A integração dos hospitais e centros hospitalares universitários em unidades locais de saúde tem sido alvo de debate e controvérsia. Alguns advogam que esta integração não deveria ter acontecido, enquanto outros defendem que este modelo serve melhor os interesses dos portugueses. O tema tem várias dimensões e ângulos, sobre os quais devemos fazer uma reflexão despolitizada e fundamentada na evidência.
A dimensão/complexidade
Uma das críticas mais frequentemente ouvidas, é de que estas Unidades Locais de Saúde (ULS) universitárias são demasiado complexas e que, consequentemente, a sua cadeia hierárquica prejudicará a gestão de proximidade, particularmente dos cuidados primários.
Tanto quanto sabemos, os cuidados primários continuam a ter uma tutela/chefia direta. Aliás, sabe-se que a anterior direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) “forçou” a existência de dois diretores clínicos nos conselhos de administração, de forma a manter esta tutela específica. Do mesmo modo, as unidades dos cuidados primários mantêm as suas chefias intermédias, designadamente os seus coordenadores. No âmbito dos regulamentos das ULS, é provável que os cuidados primários sejam providos de um departamento autónomo, com acompanhamento pela gestão mais próximo e capaz do que aquele que era dado pelas ARS. Não parece por isso existir um aumento de complexidade da estrutura, que prejudique ou impossibilite a existência de um modelo de gestão eficaz.
Muitos referem também que a dimensão das ULS universitárias poderá ser um obstáculo ao seu bom funcionamento. É curioso que, em outras latitudes, isso não seja encarado como um problema. Muitas vezes, essa maior dimensão é vista como uma oportunidade para garantir massa crítica essencial em processos globais competitivos (captação de ensaios clínicos ou programas de apoio à inovação). Hospitais como o Karolinska em Estocolomo, o Charité em Berlim o Pitié Salpêtrière em Paris, têm dimensões muito superiores a qualquer ULS do SNS (seja em número de trabalhadores, volume de atividade ou orçamento), integram iniciativas de integração de cuidados (com diferentes formas e modelos de organização) e veem nisso uma vantagem competitiva.
A dimensão/complexidade só será um problema se não dotarmos as ULS das estruturas de gestão e das chefias intermédias de que tanto carecem, designadamente de administradores hospitalares. Se resolvermos essa falha, a massa critica pode ser uma vantagem que não devemos desperdiçar.
A autonomia dos CSP
Os cuidados primários mantêm uma tutela técnica específica e, para além disso, mantêm chefias e coordenações locais semelhantes ao que existia no cenário pré-ULS. Não sendo um problema de estrutura, a questão poderia colocar-se em termos de autonomia de gestão. Os CSP têm hoje menos autonomia no que no período pré-ULS? No passado, os CSP dependiam essencialmente dos ACES que, por sua vez, dependiam das ARS. Estas estruturas, por integrarem o setor publico administrativo, não tinham qualquer autonomia de gestão. Todos os processos, quer de compras, como de recrutamento, eram difíceis, morosos, por vezes até impraticáveis. A dificuldade dessas estruturas em conseguir contratações levava a que, em muitos casos, fossem os hospitais a recrutar os profissionais que depois eram cedidos aos Centros de Saúde. Porquê? Porque contratar recursos humanos foi sempre para mais fácil para os hospitais EPE, do que para os centros de saúde (basicamente porque estes últimos não tinham qualquer autonomia jurídica ou financeira). É verdade que, nos últimos anos, por conta da não aprovação dos seus Planos de Desenvolvimento Organizacional (PDO) pelos sucessivos governos, os Hospitais EPE/ULS têm tido uma autonomia limitada. Em todo o caso, mesmo com estas limitações, formalmente e de facto, a autonomia dos cuidados primários integrados em ULS EPE será sempre superior àquela que tinham como estruturas dependentes das ARS.
O financiamento por capitação é “pior” para as ULS universitárias?
