Nuno Guerreiro é um dos dois principais arguidos da investigação ‘SOS Pharmacias’. O processo, desencadeado pela Polícia Judiciária e pela Autoridade Geral Tributária há mais de dois anos, detetou uma megafraude avaliada em cerca de cem milhões de euros, cometida através da compra de farmácias, mas que está em risco de prescrever até fim deste mês.

O empresário decidiu agora defender-se das acusações que lhe são feitas, garantindo que quer os fornecedores de medicamentos, a quem deve milhões, quer os bancos, que acumulam créditos por saldar, quer mesmo a Associação Nacional de Farmácias (ANF), a quem reportava, estavam por dentro do estratagema investigado. Um estratagema que, para ele, está apenas um pouco além da margem da legalidade. E que, ainda segundo ele, não lhe rendeu quaisquer lucros desviados para a compra de bem pessoais, como alega o processo. Nuno Guerreiro garante mesmo que está falido, tal como estão falidas todas as farmácias que possuía em seu nome ou nome de ‘homens de mão’ para contornar a lei (só são permitidas quatro farmácias por dono), pelo que vive graças à “ajuda da mãe” a explorar uma quinta de família.

O dito estratagema piramidal que a Polícia Judiciária e a Autoridade Tributária acreditam ter desmantelado era aparentemente simples na execução, mas complexo para a investigação. A compra de farmácias muito acima do número permitido por lei, através de empresas criadas apenas para o efeito e tuteladas por ‘homens de mão’, era feita através de empréstimos bancários, ainda na altura do crédito fácil. Conseguido esse portefólio alargado de farmácias, tornava-se depois possível fazer grandes encomendas de medicamentos a preços mais baixos e com maiores prazos de pagamento nos fornecedores. Bem como desviar o excedente dessas encomendas para o lucrativo negócio da exportação farmacêutica. Houve, porém, um senão: os créditos bancários nunca foram pagos, as compras massivas de medicamentos aos fornecedores também não e até o Estado ficou a perder, uma vez que os investigados não só ficaram com o dinheiro dos medicamentos comparticipados, como deixaram de pagar segurança social e outros impostos. Uma teia quase impenetrável.

Mas Nuno Guerreiro defende-se atacando. Admite que usava o esquema de ‘testas de ferro’ para criar empresas que compravam as farmácias. Mas que todos sabiam que era ele o verdadeiro dono: bancos, farmacêuticas e a própria ANF. E que é por causa deles que está neste momento falido. Garante que não tem qualquer dinheiro dos lucros da venda de medicamentos em ‘offshores’, como suspeita a investigação, e que investiu tudo o que ganhou no negócio.

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“As coisas começaram a correr mal, os medicamentos baixaram muito, houve credores que cobraram milhões e foi isso. Não tenho dinheiro em offshores, nunca tive. Investi e perdi. Deixaram-me solto porque pensavam que ia atrás do dinheiro. Podem continuar à espera. Sentados. Não o tenho”.

Então e o iate, os carros (Lamborghini e Porshes, 18 no total), as casas e os restantes bens de luxo apreendidos no processo? “Coisas que fui comprando com anos de trabalho. Então não se pode comprar um iate, em segunda mão, para alugar?… Agora está a apodrecer na marina de Cascais… Casas? Investi, como muitos, tinha a de férias e aquela onde ainda vivo, num condomínio, não sei até quando… Carros? Sim, gosto de carros, mas eram em segunda mão, estão para aí numa garagem em Tires, já todos podres”.

A compra de mais do que as quatro farmácias permitidas é, pois, a única ilegalidade que admite. Mas com ‘atenuantes’. “Todos ganhavam: só davam o nome, ganhavam um carro novo e ficavam com um belo ordenado de 3 a 4 mil euros limpos por mês”, diz sobre os “testas de ferro” que foi angariando para comprar as mais de 20 farmácias que chegou a possuir. Aceita também que a paixão pelos carros foi o seu maior pecadilho, que o levaram a ter uma viatura em nome de cada uma das farmácias, o que é difícil de justificar: “Podem realmente questionar para que é que uma farmácia precisava de um Laborghini usado, mas é só esse o problema. Os carros até eram piores que aqueles que eu comprava a quem dava o nome para fazer a empresa que comprava a farmácia…”

E o dinheiro?

