” publicado na prestigiada revista Cuenta y Razón com este esclarecido início:

Pode-se filosofar sobre tudo, porque filosofia é tudo o que não é outra coisa: botânica, filologia… ou tauromaquia. Quando se acabam as perguntas próprias destas ciências ou artes, e se continua, todavia, preguntando, já se está a fazer filosofia. Filosofia também vem a ser o que falam sobre o toureio todos os que não toureiam.” (José María Pemán).

A filosofia definida cada vez de uma forma mais laxante, consiste em inquietar-se sobre todas as coisas. Pemán, pontualizou que este pode ser, sem dúvida, um ponto de encontro (reflexão): o conhecimento e a compreensão (entendida como raciocínio/argumentação). Enrique Tierno Galván, socialista grande amigo de Lisboa, onde tem uma rua com o seu nome, disse simplesmente: (…) “Os toiros são um acontecimento que, enquanto tal, tem implícita a exigência de o definirmos e nos situarmos perante ele. De acordo com isso, é necessário o saber, e este chega com a ilustração. Tudo se resume então, a um conhecimento da Tauromaquia.

A sua dimensão social não se reduz unicamente ao popular e festivo. Da mesma maneira que a sua projecção cultural não se fica pela estética e na arte em geral, mas abarca toda uma série de valores existenciais, dignos de sentir e analisar; dignos de viver na intimidade de cada pessoa.

O filósofo sempre teve o dever de analisar a realidade em toda a sua complexidade e de lutar contra as ideologias dominantes. O conceito de globalização, que tudo absorve, quer impor o que se presume por uma política correcta. Mas os homens têm um direito máximo inalienável, o da liberdade e, por conseguinte, diversas maneiras de entender a vida, de existir, de coexistir. Não existe, nem existirá uma directriz universal, absoluta, verdadeira e inquestionável sobre o que está bem ou mal.

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Como toda grande obra humana, a corrida de toiros engendra outras obras: obras de arte, de outras artes. Pintura, escultura, música, cinema, todas elas se aproximaram da tauromaquia. Mas também gera discursos, a tourada tem os seus teóricos, autores de “tauromaquias”, tem os seus historiadores. Tem os seus críticos. Tem os seus lexicógrafos e os seus especialistas. Também os seus novelistas, os seus poetas e contadores. E tem, evidentemente, os seus sociólogos e os seus psicólogos e antropólogos.

Infunde aos que a amam e a compreendem, emoções e alegrias tão profundas e refinadas como as artes esteticamente mais correctas. No entanto, não se sabe exactamente se é só um jogo, um ritual, uma arte, um espectáculo, um desporto, ou outra coisa, ou tudo isto simultaneamente.

Seja o que for, a corrida de toiros presta-se a uma análise conceptual na medida em que afecta valores. Francis Wolff, filósofo francês, diz que não se sabe bem o que é, mas discute-se para saber o que vale. Quanto aos valores, há-os de duas classes: éticos e estéticos. Os valores éticos vão emparelhados com os estéticos. De facto, aquilo que é uma arte, não é a corrida em si mesma, mas sim o que chamamos de toureio, isto é, a acção do toureiro evitar a colhida.

Com efeito, o toureio obedece às regras mais clássicas das belas artes (pintura, música, literatura) e responde à exigência fundamental de toda a arte humana: dar forma a uma matéria. O toureio é a arte de dar forma humana – familiar – a um material em bruto… ou pelo menos estranho, a investida de um toiro. Há muitas definições do que é o toureio, uma das que mais gosto é quando se afirma que o toureiro faz o toureio quando, com um simples gesto, põe ordem no caos (investida do toiro). Quando torna curvas acometidas em rectas; harmonia dos contrários.

Fernando Savater (1947), apoiado em Friedrich Nietzsche, Émile Cioran e, sobretudo, em Baruch de Spinoza racionalizou a tauromaquia. “Não tenho nenhuma doutrina especial sobre a tauromaquia”, diz, “creio que é uma expressão simbólica da nossa consciência de viver sempre tanto melhor, quanto mais de perto burlamos a morte. É esse jogo que dá intensidade e sabor à vida, quer dizer, a humaniza mais. Nas corridas há mais crueza que crueldade, porque vemos numa arena uma crua realidade.

