Nuno da Câmara Pereira e D. Duarte de Bragança devem estar em polvorosa. Se um reclama pela dinastia alegadamente perdida, outro aclama a monarquia vencida. Afonso Costa, cujo sono em Seia parecia ser um sono descansado, pensava ter cumprido o seu desígnio a 5 de Outubro de 1910, mas afinal há ainda uma monarquia que não pereceu em Portugal. O rei chama-se Jorge Nuno e pertence à dinastia Pinto da Costa, que resiste há mais de 30 anos num trono aparentemente impossível de destituir.

Como na maior parte das monarquias de outrora, esta é apoiada pelo Papa. Há, contudo, uma ligeira diferença. O Papa, neste caso, tem o mesmo nome do rei e, talvez por coincidência, é exatamente a mesma pessoa. À sua volta, isto é, em torno do Papa que é rei e do rei que é Papa, prestam-se homenagens e vénias, e corta-se as orelhas aos pagãos e outros hereges que ousarem pregar outra religião, porque afinal Deus encarnou num presidente de um clube de futebol e não naquele homem humilde da Galileia.

Epidermicamente, esta monarquia parece mesmo uma democracia. Tem até laivos da monarquia constitucional de 1826. Há eleições de tempos a tempos com órgãos eleitos, uma espécie de câmara dos deputados presentes em assembleias gerais e até a possibilidade de escrutiná-la publicamente. Apenas não tem câmara dos pares porque Pinto da Costa, segundo os fiéis que professam esta religião, não tem par. Só que acontecimentos recentes apresentam-nos factos que assemelham esta monarquia ao regime do falecido de Santa Comba Dão que tem nome de utensílio de cozinha. Entre desordem e desacatos que culminaram com uma assembleia geral cancelada, casas de potenciais candidatos vandalizadas, ameaças à integridade física dos críticos e tentativas de censura, o rei-que-é-papa-que-é-presidente está a pôr todo o seu empenho no prolongamento dinástico para lá da sua morte.

Como é evidente, não estou a imputar eventuais crimes à atual direção. Mas nem a mente mais pura e virgem pode pensar que este clima ditatorial não tem a mão, ainda que involuntária, de Jorge Nuno Pinto da Costa. A história explica-nos isto. O endeusamento criado a um homem só – o dito salvador sem S grande –, o clima de tensão alimentado permanentemente, a porção violenta e selvagem de uma claque “guarda costas” e um líder que se rodeia como se rodeia o nosso primeiro ministro demissionário, que faz questão de desvalorizar o incitamento ao ódio, violência e costumes ambíguos, são argumentos mais do que suficientes para desconfiar de três coisas: o FC Porto, se ninguém de outra fação substituir a atual direção, arriscar-se-á a continuar refém de um linhagem duvidosa; o FC Porto, provavelmente, fará eleições pouco ou nada convidativas a quem se diz democrático, com percentagens hipoteticamente controversas; o FC Porto, nos próximos anos, poderá viver em aflição como hoje, desportiva e financeiramente. Homens marcantes, para o bem e para o mal, fazem da sua sucessão uma epopeia.

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Não tenho interesse em falar dos méritos da presidência de Pinto da Costa apenas por uma razão: num país dito civilizado, não servem como desculpa para compensar ou apagar os danos causados no próprio clube e no futebol português desde 1982. De que serve a inteligência, o sentido de humor, a capacidade de liderança e a cultura geral se é posta ao serviço de qualquer coisa que considero profundamente condenável e imperfeita? O FC Porto é um clube extraordinário que muito prezo e respeito, símbolo da cidade e até do país, com marca de muito boa gente que por ali passou. Não merecia estar manchado por ecos de ativistas de uma convenção que subsiste neste cantinho lusitano: os fins justificam os meios, as vitórias cegam até os mais incautos e são mediadores da análise que fazemos da realidade. Impera no desporto a única demanda – os resultados. Tudo o resto é paisagem do romantismo e do fair-play. Por um governo, o povo sai à rua. Por um banco que caiu com estrondo, as gentes exaltam-se indignadas. Por uma presidência porventura manchada de pecados capitais, alguns adeptos cerram os dentes, calados, talvez porque a vitória silenciosa sabe melhor ao paladar.

Enquanto o FC Porto dominava o futebol português, com vitórias históricas e um crescimento exponencial, a multidão aclamava em uníssono o que hoje critica com veemência. No meio do povo, que saudava e ovacionava el-rei, estava André Villas-Boas, que é hoje, ironicamente, pouco tempo depois, o maior crítico e adversário de Pinto da Costa.

Não pretendo ser justiceiro de coisa nenhuma. Nem sequer penso que um treinador ou outro funcionário não executivo tenha o dever moral de apurar ou apontar o dedo a uma gestão controversa. André Villas-Boas tem toda a legitimidade de se candidatar e criticar quem quiser, quando quiser. Aproveito para dizer que considero a sua candidatura uma lufada de ar fresco e uma boa nova. Mas o pedestal onde a sociedade colocou alguns dirigentes – em especial Pinto da Costa – deve merecer reflexão séria e profunda. De André Villas-Boas e de todos nós que tantos tributos prestámos a um homem cuja história já nos era familiar.