A recente polémica sobre o abate de veados, gamos e javalis na Herdade da Torre Bela sugere uma reflexão sobre uso da terra, gestão de recursos naturais e, em particular, das populações de animais silvestres.
O uso da terra é uma questão central na gestão e sustentabilidade dos recursos naturais. Estima-se que a população humana atingirá os 9 mil milhões de pessoas em 2050. Há estimativas que sugerem que a produção alimentar terá que aumentar em 70% e que a procura de produtos de origem florestal (ex: madeira, papel, fibra) deverá triplicar para satisfazer estes níveis populacionais. A este desafio junta-se o da conservação da biodiversidade, da qual toda a humanidade depende para alimentação e outros múltiplos benefícios (ex: regulação de clima, bem-estar, serviços de polinização, qualidade da água). Para responder a este tremendo desafio há que considerar, entre outros factores, quais os usos da terra mais adequados para suprir necessidades humanas e de conservação da biodiversidade: uso para floresta, agricultura, conservação da natureza, caça ou outros.
A caça, ou actividade cinegética, um dos possíveis usos da terra, é também uma ferramenta essencial na gestão das populações de animais bravios e uma actividade socio-económica que contribui para a valorização dos espaços rurais em várias regiões do globo. Na caça, desde que devidamente ordenada, o abate do animal corresponde ao período de colheita de um produto da terra e à utilização de um recurso natural que foi gerido durante o ano. A colheita ou abate acontece depois de, durante o período em que não se caça, a época de defeso, se ter gerido o habitat, intervindo no meio de modo a proporcionar aos animais em causa, condições adequadas de abrigo, alimento e, particularmente importante em ambiente mediterrânico, disponibilidade de água. O abate do animal, é, pois, uma das fases da gestão de um recurso natural. O abate do animal na caça equivale: à colheita do cereal, na agricultura, depois se ter cuidado da cultura em causa durante o ano; ao abate do pinheiro ou do eucalipto, na silvicultura, depois de ser ter gerido durante vários anos as condições de crescimento daquelas árvores; ou ao abate do borrego ou do vitelo, na produção animal.
As condições de abate dos animais enquadram-se no contexto da ética e do bem-estar animal, que também têm de ser, obviamente, equacionadas. O abate de uma espécie silvestre, em estado bravio, é comparável ao abate do vitelo no matadouro? Que pressupostos de ética e de bem-estar animal devem ser considerados no acto do abate do animal durante a caça? O quadro de caça e a exibição do troféu, que em várias culturas significam respeito pelo animal abatido e gratidão à natureza que o produziu, é lícito? As questões da ética e filosofia ambiental são muito relevantes e devem ser discutidas, mas não são abordadas no presente texto.
No caso da caça, desde que devidamente ordenada, a melhoria de condições de abrigo, de alimento e de água é frequentemente favorável não apenas aos animais que vão ser caçados, mas também a outros que beneficiem da melhoria das condições do meio, como espécies em perigo. A caça ordenada pode, assim, contribuir para a conservação da natureza. Em Portugal, um dos exemplos de sucesso é o do lince-ibérico, uma espécie que esteve oficialmente extinta no nosso país e que em todo o mundo apenas ocorre em Portugal e em Espanha (isto é, é uma espécie endémica à Península Ibérica). A criação de linces em cativeiro, realizada no âmbito de um plano nacional de conservação para esta espécie, permitiu a reintrodução de linces em ambiente natural em Portugal. A libertação dos linces está a ser feita em zonas de caça ordenada na região de Mértola, uma região onde a caça é tradicional. A caça ordenada e a gestão cinegética por gestores de caça e proprietários, criaram condições ambientais adequadas à libertação dos linces, pela melhoria do habitat e, sobretudo, pelo fomento das populações de coelho-bravo, o alimento principal do lince-ibérico, e uma das principais espécies de caça na região de Mértola.