María Teresa Cobaleda (1962) afirma: “A Tauromaquia, como arte, é fonte e método de sabedoria, desde o coração, desde a paixão. Uma arte sublime, que harmoniza os contrários, que “põem os limites na margem” e as sombras em luz. O toiro ideal é um símbolo e arquétipo de humanidade, no qual se encarnam os principais valores da ética universal, como são a nobreza e a bravura (coragem): virtudes e valores, que devem prevalecer por cima das mudanças de qualquer moral, que varia sempre com as modas ou costumes. O toiro é emblema do cosmos, da natureza, da origem: que chega do campo à cidade para que o homem, perdido no labirinto urbano – na civilização do artificial e sofisticado, do insípido, desgastado e desnaturalizado, recupere e se baptize de novo nestes valores éticos que o toiro recorda na lide: uns valores, uma ética profunda, que a moral urbana deitou fora do principal código de conduta do homem actual.

O olé, quando é emoção profunda, sentida, abre-nos a Porta Grande do mistério, da Luz. Da Luz que se escuta no coração, desde um olé rotundo que nos arrebata a todos, na mesma palavra, na mesma faena, que é passe sonhado à glória e à eternidade.”

Víctor Gómez Pin (1944), comunista catalão (identifico a ideologia política de alguns autores, apenas para sublinhar que não faz sentido politizar o fenómeno das corridas de toiros/touradas, porque é transversal a inúmeros povos do Sul da Europa, bacia do Mediterrâneo e muitos países da América latina), é um filósofo que centra o seu trabalho na ontologia e teoria do conhecimento. A sua aproximação à tauromaquia aconteceu na medida em que actualmente, se situa no centro de uma polémica geral sobre o laço entre homens e animais, sendo este, sem dúvida, um problema filosófico. “A homologia genética entre humanos e outros animais não deve fazer-nos esquecer que, em matéria de ética, o essencial é a causa do homem”, explica Gómez Pin. Apresenta no seu ensaio “La escuela más sóbria de la vida: tauromaquia como exigência ética”, um compêndio de respostas antropológicas, éticas, estéticas e filosóficas perante as dúvidas que podem surgir sobre a tauromaquia. “A tauromaquia não infringe nenhum imperativo ético universal, na medida em que aos aficionados não lhes move a máxima subjectiva de ver sofrer o animal.

A tauromaquia abarca toda uma série de valores existenciais dignos de sentir e analisar, dignos de viver na intimidade de cada pessoa. Michel Leiris (1901-1990) relacionou tauromaquia com sexo, a partir de uma fundamentação antropológica e estética.

O escritor Claude Popelin (1899-1982) racionalizou por completo a interpretação da Festa. O seu testemunho foi seguido por novos escritores talvez mais letrados. François Zumbiehl também se interessou pela perspectiva romântica e pelo seu estudo. De facto, deixou-o plasmado num artigo, “Tauromaquia a la francesa”. Neste ensaio, surge uma deliciosa análise e definição do que é o temple, senão vejamos: “A consciência de que o toureiro e o aficionado compartem esta arte singular, centra-se sobre a evidência da sua frágil e efémera realidade, no preciso momento em que este se esforça por despertar a ilusão de uma eternidade não permanente. A chave aqui é o temple, cuja finalidade consiste em estender e ralentizar os passes, noutras palavras, em dilatar a morte irremediável da sua beleza. O toureiro esculpe o tempo como se pudesse assenhorar-se dele, sabendo de antemão que é impossível pará-lo. Cada segundo de toureio templado fica envolto por esta ‘morte preguiçosa e longa’, tão comovedora como uma nota musical em suspenso, última vibração do cante antes do silêncio definitivo.

Reter o toureio é impossível, ainda que, como advertiu o seu compatriota Francis Wolff quando pronunciou o Pregão Taurino no sevilhano Teatro Lope de Veja, no dia 3 de Abril de 2010, “um natural de Curro Romero, em 1999, durou oito anos.

Wolff diz identificar-se mais com a corrente neo-aristotélica e, com respeito à tauromaquia, considera que “há que salvar o humanismo universalista frente ao animalista. Chama animalista, sublinha, à redução do homem à sua animalidade.

Com Aristóteles, continua Wolff, compreendemos a oposição do ser em potência e em acto, da matéria e da forma, a bravura do toiro encontra-se só em potência no campo e transforma-se em acto na arena. A obra de arte do toureiro nasce quando dá forma a uma matéria, quando cinzela a natureza do toiro, submetendo-a contra o seu próprio instinto para modificá-la à sua concepção artística. E acrescentou: “Um toureiro transmite o impossível”, por exemplo, numa “série de naturais pode transmitir-nos medo e também esse sentimento de eternidade, de harmonia.

O toureio, como remata o prefácio de Luís Francisco Espla no magnífico livro de Paco Aguado, Joselito El Gallo – Rey de los Toreros, que me ofereceu há dois dias o meu amigo Francisco Mascarenhas, tem o inconveniente moral que dá demasiada importância à vida… e à morte. Filosofia meus amigos.