Uma fita de pano branco tem bordada uma mensagem: “Triste separação. Mas breve te verei”. Em 1853, uma mãe anónima deixou uma carta e este pedaço de pano, juntamente com o filho recém-nascido, numa das conhecidas rodas dos enjeitados, numa das instituições da Santa Casa da Misericórdia. “Excelentissimos Senhores /Recem nascido, leva sinal, huma fita/branca na cintura com estas letras: Triste separação! Mas breve te verei! Não foi batizado e deve ter o nome de Joaquim …”, lê-se na carta.

A mãe deixou aquela fita com o intuito de um dia recuperar o filho, de ter forma de o reconhecer entre todas as crianças que eram entregues à instituição. Paulo Pires do Vale, curador da exposição “Visitação. O arquivo e a promessa”, inaugurada nesta quinta-feira, diz que este é um exemplo dos “sinais com que as crianças ficaram”: cartas de jogo cortadas ao meio, metades de medalhões, tarimbas recortadas dos jogos da Santa Casa, entre outros objetos.

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Este é só um dos exemplos das histórias que podemos encontrar na exposição “Visitação. O arquivo e a promessa”, que vai decorrer até ao dia 2 de novembro e que coincide com a abertura da nova galeria de exposições temporárias no Museu de São Roque, em Lisboa. Segundo o curador, a mostra centra-se naquele que é o compromisso e programa intemporal da Santa Casa: a realização das 14 obras de Misericórdia.

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Através dos “documentos” da instituição com 516 anos, Paulo Pires do Vale, o curador, pretendeu contar a “história dos sem-história”. São fotografias, filmes super-8, partituras de música, pinturas, material que sobreviveu ao terramoto de 1755, quando a instituição perdeu grande parte do seu arquivo.

Foram também convidados três artistas para olhar para o arquivo. Do lado direito do altar da igreja de São Roque está projetado um vídeo do realizador Pedro Costa. A rapariga olha de forma fixa para o altar. Para o curador Paulo do Vale, aquela imagem está a “olhar sobre o comum” e ao mesmo tempo, dada a localização da projeção, transparece “o serviço ao outro para o centro da igreja”. Neste momento, Pedro Costa está a produzir um filme através do material de arquivo da instituição.

João Madureira, compositor contemporâneo, foi ao fundo musical do arquivo da Santa Casa, repescou uma peça de Filipe Guimarães dos inícios do século XVIII e está a compor sobre esta uma nova, para ser interpretada num concerto que terá lugar naquela igreja, no encerramento da exposição, a 2 de Novembro.

Já o fotógrafo Daniel Blaufuks fez uma série de imagens intitulada Corte, resultado da visita ao arquivo e da escolha de alguns dos “sinais dos expostos”. “Existiam várias possibilidades”, conta. Descendente de refugiados da Segunda Guerra Mundial, o fotógrafo é reconhecido pelo trabalho que tem feito sobre memória e arquivo. “A ideia do corte é muito forte e visual”, explica, justificando a escolha de utilizar os objectos deixados pelas famílias. Ao ver as órteses, uma das séries fotográficas de arquivo, do Hospital de Santana, que pertence à Santa Casa, diz ter achado aquelas imagens “fascinantes” e que facilmente passariam por “arte contemporânea”.

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Para além dos conjuntos documentais do arquivo, vários museus cederam obras para esta exposição, como a pintura de Brueghel do Museu Nacional de Arte Antiga e a pintura Visitação de Vasco Fernandes, do Museu Grão Vasco, entre outras.

Pedro Santana Lopes, provedor da Santa Casa da Misericórdia, afirmou que “não conhecia” a história da instituição antes de a integrar, por isso acha “muito pertinente” esta abertura à cidade que já presidiu. E lembrou que o museu de São Roque, em 2013, teve um aumento de 60% nos visitantes em relação ao ano anterior.

Quanto ao convite feito aos artistas, considerou tratar-se de “mais uma marca da modernização da Santa Casa que quer ser contemporânea”.Depois desta exposição, a galeria de exposições temporárias, cuja remodelação custou 320 mil euros, irá acolher outros trabalhos de “criadores portugueses, jovens e não só.”