O que correu mal então? Para onde foi o dinheiro? Quantas são as dívidas? É aqui que Nuno Guerreiro se explica dizendo que agiu em cumplicidade com todos. “Então os bancos não sabiam? Era eu que ia lá, não era a senhora do Algarve que só veio a Lisboa para fazer a escritura!” E os armazéns de medicamentos? “Claro que sabiam, por isso é que faziam melhores preços. A Udifar [dívida de 12 milhões], mas sobretudo a Alliance Healthcare [dívida de 18 milhões]. Eles funcionam de acordo com as quotas de mercado… e eu representava 6%. Como na Alliance Healthcare queriam aumentar essa quota, eu só comprava farmácias que não eram clientes, e tinha o apoio deles. Davam-me nove meses para pagar quando o normal é 30 a 60 dias. Mas depois fali também por causa deles: cheguei a dever 28 milhões, quando houve a baixa de preços de medicamentos tive de fazer regularização da dívida e em oito meses foram-me buscar 13 milhões. Foi aí que começou tudo a ruir…”

Mas o negócio não era só a compra e venda de medicamentos aos melhores preços e prazos: “Era também para exportar. Para eles exportarem. A Alliance Healthcare. É um negócio. Eu devolvia-lhes as sobras e recebia 3%… Eles exportavam com margens de 15 a 20%. Toda a gente sabe…” Confrontada com esta acusação, uma das maiores fornecedores de medicamentos na Europa responde apenas que “a Alliance Healthcare não é nem foi objeto de qualquer investigação no âmbito que refere, pelo que não tem nada a comentar”.

Nuno Guerreiro diz que a globalidade do setor da saúde conhece a ‘ilegalidade’ da propriedade das farmácias em Portugal. Afinal, há 10 grandes grupos para milhares de estabelecimentos.

“Sabe a Associação Nacional de Farmácias, claro. Então eu ia lá em representação de todas as farmácias que tinha e as quotas eram pagas todas em meu nome, 35 mil euros mês entre quotas fixas e variáveis [consoante as vendas]. Só com o dr. João Cordeiro [presidente da ANF durante 32 anos, até 2013] falei para aí umas cinco vezes. E sabe o Infarmed. Sabem todos. Aos bancos até interessava!”

ANF diz que não foi chamada pelo MP

Confrontada com estas declarações de Nuno Guerreiro, a Associação Nacional de Farmácias (ANF) contestou-as.” A ANF e as farmácias portuguesas não só repudiam como combatem ativamente a fraude. A ANF, quando deteta ou tem conhecimento de alguma suspeita de fraude dá de imediato conhecimento desse facto às autoridades competentes e disponibiliza todas as informações que sejam necessárias. Foi a ANF a participar ao Ministério Público os factos e documentos que deram origem ao processo conhecido como Remédio Santo [fraude com receitas médicas, um caso em investigação pelo Ministério Público]. A ANF e as farmácias portuguesas não comentam atos processuais em que não foram chamadas a pronunciar-se”.

Quanto à banca, que envolve sobretudo BES, BCP e Montepio, Nuno Guerreiro e o outro principal arguido deste processo, Bruno Lourenço, terão créditos de cerca de 50 milhões por pagar… E várias processos em curso. Mas Nuno Guerreiro fala apenas em cerca de seis milhões por banco.

Quanto a Bruno Lourenço, o outro empresário de farmácias que a PJ investiga, entra na equação mais tarde, quando compra várias farmácias a Nuno Guerreiro. A suspeita é de que a fraude era cometida em conluio entre os dois. Nuno Guerreiro jura que não houve qualquer aliança para cometer a fraude de que são acusados. “Nem o conhecia!”, garante, apesar de se tratarem de duas grandes figuras do mesmo setor. “Sabia quem era, só isso, foi-me apresentado pelo diretor da Udifar [fornecedora de medicamentos]!”.

Apesar disso, selaram um acordo de muitos milhões. “Fiz com ele um acordo de cedência das farmácias a dez anos. Devia receber 7,5% dos lucros. Até 2010, no auge, cheguei a faturar 60 milhões por ano, dez mil euros por dia, em 30 farmácias. Depois caiu. E foi aí, quando começou a queda, que fizemos o acordo. Mas ele não pagou uma prestação, um cêntimo…” Mesmo assim, e apesar de insistir que não tinham relações de amizade, defende-o. “Ninguém ajudou o rapaz, se os fornecedores tivessem ajudado hoje não tinham tanto dinheiro a haver, tinha corrido melhor para todos”. E mais tarde faz uma correção ao montante de dinheiro transferido entre ambos.

“Não vejo o Bruno há dois anos… Pagou-me 60 mil euros de 20 milhões”.

Quase três anos depois, ouvido na PJ uma dúzia de vezes, Nuno Guerreiro sabe que a investigação corre o risco de prescrever até fim do ano – ainda que existam passos da investigação que podem adiar que o processo acabe no arquivo. “Gostava que não prescrevesse e que se provasse o conhecimento que todos têm, da ANF às fornecedoras”, vai dizendo. Garante que as 20 farmácias que tinha estão todas em processo de insolvência, e que com esse dinheiro, o da venda em hasta pública dos estabelecimentos, pagará a dívida que mais o preocupa, “a do Estado”. “Estamos a falar de cerca de um milhão”, contraído apenas na fase final de atividade “porque nos últimos tempos quem estava à frente das farmácias ia desviando o dinheiro para os ordenados e já não pagavam IRS nem impostos, mas o dinheiro que apurarem da venda ao desbarato chega para resolver esse problema”.

E o resto, os milhões aos fornecedores e os créditos bancários? “Amanhem-se!”, termina.