É frustrante, confesso, quando sabem que és padre e, quase de imediato, te associam a um ser anacrónico e até destituído de credibilidade. Sim, eu sei, os abusos, quer sexuais, quer de poder, continuam a ser uma ferida por cicatrizar! E é certo que são, em muito, responsáveis por esta ideia preconcebida! E digo-o: é urgente reconhecer e condenar as atrocidades cometidas por aqueles a quem estava confiada a missão de cuidar.

A Igreja não foi, em determinados tempos e espaços, perita em humanidade, porque, confrontada com estes crimes, se refugiou em atitudes defensivas, acreditando que seria possível esquecer os comportamentos ocorridos no passado sem que os culpados fossem identificados, processados ou punidos pelos danos que causaram no desenvolvimento psíquico e emocional destas crianças e jovens.

É imperativo que nós, como Igreja, reconheçamos e condenemos, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por aqueles a quem, volto a reforçar, estava confiada a missão de cuidar. Nós, como comunidade eclesial, não soubemos estar onde deveríamos estar: negligenciámos e abandonámos, não atuamos a tempo no sentido de reconhecer a dimensão e a gravidade de tão hediondos crimes que estavam a ser causados a tantas vidas. Os abusos sexuais não são exclusivos da Igreja Católica, mas o que poderá ser mais condenável que um abuso cometido por um padre que foi ordenado para anunciar a bela e felicitante notícia do Amor de Deus? Portanto, a Igreja tem a obrigação de informar e de ser transparente perante a sociedade. Hoje, encobrir o pecado é quase tão grave quanto cometê-lo.

Todavia, sinto-me por vezes vítima colateral dos abusos de alguns padres! É justo que se pergunte: e aqueles padres que nada têm que ver com os abusos? Somos todos um alvo a abater?

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Um dia, sonhei que os padres não eram obrigados a ser super-homens, mas que podiam reconhecer-se frágeis, necessitados de gestos de atenção e cuidado.

Sonhei que os padres, para se assemelharam a Jesus, não tinham que ser anjos, mas que podiam amar a sua humanidade, sem serem julgados por amar, nem criticados por chorar.

Sonhei que os padres não tinham de se esconder quando se sentiam cansados e feridos, porque não queriam ser perfeitos, apenas felizes (e, na verdade, também ninguém lhes exigia que fossem a Terra Prometida).

Sonhei que os padres não viviam isolados, mas que se relacionavam com quem se interroga e com quem duvida, com quem ri e com quem chora, sem serem mal interpretados por agirem desse modo.

Sonhei que os padres reconheciam que Deus não quer que se suicidem a seu serviço, mas que vivam do seu Amor, o que implica morrer, mas não anular-se.

Sonhei que os padres viviam a tensão entre as convicções da Igreja e as inquietações do mundo, conscientes de que não é possível encontrar um equilíbrio perfeitamente correto.

Sonhei que os padres podiam encontrar a vida contemplativa também em ambientes descristianizados, talvez ásperos, é certo, mas que lhes recordassem que não eram os detentores da verdade.

Sonhei que os padres traduziam a tradição em inéditos processos eclesiais, mas não eram marionetas de execução de programas eclesiásticos.

Sonhei com uma Igreja que era território de celebração da vida, atravessado pelo quotidiano, que não ficava sequestrada pelo formalismo, que não se concentrava no odor a naftalina e a insenso, mas que se entranhava do cheiro das vidas das pessoas.

Sonhei, mas receio que esteja a suceder connosco o mesmo que ao Titanic. Lembram-se quando o Titanic embateu contra o iceberg, mesmo após terem sido emitidos vários avisos de alerta sobre o perigo eminente? Mas o capitão, julgando-o inafundável, optou por pedir aos músicos para continuarem a tocar, enquanto as pessoas, lutando pelas suas vidas, se debatiam no meio de tanta tribulação?

Por vezes, é o que sucede na Igreja: andamos aflitos, mas parece mais fácil pedirmos para se tocar violino. E até se diz que a barca da Igreja é inafundável, porém esquecemos que o Espírito já nos enviou imensos avisos…

Vale-nos o sonho, esse sedento de que lhe seja dada Vida!