Na Herdade da Torre Bela, uma zona de caça confinada, foram abatidos 540 animais entre gamos, veados e alguns javalis. Será este um quantitativo excessivo? Uma resposta adequada a esta questão, em qualquer zona de caça, depende da avaliação de vários factores. O número de animais abatido terá sempre que ser equacionado relativamente ao tamanho da área e da população animal, ao alimento disponível, ao tipo de animais no local ou às condições ambientais prevalecentes. Uma gestão cinegética adequada, tal como a de outro recurso natural, pressupõe deixar no terreno um quantitativo de animais que permita novo período de colheita no ano seguinte e nos anos vindouros, sem colocar em risco a sustentabilidade do recurso. Nos anos ambientalmente favoráveis, de maior abundância de alimento, em que os animais se reproduziram bem e a população cresceu, será possível um maior abate. Em anos ambientalmente piores, como por exemplo anos de seca, em que os animais se reproduziram pior, os quantitativos a abater deverão ser reduzidos ou até mesmo evitado o abate. Poderão também abater-se preferencialmente machos, ou fêmeas, ou juvenis, o que, em cada caso, originará efeitos diferentes no crescimento e na dinâmica da população. Cabe ao gestor da caça, no seu próprio interesse e apoiado na melhor informação que possua e no conhecimento que tem do terreno, tomar estas decisões.
Há ainda a considerar, que números muito elevados de gamos e veados podem impedir que determinadas plantas consigam estabelecer-se no terreno, como, por exemplo, arbustos, sobreiros e azinheiras, ou outras plantas de que se alimentem. Nesta situação, o número de animais deverá ser reduzido para permitir a recuperação da vegetação. Noutros casos, o objectivo poderá ser o de reduzir a vegetação para, por exemplo, diminuir o risco de incêndio, mantendo-se, neste caso, um número de animais mais elevado.
No Parque Natural da Arrábida foi recentemente permitida a caça ao javali com o objectivo de diminuir os estragos que estes animais estavam a provocar na vegetação e em espécies de plantas com interesse de conservação. Na reserva de Mar Lodge, na Escócia, uma área protegida de 70 mil hectares, onde se definiu como prioridade a recuperação do pinheiro-silvestre que é consumido pelos veados, foi decretada uma medida de tolerância zero para a presença de veados nesta área protegida, com abate a partir de helicóptero promovido pela entidade gestora daquela área protegida. O quantitativo de animais no terreno tem, por isso, que ser ajustado aos objectivos de gestão da área em causa. Pretende-se apenas caçar e obter o rendimento da caça? Pretende-se também ter árvores saudáveis que produzam cortiça, madeira ou forneçam habitat para outras espécies? O número de animais abatidos é ou não excessivo em função de factores como os acima referidos?
Existem, finalmente, as questões relativas ao uso da terra. O uso da terra é uma questão central na gestão e sustentabilidade dos recursos naturais. Agricultura, floresta, conservação da natureza ou cinegética são usos compatíveis desde que cumpram princípios de sustentabilidade. Mas há também usos incompatíveis. O uso da terra para energia verde como, por exemplo, instalação de painéis solares (que tem tido uma grande expansão e que obriga a áreas sem vegetação e sem sombra) é incompatível com o uso para floresta e cinegética ou a manutenção de habitat para conservação da natureza, obrigando à eliminação de árvores e animais nos locais em causa.
A caça e a cinegética, entre outros, é um dos possíveis usos da terra que pode contribuir para a conservação da natureza. Aldo Leopold, caçador, florestal, fundador da ética ambiental nos Estados Unidos da América, escreveu: “Já li muitas definições do que é um conservacionista, tendo eu próprio escrito algumas dessas definições, mas suspeito que a melhor definição se escreve não com uma caneta, mas sim com um machado. Ideia que tem a ver com aquilo que um homem pensa enquanto utiliza o machado e decide onde vai utilizá-lo. Um conservacionista é aquele que humildemente se apercebe que com cada machadada está a escrever a sua assinatura na face da terra. Claro que as assinaturas diferem, sejam escritas com caneta ou machado, mas é assim mesmo que deve ser.” (Aldo Leopold, A Sand County Almanac, 1949)
A recente polémica relativa ao abate de animais na Herdade da Torre Bela suscita questões complexas e relevantes para a gestão dos recursos naturais e da conservação da natureza no mundo actual. Estas questões situam-se para lá do simplismo com que tem sido debatido o assunto e da classificação do abate dos animais como de “crime ambiental”. Concentremo-nos na procura de soluções para os tremendos desafios que se adivinham, assumindo que o uso sensato dos recursos naturais na agricultura, na floresta, na cinegética ou outros é fundamental e implica escolhas que deverão ser criteriosamente pensadas.