O financiamento continua a ser um grave problema do SNS. Os últimos dados evidenciam a manutenção de um claro subfinanciamento, particularmente nas componentes relativas a investimento. A alocação de apenas 1,7% da despesa do SNS a investimento (média do período 2014-2023), é bem ilustrativa do desinvestimento a que tem sido votado o SNS. No entanto, quando falamos em financiamento, falamos de mais do que de valores globais. Falamos essencialmente sobre os incentivos criados por cada uma das formas de financiamento e sobre a forma como os Hospitais/ULS respondem a esses estímulos. De forma simplista: se financiamos atos ou episódios, estamos a incentivar mais produção; se financiamos por capitação, estamos a incentivar uma maior aposta na promoção da saúde. A evidência sobre isto é vasta e abundante, mas bastaria o senso comum para que entendêssemos o que está em causa. Se o Estado antecipa os pagamentos e paga com base em custos médios expetáveis para os nossos doentes, as ULS terão um forte incentivo para manter os cidadãos mais saudáveis, evitando o seu recurso aos cuidados de saúde. Há ainda outros aspetos importantes: a fórmula de financiamento cria vieses? Paga pior a alguns hospitais?
Tanto quanto se sabe, o financiamento será calculado com base na carga de doença da população servida por cada ULS, à qual se acrescentará um valor relativo à diferenciação de cada hospital. Os doentes provenientes das áreas de outras ULS serão pagos pela ULS de origem à ULS que recebe (estes pagamentos entre ULS são geralmente chamados de fluxos in e out).
Este sistema de financiamento tem problemas? Sim, porque a informação que o alimenta é pobre. Não sabemos a carga de doença das nossas populações e muito menos o custo que corresponde a tratar cada tipo de doente. Os preços ou valores de capita assentam em médias de custos do SNS, apurados/calculados há vários anos e atualmente desatualizados.
Um exemplo para que isto se entenda melhor: na área geográfica de uma determinada ULS, existem em média 200 doentes com cancro do pulmão por ano. Deveríamos calcular os custos de tratar esses doentes e pagar esses montantes à ULS (como parte da sua capita). Acontece que este cálculo é realizado com custos de há 4 ou 5 anos e, como sabemos, todos os anos surgem fármacos melhores, mas também mais caros. Os hospitais recebem um determinado montante por doente, mas, para disponibilizar os tratamentos mais inovadores, têm de gastar o dobro. Andamos sempre atrasados em relação aos custos reais, com as consequências que se conhecem em termos de resultados dos hospitais/ULS. Isso é razão para desistirmos do financiamento por capitação, mesmo nos hospitais universitários, designadamente sabendo que a capitação pode levar a um maior foco na promoção da saúde? Ou devemos continuar a investir no desenvolvimento quer de um sistema de cálculo da carga de doença das nossas populações, como de sistemas de cálculo de custos por atividade/doente, tornando o financiamento mais válido e fiável?
Outra crítica comum é que este sistema de financiamento não paga convenientemente aos grandes hospitais/ULS. Na verdade, se os custos forem bem calculados e estiverem atualizados, e se forem usados tanto para cálculo das capitas como para efeito de pagamentos dos fluxos in e out, a crítica deixa de fazer sentido. Um sistema de financiamento baseado em custos reais e prospetivos, acrescido de um adequado cálculo da carga de doença de cada população, incorpora todos as dimensões relevantes para pagamento às ULS. Deixa de ser necessário criar incentivos adicionais à inovação, designadamente porque o cálculo da capita incorpora de forma prospetiva os custos das mais recentes tecnologias associadas ao tratamento de cada subtipo de doente. Poder-se-á colocar a questão relativa ao pagamento das horas em vazio de alguns serviços mais diferenciados para tratamento de doentes agudos (serviços de urgência e outros), mas mesmo essas horas podem ser calculadas e incorporadas na capita ou pagas através de linha especifica dos contratos-programa (conforme se fez nas PPP nos últimos anos).
