Perante os tempos de indefinição política nacional em que vivemos e no quadro de uma alteração radical da prática política constitucional vigente durante décadas, vão sendo dados alguns sinais para o surgimento de uma nova cultura política envolta em valores inéditos e originais na nossa história democrática. Sendo, pois, justificável recuarmos aos nossos verdadeiros centros de interesses de vida e analisarmos, numa perspectiva de dentro para fora, as políticas municipais que nos regem e determinam o nosso quotidiano.
Vem tudo isto a propósito da saída de António Costa da Câmara Municipal de Lisboa e das recentes intenções políticas avançadas pelo seu sucessor, Fernando Medina, que parecem anunciar uma ausência de visão estratégica para a cidade. As últimas decisões deste Executivo são prenúncio de políticas que mais parecem não passar de remendos pontuais, para escamotear problemas existentes há muito e que não encontram resposta nas propostas sugeridas por esta equipa autárquica socialista.
Atualmente, debate-se, em Lisboa, a requalificação do eixo central, artéria principal que atravessa a cidade, drenando o tráfego que entra e sai, num sistema geométrico. A importância deste eixo não se pode resumir apenas a propostas que se prendam com o embelezamento ou o aumento de áreas de lazer. A ser assim, estaremos perante alterações de natureza técnica que irão interferir com o conceito da cidade e de como a queremos viver e dela desfrutar. Qualquer alteração neste eixo poderá originar consequências contraditórias e de impacto negativo nas áreas circundantes.
A proposta da CML prevê um acréscimo do espaço público pedonal, a dinamização do comércio e dos equipamentos, a redução do peso do transporte privado, a recuperação da função habitacional e a regeneração do eixo central da cidade. Dois destes aspectos merecem a melhor atenção: redução do peso do transporte privado e a recuperação da função habitacional. Senão, vejamos: com a eliminação de cerca de 600 lugares de estacionamento, ainda que prevista a alternativa da oferta pública em parques de estacionamento localizados a uma distância de 300m do eixo central (assegura a CML, sem especificar se esta distância se mantém ao longo de todo o eixo ou se pode aumentar, e para quanto), será que não estaremos perante uma condicionante à recuperação da função habitacional? Porque mais habitação pressupõe disponibilizar estacionamento ordenado e acessível aos moradores na área envolvente.
Como se procederá à redução do peso do transporte privado? Segundo o estudo de tráfego realizado no mês de junho (período que suscita dúvidas quanto à sua eficácia demonstrativa do volume de tráfego que circula neste eixo, uma vez que, como sabemos, o período escolar condiciona altamente a utilização diária do veículo particular), com a diminuição da largura das faixas de rodagem, a velocidade média de circulação diminuirá significativamente. Por outras palavras, quer isto dizer que demoraremos mais tempo a percorrer o trajeto desde o Marquês de Pombal até ao Campo Pequeno do que atualmente. Mas não se pense que será por razões de deslumbramento por quem lá passa, que se sentirá compelido a abrandar a marcha para contemplar as árvores frondosas que ali serão colocadas ou as áreas de lazer que farão as delícias dos turistas. Não. Demoraremos mais tempo porque a intensidade do tráfego vai aumentar em volume e o tempo de circulação médio vai diminuir.
Estas preocupações que se prendem com o eixo central são legítimas e antigas (recorde-se o projecto que o antigo Presidente de Câmara, Pedro Santana Lopes, tinha para o eixo central, numa tentativa de resolver o volume de tráfego e, em simultâneo, requalificar a área) e nas últimas eleições autárquicas, o PSD e o CDS recuperaram esta temática, por anteciparem os problemas crescentes e insolúveis, caso nada seja feito.
A intenção da requalificação do eixo central encerra em si mesmo um princípio notável e qualitativo. Devolver a cidade às pessoas e ordenar o seu espaço a partir do cidadão e daquilo que poderá ser o desfrutar da cidade de Lisboa, capital de Portugal, em detrimento da ditadura do automóvel. Todos ambicionamos uma cidade mais verde, mais harmoniosa com a locomoção humana, com índices de GEE’s (Gases de Efeito Estufa) em curvas descendentes, com menos ruído, menos asfalto… Contudo, não podemos ignorar e adotar uma estratégia de autismo e cegueira para os problemas existentes e criar soluções de bloqueio para “obrigar” os lisboetas a viverem a cidade de uma forma condicionada e pouco livre.
A opção de não circular no eixo central deve ser uma escolha do lisboeta e não uma imposição condicionada pelo somatório de entraves e constrangimentos provocados, intencionalmente, por Manuel Salgado e Fernando Medina, sob a bandeira da requalificação do espaço público. É importante não esquecer o caso da Avenida da Liberdade, que, até hoje, este Executivo ainda não conseguiu diminuir os índices de poluição a que se propôs e que concorreu como fator determinante para as alterações ali realizadas.
Talvez não fosse despropositado reflectir sobre a possibilidade de discriminar positivamente os moradores de Lisboa, com isenção de pagamento de parquímetro, por horas determinadas, em zonas da cidade. Ou, se quisermos ir mais longe, agravar este mesmo pagamento para quem não habita na cidade, mas traz carro para Lisboa. Mas acima de tudo, pensar nos lisboetas e em quem escolheu esta cidade para morar e pagar os seus impostos. Uma cidade com qualidade e para todos, não é uma cidade condicionada e só para alguns.
E, por último, dada a relevância da matéria, faz todo o sentido que sejam ponderadas como construtivas todas as propostas que possam vir a ser apresentadas por parte dos partidos políticos, com assento nos órgãos municipais, de forma a ser encontrada uma solução final mais consensual para a cidade e para todos.