Os rendeiros reformados da Herdade dos Machados estão a receber cartas da direção geral de Agricultura e Pescas do Alentejo a informá-los de que o contrato de arrendamento que têm com o Estado português, para explorarem as terras oferecidas pelo antigo primeiro-ministro Sá Carneiro em 1980, termina no dia 31 de outubro deste ano.

“Em consequência da atitude voluntária de aquisição da qualidade de reformada, o Estado considera resolvido definitivamente o contrato, não havendo lugar a qualquer renovação (…)”, pode ler-se numa carta enviada à rendeira Catarina Lopes Pires, 75 anos, reformada desde 4 de junho de 2007.

Contactado pelo Observador, o Ministério explica que o fim do contrato é justificado pelos termos do artigo 5º do Decreto-lei nº 158/91, que diz:

“Não podem ser beneficiários de entrega para exploração quaisquer funcionários ou agentes do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação, nem reformados, nem detentores de dívidas ao Estado.”

Contudo, o ministério tutelado por Assunção Cristas (CDS) não explica por que razão resolveu invocar agora a qualidade de reformados quando a esmagadora maioria dos rendeiros que receberam as cartas já estão reformados há alguns anos e não o eram quando receberam as terras em 1980.

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Foram 14 as cartas recebidas pelos reformados em junho, havendo três rendeiros reformados que não receberam qualquer carta.

O ex-ministro da Agricultura Luís Capoulas Santos (PS), que no final da década de 90 regularizou a situação dos rendeiros da Herdade dos Machados, celebrando com estes contratos de arrendamento, afirmou ao Observador ser “muito estranha” e “violenta” a informação que está a chegar aos rendeiros reformados. “Conhece alguma lei que obrigue um inquilino que habita numa casa do Estado e que paga uma renda a abandonar essa casa quando se reforma?”, pergunta.

O antigo ministro da Agricultura considera que “estes agricultores deveriam ser tratados com respeito porque de contrário poderá inferir-se que foram utilizados como cobaias de um processo político que teve uma grande mediatização na altura e que visava apresentar um modelo da Reforma Agrária da direita, em alternativa ao modelo coletivista que defendiam os comunistas”. E acrescenta: “Foi o próprio primeiro-ministro emblemático da direita que se comprometeu pessoalmente perante essas pessoas com aquele modelo de Reforma Agrária”.

Existem ainda 53 rendeiros

Segundo os dados do relatório da direção regional de Agricultura e Pescas do Alentejo, a que o Observador teve acesso, existem atualmente 53 rendeiros, com um total de 2.019 hectares. Cada rendeiro tem, em média, 38 hectares.

A idade do rendeiro mais novo é de 34 anos, sendo que metade tem menos de 62 anos.

Em 52 dos 53 casos, a última avaliação anual determinou que os hectares estão a ser explorados de forma viável. Num caso, o olival não está a ser tratado de forma conveniente. Os dados revelam ainda que 24 rendeiros fizeram alterações que beneficiaram a propriedade, como vedações, furos e construções de apoio à exploração.

A Herdade dos Machados, no concelho de Moura, foi nacionalizada em 1975, altura em que a proprietária Ermelinda Neves Bernardino Santos Jorge se viu expropriada dos mais de 6.100 hectares dessa exploração agrícola. Em 1977, foi aprovada a Lei Barreto, que limitou a Reforma Agrária e previa o fim das expropriações, bem como a devolução das terras. Dois anos depois, o então ministro da Agricultura, Vaz de Portugal, pôs fim à intervenção do Estado na gestão da Casa Agrícola Santos Jorge e entregou a empresa aos proprietários.

Uma Reforma Agrária “diferente da dos comunistas”

Em 1980, o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro dividiu cerca de 3.000 hectares em 338 lotes de terreno e entregou-os a 94 funcionários que passaram a pagar ao Estado uma renda anual para poderem explorar as terras em seu proveito. Esta foi a forma encontrada pelo líder social-democrata para pôr em prática uma Reforma Agrária “diferente da dos comunistas” e para compensar os trabalhadores pelos cinco anos em que a propriedade esteve nas mãos do Estado.

Aos proprietários da Herdade dos Machados foram atribuídos 490 hectares.

A Reforma Agrária de Sá Carneiro criou uma manta de retalhos na Herdade dos Machados e deu origem a uma luta pela terra que dura há mais de 30 anos. De um lado estão os proprietários da Herdade dos Machados, que tentam chegar a acordos com os rendeiros, comprando as parcelas de terreno que lhes foram atribuídas. Do outro, estão os agricultores, que temem ser expulsos das terras onde trabalham.

Ao longo dos anos, os rendeiros foram recebendo cartas do Ministério da Agricultura para abandonarem as terras. Aconteceu em 2003, quando o ministro da Agricultura de Durão Barroso, Sevinate Pinto, publicou um despacho em que defendia a “denúncia” dos contratos de arrendamento”. Nessa altura, os rendeiros recorreram para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAF de Beja), que lhes deu razão.

Repetiu-se em 2011, quando o atual secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural solicitou um parecer à Procuradoria-Geral da República sobre o despacho de Sevinate Pinto, relativamente ao fim dos contratos de arrendamento. A PGR determinou, em abril de 2014, que o Estado estava proibido de agir contra a sentença do TAF de Beja.

As cartas enviadas em junho pela ministra Assunção Cristas aos rendeiros são uma nova tentativa de devolver as terras ao proprietário da Herdade dos Machados.