Os doentes de fora de área
Uma das críticas também frequentemente apontada à aplicação deste modelo aos centros universitários, decorre de uma parte significativa dos seus doentes terem proveniência de áreas geográficas que à partida não seriam da sua responsabilidade. Doentes referenciados por unidades de cuidados primários que integram outras ULS, mas que são referenciados para as ULS universitárias. Estas referenciações, como sabemos, passaram a ser mais frequentes depois da implementação da Lei de Acesso e Circulação em 2016. O argumento para a manutenção desta lei é claro: o SNS é apenas um, e o médico de família deve referenciar para a unidade que melhor pode servir os seus doentes. Que consequências podem daqui advir para estas ULS universitárias? Por um lado, podem receber um volume de pedidos que exceda a sua capacidade de resposta e, por outro, terão de tratar doentes eventualmente não previstos na sua contratualização com a tutela. Relativamente ao primeiro ponto, importa dizer que, se a referenciação for racional e em função dos tempos de espera de cada unidade (como se espera que seja), as ULS universitárias só receberão pedidos de fora de área até um determinado limite, designadamente aquele em que o seu tempo de espera passe a ser superior ao das restantes ULS da região. A partir desse ponto, é provável que as referenciações se reorientem para as ULS que ofereçam a melhor resposta aos doentes. Relativamente ao segundo ponto, o que se espera é que as ULS de origem “paguem” adequadamente esses doentes às ULS de destino (aquilo que anteriormente referimos como fluxos in e out). O dinheiro seguiria assim o doente, permitindo um aumento das receitas correspondente ao aumento de procura/atividade dessas ULS universitárias. É isso que se espera que aconteça.
São unidades de Saúde com âmbito nacional e não “local”
Uns dos argumentos mais frequentemente usados é de que as ULS universitárias não têm um âmbito local, sendo que em muitos casos as suas áreas de influência correspondem a uma região inteira. A este propósito coloca-se a seguinte questão: o facto de se constituírem como estrutura integradas de 1ª linha de resposta para a sua área de influência direta prejudica o seu âmbito regional ou nacional para algumas patologias? A capacidade destas ULS como centros de referência regionais ou nacionais fica prejudicada pelo facto de estes hospitais/centros hospitalares terem sido integrados em ULS?
Estas ULS, para além de terem centros de referência com âmbito regional ou nacional, sempre responderam como hospitais de 1ª linha para a sua área de influência. Na verdade, os hospitais universitários sempre foram a 1ª linha de reposta para uma parte significativa da população portuguesa. Sempre se procurou que estes hospitais integrassem cuidados com os cuidados primários das suas áreas de influência direta e não parece existir evidência de que isso tenha prejudicado o funcionamento dos seus centros mais diferenciados em áreas mais especializadas. Na área da obstetrícia, por exemplo, os cuidados hospitalares sempre procuraram articular-se com os cuidados primários, designadamente através das Unidades Coordenadoras Funcionais, e não há registo de que isso tenha prejudicado o funcionamento das áreas mais diferenciadas desta especialidade médica. Se porventura se entendesse que estas ULS universitárias deveriam atuar apenas como centros de referenciação secundária, deixando de responder em 1ª linha aos cuidados primários de uma determinada área geográfica, faria todo o sentido que o modelo de ULS não fosse aplicado a estes hospitais. No entanto, essa opção não parece estar em cima da mesa. Estes hospitais universitários continuarão a responder em 1ª linha a uma parte significativa da população portuguesa. Esta população, para quem estes hospitais são 1ª linha, não beneficia da integração de cuidados que pode ser proporcionada pelas ULS? Penso que sim e que não deve privada desse benefício. Em todo o caso, se o problema for de semântica, porque não mudar o nome de “Unidade Local de Saude” para Unidade Integrada de Saúde”, adotando a designação usada no NHS UK, conforme recentemente proposto por Álvaro Beleza?
A análise não se resume a estes pontos e existirão certamente outros aspetos a ter conta. Importará, por exemplo, perceber qual seria a alternativa. Regressar às Administrações Regionais de Saúde? Optar por um sistema dual em que, no mesmo SNS, conviveriam duas formas de organizar e financiar as instituições? Acima de tudo, importará que a análise seja clara e desprovida de juízos pré-concebidos, e mais sustentada na evidência do que na querela política. Não podemos ser avessos à mudança, mas também não podemos ignorar o custo que estará associado a um retrocesso. A situação exige uma análise ponderada e racional, a bem da saúde dos portugueses.