Sou do tempo do Menino Jesus, do sapatinho ou da bota ao pé da chaminé, dos presentes na manhã de dia 25. Os meus filhos mais velhos ainda apanharam esses Natais. Tudo se passava com o Menino Jesus. O Pai Natal não fazia parte da história, ou era uma personagem secundária, se não um mero figurante. E a história era uma história séria, a mais séria e misteriosa das histórias: a história da Encarnação de Deus. Um Mistério, como quase todas as coisas importantes, desde a paixão entre um homem e uma mulher à sobrevivência de um povo.
Hoje, e muito especialmente neste Natal, com um isolamento reforçado numa sociedade já tendencialmente individualista, com os pobres e economicamente débeis a multiplicarem-se e os pequenos comércios a fechar, aproximamo-nos do cenário de sonho dos antigos marxistas-leninistas: o de estarem os ricos cada vez mais ricos, pelo menos relativamente, e os remediados cada vez mais pobres. Cenário ideal para a grande “luta final” entre Burguesia e Proletariado, não fosse o actual predomínio dos marxismos imaginários, que relega para o passado os sonhos de justiça social dos antigos igualitários, que sempre tinham o mérito de tentar atabalhoadamente laicizar os ideais evangélicos.
Olhando à volta, nesta cidade de Lisboa, as iluminações municipais podiam parecer inspiradas na Primeira República, quando os laicos triunfadores do Cinco de Outubro acabaram com os feriados religiosos e chamaram ao Natal “Festa da Família Portuguesa”. Mas não. Agora, já não é sequer desejável que a família figure. Nem a Sagrada, nem a portuguesa. Nestas iluminações profícuas da cidade, não se vê uma referência que seja ao Presépio, aos Magos, aos Pastores, ao ponto de partida histórico para tudo isto. Nada. Já quase nem estrelas – só árvores assépticas, embrulhos, fitas, luzes. É o espectáculo desolador da descristianização sinuosamente imposta como facto consumado.
Dickens e os vitorianos
Foi em meados de Outubro de 1843 que Charles Dickens começou A Christmas Carol. Escreveu-o em seis semanas, estava pronto no fim de Novembro e saiu antes do Natal. Para se inspirar, passeou por Londres, andou pelos mercados do East End, deambulou pelos bairros pobres da cidade, nos princípios da era vitoriana.
Foi também ali, entre a neve e a lama das ruas periféricas e a City burguesa, que nos habituámos a imaginar e a fantasiar o espírito ambulante desses natais. Mas, no meio de uma descrição rica, festiva, quase epicurista, quase trimalciana dos Natais festivos, Dickens traz-nos, como ninguém, a mensagem cristã.
A mensagem é a história de uma salvação. A história da salvação de Ebenezer Scrooge, o milionário avarento que, na noite de 24 para 25, é visitado pelo espírito do Natal e dos Natais. Michael Timko escreveu na revista America, uma revista de jesuítas norte-americanos, um texto sobre o significado de Dickens, dizendo que o escritor tivera como objectivo principal, senão único, que as suas histórias fossem parábolas dos ensinamentos de Cristo.
E A Christmas Carol é um conto de conversão. Uma conversão que chega também pela visão do castigo que os espíritos do Natal lhe revelam. Dickens era de uma família anglicana, Church of England, não especialmente praticante. Foi a igreja que seguiu toda a vida, excluindo uma breve passagem pelos Unitários, nos anos de 1840.
O enredo de A Christmas Carol é conhecido. Ebenezer Scrooge, o velho avarento, é visitado, na noite de Natal, pelo fantasma do seu antigo sócio, Jacob Marley. Marley vem acorrentado, com ar sofredor, e vem dizer a Scrooge que está a penar no Purgatório pela indiferença com que tratou os seus irmãos – os pobres, os empregados, as crianças – durante toda uma vida de próspero homem de negócios.
Scrooge é um velho mau, misantropo, que não quer saber do Natal, que recusa o convite do sobrinho para jantar, que trata mal o seu empregado Bob Cratchit. Marley, vindo directamente do Purgatório, avisa Scrooge de que vai ser visitado por três espíritos de Natal – o dos natais passados, o dos natais presentes e o dos natais futuros.
