O Bairro do Aleixo é um bairro social da cidade do Porto, construído em 1974, cinco torres de 13 pisos cada uma, totalizando 320 fogos. Menos de trinta anos depois, problemas sociais, conflitualidade entre moradores e com a própria cidade, tantos que precisaram de intervenção radical. Pelo caminho, gestão e manutenção a cargo da Câmara Municipal do Porto, portas e janelas partidas, instalações elétricas, canalizações, pavimentos, vandalismo de alto nível, ineficácia da Câmara a condizer. E a zona virou mercado de droga, reduto de delinquência, praticamente interdito aos moradores das redondezas. A solução radical encontrada foi demolir tudo. Sim, demolir as cinco torres! Duas já foram (2011 e 2015), seguir-se-ão as restantes três. Ironicamente, diz-nos a imprensa, o espaço dos blocos demolidos dará lugar a sete blocos de luxo…
A Câmara Municipal de Lisboa concebeu e apresentou agora duas propostas de loteamento no Alto do Restelo que estão em discussão pública (processos 07/URB/2020 e 08/URB/2020) Na área maior (a segunda), a escassos cem passos da igreja de São Francisco Xavier, nos 35.700 metros quadrados de terreno (se fosse um retângulo teria 160 x 220 metros) propõe construir 7 (sete) blocos, que incluem torres com 12, 13 e 15 pisos acima da rua, mais dois ou três subterrâneos. Um total de 486 fogos de várias tipologias e 214 lugares de estacionamento. Qualquer pessoa poderá raciocinar: 486 fogos significam mais 1500 a 2000 residentes; mais 500 ou 1000 veículos; mais os visitantes; mais os animais; mais os acessos, as ciclovias… Numa zona que está consolidada com moradores há uns 40 ou mais anos, introduzir mais 1500 a 2000 residentes num espaço aprazível, com um ambiente social tranquilo e afável, fica-se perplexo com tanta ligeireza técnica! Tanta insensibilidade social! Tanta falta de senso!
Introduzir mais mil veículos de residentes, prevendo 214 lugares adicionais de estacionamento… E os outros 786, onde ficam? São precisos 2,25 quilómetros de via para os acomodar (ou 1,75 quilómetros se for em espinha, com uma faixa de 4 metros de largura). O que é que os técnicos da Câmara previram? A habitual solução selvagem dos passeios? Tornando-os desconfortáveis para o peão, intransitáveis para os deficientes e inacessíveis para os moradores da zona? Depois culpa-se a falta de civismo das pessoas! E os responsáveis da Câmara ficarão de consciência tranquila depois de arrumarem mil veículos em 214 lugares. Pois, os subterrâneos…
Não se trata de um projeto urbanístico, trata-se da reconfiguração brutal de uma zona residencial antiga, equilibrada e agradável, numa zona fatalmente inóspita, desumanizada e, muito provavelmente, perigosa.
A similaridade com o Aleixo do Porto é clara, embora neste projeto Lisboa fique a ganhar em toda a linha: maior número de torres: sete em vez de cinco; maior número de pisos na mais alta: 15 vs 13; maior número de fogos: 486 vs 320. Parabéns! Pretendemos o Aleixo Dois em Lisboa?
No projeto colocado à disposição para a discussão pública, os desenhos, os bonecos, carregados de verde, árvores que chegam ao sexto andar, um deslumbramento. Textos adocicados de frases feitas, filosofia social balofa, a dizer nada. Um pacote de marketing parolo e enganador. O mote do projeto,“Programa de Renda Acessível”, evocando as generalidades do costume “… melhores condições de vida na cidade…” “… cidade mais coesa e universal…”, encostando-se a um conceito justo, de maior proximidade de extratos sociais, para benefício da sociedade em geral, concretiza mais uma agressão aos seus munícipes, deixando para trás os quatro mil prédios devolutos, muitos deles da Câmara. Porquê tanto interesse neste e nenhum nos prédios devolutos?
Sobre o investimento e a gestão do empreendimento, nada de concreto. Depreende-se que será uma nova organização da esfera da Câmara. Uma nova EPUL, com outro nome, naturalmente, porque o nome EPUL está justificadamente desacreditado. Basta visitar notícias avulsas do passado: “… 3000 casas atribuídas por cunha…”, Expresso 26/07/2012; “… entrega das chaves ao fim 11 ou 15 anos…”. Será tudo uma cabala? Um historial lamentável de baralhada administrativa, prejuízos e frustrações. A EPUL, criada em 1971, como “… instrumento de ordenamento do território com intenção de combater a desertificação de Lisboa”, bla, bla, bla, por aí fora, o costume… Encerrada no último dia de 2014 por dificuldades financeiras e incumprimento no pagamento de empréstimos! Não se falou mais do assunto. Ainda bem! Incompetência e negligência não são assunto, são tristeza…
E numa pesquisa breve acabei por tropeçar num estudo apoiado pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), da esfera do Governo: “Habitação: 100 anos de Políticas Públicas em Portugal 1918 a 2018”, publicado a 7 de Abril de 2017. Portugal tem uma tradição centenária de construção social, deveríamos ter aprendido alguma coisa. O próprio Restelo e as redondezas são exemplares, o bairro do Restelo dos anos 50, o Bairro de Belém, o Bairro da Ajuda, o Bairro de Caselas. A Câmara de Lisboa não aprendeu.
Não se trata aqui, apenas, da contestação de um projeto lesivo do bem-estar dos munícipes. Trata-se de um apelo, de uma exigência democrática de competência a um orgão que tem por função servir os cidadãos. A Câmara tem que resolver os problemas que tem, olhar para os quatro mil prédios devolutos, por exemplo, e não criar novos problemas aos munícipes! Está na altura de alguém, dentro do partido político, de todos eles, de facto, dar um murro na mesa e gritar o adágio popular antigo. “Alto e pára o baile!” Isto assim não é democracia nenhuma!