Lisboa, Frankfurt, Dallas, Cidade do México e Monterrey. É muito avião a descolar e a aterrar. No final do último voo, ainda está um autocarro à espera. Faltava chegar a Saltillo, a quase 90 quilómetros de distância de Monterrey. “Já nem me lembro bem, mas foram umas 14 horas ou mais de viagem”, lamenta Álvaro Magalhães, às voltas com as contas que o telefonema do Observador o obriga a fazer. Foi duro. Ou “difícil” e “muito desgastante”, como sublinha o ex-internacional português, mas a seleção chega ao destino. Olá, Saltillo, olá Mundial de 1986.
Em outubro de 1985, contudo, a viagem para o campeonato do mundo não estava garantida. Portugal já ia limando as arestas de uma tradição e deixava tudo para o fim. A qualificação fez-se aos solavancos. Os tais que obrigam a seleção a ir buscar dois pontos – a taxa de câmbio de uma vitória, na altura, ainda não era de três pontos – onde nunca, ninguém, jamais o conseguira: à Alemanha. José Torres, o seleccionador, pede que o “deixem sonhar” e só Carlos Manuel o acorda para a realidade. 1-0, golo do médio benfiquista, vitória em Estugarda e Portugal garantido no Mundial de 1986.
Meses depois, os convocados para o México. Outra tradição – há discussão. Torres não escolhe Manuel Fernandes, avançado do Sporting, de 35 anos e 30 golos marcados no campeonato. Os leões não gostam. Mas a verdade é que o avião segue apetrechado para o México: vai com Fernando Gomes, o ‘bibota’, que marca 20 golos essa época, e com Paulo Futre, o gadelhudo e então esperança do futebol português, com 18 anos. Depois surge o problema de António Veloso, defesa do Benfica que é recambiado de volta para Lisboa, ao acusar positivo num controlo anti-doping.
A seleção chega a Saltillo. Começam os problemas – o campo de treinos era inclinado. “É verdade que tinha uma pequena inclinação, mas claro que nos cansávamos mais”, confirma Álvaro Magalhães ao Observador. Porém, nada de grave. “O português tem sempre a mania e quando se falou de inclinado pensou logo que era uma subida grande”, recorda. Inclinado ou não, é lá que a seleção treina. “As condições não eram as melhores, mas os campos era iguais para todos”, argumenta o na altura jogador do Benfica. O resto são histórias. E há muitas.
O salto e a queda que não acaba
A primeira surge logo no estágio de preparação. Portugal não arranja ninguém contra quem jogar. E quando o faz, os adversários são funcionários da indústria hoteleira de Saltillo. A bola rola, o resultado é 11-0 e os jogadores, às tantas, até rebolam a rir no relvado. É a história que chega a Portugal. “Sou profissional e não posso falar das coisas que não fiz. Estou de consciência tranquila, portanto, quem cometeu algum erro é que tem de falar”, diz hoje Álvaro Magalhães, ao Observador.
O ex-defesa do Benfica não fala “destas histórias” mas os episódios repetiram-se. Em 1986, cada jogador recebia 4000 escudos (20 euros) diários para estar no Mundial. Os jogadores queriam mais. O aumento da diária, mais prémios de jogo e maiores benefícios retirados dos contratos de publicidade são as exigências feitas pelos 22 convocados. Bola para o lado da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que decide terminar o jogo à força. “Não há nada a negociar”, diz a entidade – palavras da própria.
Caldo entornado em Saltillo. Os jogadores ameaçam fazer greve. Começam a vestir do avesso os equipamentos de treino (a marca é a Adidas). Mário Soares, o então Presidente da República, do lado de cá do Atlântico, pede “bom senso” à seleção. A coisa parece negra mas, no dia do primeiro jogo, no hay problema. Portugal estreia-se no Mundial com uma vitória frente à Inglaterra e, sete meses depois, volta a dizer obrigado a Carlos Manuel (é ele que marca o golo). “Ganhámos justamente”, remata Álvaro Magalhães.
A “falta de respeito” com Marrocos
Depois da vitória, diz-se, há confraternização com os ingleses. A seleção britânica também fixara residência em Saltillo e, à noite, está no hotel de Portugal, a partilhar cocktails. “Não quero falar dessas histórias”, é a resposta que Álvaro Magalhães dá para fintar o Observador, sublinhando depois que, na altura, se “preocupava mais em estar concentrado para os jogos” em vez de “pensar em distrações”.
Pelo menos uma coisa é verdade no meio de tudo isto: dias depois, num treino, Bento fratura o perónio e a seleção perde o guarda-redes titular. Tinha no banco Vítor Damas, do Sporting, que não impede a derrota por 1-o frente à Polónia, de Boniek, médio da Roma. Nesse encontro também está Ali Bennaceur. Interessa? Neste caso, sim. É o árbitro tunisino que, dias depois, nos quartos de final do Mundial, não apita quando uma mão marca um golo. Ficou conhecida por ter vindo de Deus.
A derrota, como qualquer outra, não traz nada de bom. Faltava a partida contra Marrocos, a tal seleção que “não tinha nome”, como lembra Álvaro Magalhães. Portugal só precisava de um empate para, mesmo assim, seguir caminho para os oitavos de final. Mas perde outra vez, por 3-1. “Talvez achássemos que fosse mais fácil”, admite Magalhães, ciente de que os portugueses estavam “um pouco relaxados” e foram surpreendidos. “Se calhar foi uma falta de respeito para com Marrocos. Não tinham prestígio e isso às vezes também ajuda”, explica. Num dos três encontros da seleção, até se chega a ver na bancada um cartaz, onde se lê: “Portugal, las chicas de Saltillo te apoyan.” Os rumores correm rápido e falam em festas e bailes no hotel que aloja a comitiva portuguesa.
A aventura termina. “Foi um Mundial em que as coisas correram bem ao início e menos bem na parte final”, resume um simpático Álvaro Magalhães. Duas derrotas, confusões, ameaças de greve e rumores de bebedeiras, tudo aconteceu no México. Após o 3.º lugar de Eusébio e companhia em 1966, Portugal desilude em 1986. O salto de 20 anos piorara tudo. E Saltillo fez questão de o confirmar.