O primeiro, o Espírito dos Natais Passados, leva Scrooge até à sua infância e juventude: à sua irmã Fan, ao seu patrão, o bondoso Mr. Fizziwig, que o tratava como um filho, e à sua namorada Belle, que perdeu pelo amor ao dinheiro. O segundo, o Espírito do Natal Presente, leva-o a visitar a alegria do Natal dos pobres, a casa do seu sobrinho Fred, a casa do seu empregado Cratchit, que tem um filho pequeno, Tiny Tim, um menino alegre, mas muito doente e semi-paralítico. E o terceiro, o Espírito dos Natais Futuros, mostra-lhe um homem que morreu, que tem um funeral de homem de negócios e que é roubado pelos seus próximos. Ninguém tem pena dele, e jaz numa campa abandonada, onde Scrooge vê inscrito o seu próprio nome. E também vê Bob Cratchit e a família, que choram a morte de Tiny Tim.
Uma segunda oportunidade
Quando acorda na manhã de Natal, Scrooge é outro homem: toma consciência dos seus erros e do mal na sua vida, mas percebe que, ao contrário de Marley, vai ter uma segunda oportunidade.
E sendo Cristo o Novo Adão, a própria encarnação é uma segunda oportunidade. O artifício de mandar espíritos prevenir os vivos também é comum, na Bíblia, nos poemas homéricos no teatro clássico, em Shakespeare, no Ricardo III e no Hamlet, nos românticos. O fantasma de Marley, por um lado, assusta – e assusta até Scrooge –, mas por outro, sabemos que vem por bem e que é, por isso, um “fantasma bom”, ainda que condenado ao Purgatório.
O Purgatório é mais uma segunda oportunidade; a oportunidade de purgar além vida os pecados cometidos no mundo; é um lugar de pena, mas sereno, como nalguns primitivos italianos do Quatrocento, ou como naquela Ponte do Purgatório, de Mateu Lopez, do século XVI, onde os anjos vão ajudando os penitentes a partir para o Céu, com o ar de enfermeiros de convalescentes que se preparam para ter alta. Marley ainda não está nessa fase; vem com correntes e visivelmente aflito; mas a sua visita vai desassossegar Scrooge e encaminhá-lo para a Salvação. Os três espíritos do Natal farão o resto.
Dickens tinha 31 anos quando escreveu e publicou A Christmas Carol. Era já um escritor de sucesso, naquela sociedade vitoriana só medianamente convertida mas com valores cristãos oficialmente estabelecidos. Sociedade repetidamente acusada de hipocrisia, farisaísmo, opressão dos pobres e dos mais fracos e exploração do trabalho infantil para enriquecer os usurários como Scrooge e Marley. Marx era um grande leitor e admirador de Dickens e foi perante esta sociedade que ele e outros socialistas escreveram panfletos e descreveram e construíram utopias.
Era uma sociedade de classes, com uma classe alta – aristocracia e grande burguesia – dominando o poder político e económico; e uma classe média abastada, que abrangeria 10 ou 15% da população. O resto, a grande maioria vivia em austeridade e dificuldade.
Dickens retratou esta sociedade melhor que ninguém; com rigor, sem concessões, com sentido de justiça e de verdade. Ele mesmo tivera uma dura experiência numa família numerosa, com o Pai preso por dívidas e ele a ter de trabalhar numa fábrica. Depois subira a empregado de um escritório de solicitadores e daí a jornalista e a escritor. A fama chegou-lhe aos 25 anos com os Pickwick Papers,em 1837 (“Ter já lido os Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida”, diria Pessoa). Oliver Twist e Nicholas Nickleby, que o consagraram, são anteriores a A Christmas Carrol.
Mais tarde, com David Coperfield e Great Expectations confirmará uma obra única, não só pelo realismo do testemunho, mas pela criação de uma galeria de personagens reais mas “morais” – simbolizando o bem e o mal da natureza humana –; e que, por isso, continuam, por gerações, a inspirar novas criações, na literatura, no cinema, na televisão, no mucic-hall.
Neste Natal, assombrados pelos fantasmas da peste, da crise e da depressão económica, numa cidade e num tempo onde, em decisões e legislações subtis e pretensamente inócuas, pressentimos a força de um laicismo agressivo e iconoclasta, reler Dickens e Uma Canção de Natal é – para nós, para os nossos filhos e para os nossos netos – uma forma de reencontrar e espírito de todos os Natais: o da Esperança e da Salvação.
E de reencontrar o caminho para lá chegar, aqui, nas luzes do nosso Natal descristianizado, como o velho e mau Ebenezer Scrooge o reencontrou, numa manhã de 1843, na pérfida Londres vitoriana.
Um Santo Natal.