Um dos nossos heróis de miúdos era o Matateu. Avançado-centro do Belenenses, moçambicano, o seu nome era Sebastião Lucas da Fonseca, Matateu, alcunha. Quando se tinha um olho negro, dizia-se que tínhamos um “olho à Matateu”, a metáfora engrandecia. O irmão era o Vicente, não tinha alcunha, também um grande futebolista, defesa no Belenenses e na Seleção Nacional. Conheci-o mais velho, quando foi professor de futebol do meu filho. O que interessa é pôr os miúdos a jogar, dizia, a divertirem-se, a conviver. Grandes homens… via-os assim em criança, lá pelos anos 50 e 60, e retenho-os na memória como referências da minha vida.

Eusébio, outro grande jogador, mundialmente conhecido desde o campeonato do mundo de 1966, também uma referência, como jogador e como homem, simples, afável, reconhecido pelos seus de origem, bom desportista. Recordo a classe com que, acabando de lhe marcar um golo de penálti, apertou a mão ao guarda-redes russo Yashin (na altura, os russos eram os maus…). Reconhecido no mundo, os portugueses gostavam dele, era tão português como todos nós. Mário Coluna, outro, um senhor, capitão de equipa do Benfica e capitão da equipa da seleção portuguesa em 1966. E o Mário Wilson, também moçambicano, um grande treinador, um paizinho quando a equipa estava em baixo. E o Hilário, defesa esquerdo do Sporting. E de futebol chega…

Na Guiné, conheci muitos africanos por força das circustâncias, fiquei amigo de um Samuel, enorme, metia medo se se encontrasse numa noite escura. Tinha o segundo ano do liceu, hoje seria o sexto do ensino básico. Emprestei-lhe o livro Guerra e Paz, do Tolstoi, quando mo devolveu, esse e mais outros, disse: gostei deles todos mas este, o do Tolstoi, é especial. Em minha casa, com a minha sobrinha ainda de colo cheguei-a a ele, que disse: Eh pá, não a chegues a mim que ela é capaz de ter medo por eu ser preto! Além disso, tinha um vozeirão. Não teve medo, a miúda. Não significa nada, nem nada significaria se tivesse tido… Visitavam-no no hospital na Guiné uns velhos africanos, de porte digno, discretos, pouco faladores, inspiravam respeito. Eram os “homens grandes”, como diziam na Guiné, não precisavam de títulos nem honras, eram velhos, olhavam-nos direto, com doçura e respeito. Ser velho era ser respeitado, julgo que não existia ainda a palavra idoso.

Um outro chamava-me irmão. Eu achava piada e retribuía. Disse-me um dia, “oh Cabral, o meu filho vai estudar para Portugal, ficas lá o pai dele, é um tipo porreiro, faz o que farias se fosse teu filho”. E assim foi, não fiz praticamente nada, só trivialidades logísticas e poucas. Formou-se na Universidade do Porto com brilho. Depois foi a filha, a mesma receita, praticamente nem a vi, ela só sabia que tinha por aqui alguém se precisasse, também se formou na escola portuguesa. Todos tinham a pele mais escura que a minha, embora as tonalidades fossem muitos diversas, uns quase brancos, mestiços, mulatos, outros escuros, todas as cores tinham uma designação; a mim, por vezes, chamavam-me “bronco”, que é a sonoridade de “branco” em crioulo. Um deles, quando na televisão via jogos de futebol entre clubes britânicos, à falta de outra afinidade, dizia que estava pela equipa que tivesse mais pretos, e contava-os, um a um, para escolher a equipa para torcer. E riamos…

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A seguir às independências, por motivos profissionais, visitei várias vezes os países de expressão portuguesa: Moçambique, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Guiné e outras Áfricas. Em todos me senti bem e bem acolhido. E quando me cruzo com um africano, a questão da cor da pele não se põe, nunca se pôs, é a que for, sempre foi…

Claro que não é tudo um harmonioso mar de rosas. Por vezes, a cor da pele serve, de parte a parte, para humilhar ou segregar. O ser humano é assim, utiliza como pode o que está à mão para magoar e dominar. Falta de educação, má qualidade humana, fico por aqui. Uma coisa que aprecio, que aprendi com africanos: o carinho e a atenção que normalmente dedicam às crianças e o respeito com que tratam os mais velhos.

Portugal sempre conviveu com a diferença, um primeiro-ministro de origem indiana, uma ministra de origem angolana, deputados indianos, médicos, escritores, futebolistas do melhor, um toureiro, muitos, nunca notei objeções fundadas em cores da pele.

Por mim, sinto orgulho na convivência que os portugueses construíram e mantêm com povos de culturas e cores diferentes, africanos, orientais, ciganos, chineses, malaios, o que forem, e no apreço generalizado que sinto da parte deles.

Cada um fala da sua experiência…

Se os anti-racistas de hoje, cujas experiências se cingem a leituras, têm por objetivo sujar passados, expelir ódio, acicatar ânimos, por favor, tenham maneiras! Vão pregar para outra freguesia!

Não sei o que é racismo nem quero aprender convosco…