Se algum dia der um jantar e alguém lhe disser que “sabe a comida de avião”, saiba que muito provavelmente a sua comida não está boa de sal ou simplesmente não sabe a nada. Mas a comparação pode deixar de fazer sentido em breve. Após anos de reclamações, as companhias aéreas procuraram saber o que altera o sabor dos alimentos a grandes altitudes e tentam de tudo para melhorar a experiência dos seus passageiros.

Como avança um artigo da BBC, o problema está, essencialmente, na alienação dos seus sentidos, provocada pelas condições existentes dentro da cabine. Segundo Russ Brown, diretor do In-flight Dining & Retail da American Airlines, o olfato e o paladar são os primeiros sentidos a ficarem comprometidos a grandes altitudes. “O sabor é uma combinação de ambos, e a nossa perceção de doce e salgado diminui quando estamos dentro de uma cabine pressurizada.” Para Charles Spence, professor de psicologia experimental na Universidade de Oxford, esta dormência de sentidos deve-se, essencialmente, a “falta de humidade, baixa pressão atmosférica e barulho de fundo”.

Depois de se despedir das pessoas no aeroporto e entrar no avião, diga adeus ao seu cheiro. A quase inexistência de humidade não se vai compadecer desse sentido e ainda antes de se sentar, ele já terá sido fortemente comprometido. Isto porque nós precisamos de muco nasal para cheirar, mas devido ao ar existente na cabine os nossos recetores de odores não funcionam como deviam, e quem paga é a comida que fica duas vezes mais sensaborona.

Assim que vir, nos monitores a bordo, que viaja a uma altitude de 30.000 pés (9.100 metros), pode despedir-se do seu paladar. A humidade a uma altitude dessas é de menos de 12%, ou seja, mais seco do que a maioria dos desertos. A combinação entre a falta de humidade e a baixa pressão atmosférica reduzem a sensibilidade das suas papilas gustativas ao doce e ao salgado em cerca de 30%, de acordo com um estudo levado a cabo pelo Fraunhofer Institute for Building Physics a pedido da companhia aérea alemã Lufthansa. Para descobrirem o que de facto se passava, os investigadores usaram um laboratório especial, reduzindo a pressão atmosférica existente a 35.000 pés (10.600 metros), simulando o barulho do motor, num esforço para tornar o mais fidedigna possível a experiência de comer a bordo de um avião.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este estudo concluiu que só perdemos dois sabores, o doce e o salgado. O azedo e o amargo ficam praticamente intactos e o umami, considerado o quinto sabor, é exponenciado. Umami — não confundir com kunami — significa “gosto saboroso e agradável” e está presente em comidas como as sardinhas, os cogumelos, o tomate ou o molho de soja. Daí a razão de tantas pessoas pedirem sumo de tomate a bordo, quando em terra raramente o fazem.

NEW YORK, NY - SEPTEMBER 09: A bartender serves Bloody Mary cocktail at the GQ & Nordstrom Launch Pop-Up Store at Nordstrom's Treasure & Bond Store on September 9, 2012 in New York City. (Photo by Rob Kim/Getty Images GQ)

O cocktail Bloody Mary é mais pedido no ar do que em terra devido ao sumo de tomate que leva na sua composição

Para combater esta perda de paladar e cheiro, algumas companhias têm optado por condimentar mais a comida, como é o caso da American Airlines, que acrescenta às suas receitas umas quantas pitadas de sal para que os pratos se possam adaptar à atmosfera da cabine. Também Gerry McLoughlin, chef executivo da United Airlines, diz recorrer a “sabores vibrantes e temperos” para tornar as refeições a bordo “mais robustas”.

No entanto, esta política não é seguida por todas as companhias aéreas. Segundo o que uma fonte, que preferiu não ser identificada, disse ao Observador, “as comidas são confecionadas de modo a que apelem à maioria dos passageiros”. Por isso “não podem ser muito condimentadas e o ponto de sal colocado é o indispensável”, visto que “ao mínimo tempero, há passageiros que vão reclamar”. Daí a opção de colocar “temperos como sal, pimenta, azeite e vinagre à parte”.

Como se não bastassem dois sentidos praticamente adormecidos, os psicólogos descobriram que os nossos ouvidos também têm influência no sabor da comida. Um estudo concluiu que uma pessoa que coma com barulho de fundo muito elevado, tem tendência a achar a comida menos salgada e menos doce do que uma pessoa que coma em silêncio – se calhar é este o segredo para quando salgar a comida. Mas a verdade é que o barulho não afeta todos os sabores da mesma forma. O caril, por exemplo, torna-se mais intenso no ar. Outro facto curioso sobre o barulho de fundo é que quem come nessas condições tende a achar a comida mais crocante.

Preparação da comida

Apesar das condições extremas na cabine, elas não são as únicas culpadas pela alteração no sabor da comida. Todo o moroso e cuidadoso processo de preparação acaba por deteriorar o sabor. Segundo a mesma fonte, “a comida tem de ser preparada de forma a adaptar-se às condições e oscilações de temperatura a que é submetida”. Um processo que demora “mais de sete a oito horas” até que a comida possa entrar no avião. Após ser cozinhada em terra, toda a comida passa por um processo de arrefecimento, inclusive o pão — daí ficar duro como se tivesse uma semana –, para evitar a contaminação. Segundo o que nos foi dito, “a contaminação cruzada pode surgir quando um elemento decorativo do prato que não foi cozinhado, como uma folha de hortelã, entra em contacto com uma proteína já cozinhada. As bactérias podem passar para a proteína”, daí a necessidade de escaldar todos os vegetais e elementos decorativos.

Uma vez dentro do avião, a comida será aquecida, pelo menos a da classe executiva, em fornos de ventilador que mandam ar quente e seco para cima da comida, já que micro-ondas e chamas não são permitidas a bordo.

Pam Suder-Smith, presidente da International Flights Services Association diz que, recentemente, algumas companhias têm optado por usar a técnica sous-vide, que consiste em cozinhar a comida a baixas temperaturas e em sacos de plástico, selados a vácuo, por um período de tempo que pode variar entre as duas e as 72 horas.

Segundo David Margulies, da Sky Chefs, companhia especializada em catering para companhias aéreas, “não é possível usar as mesmas receitas que se usa em terra para a comida a bordo”, o que “não significa que as refeições servidas nos aviões não possam saber tão bem”. Ao Observador foi dito que “as receitas e composições mudam de companhia para companhia”.

Talheres e vinho

Algumas companhias estão a investigar se mudar o faqueiro também terá influência no sabor. É sabido que há diferenças entre usar talheres de prata e talheres de plástico. Tal como é diferente beber vinho num copo de vidro ou num copo de plástico.

E por falar em vinho, o néctar dos deuses, a par do champanhe, também é afetado com a pressurização de cabine. Além de parecer extremamente ácido, não tem o mesmo sabor. O que poderá não ser tão negativo é o crescente efeito alcoólico de um copo de vinho no ar. O Observador teve conhecimento de que um copo de vinho bebido a bordo equivale a três bebidos em terra — ideal para quem tem medo de andar de avião. Para que não pareça que está a beber vinagre, as companhias aéreas têm optado por escolher vinhos menos ácidos e aconselham a que beba no início da viagem e não no fim, altura em que as papilas gustativas estarão fora de combate.

TEL AVIV, ISRAEL - MARCH 19: A glass of Cabernet Sauvignon is poured ahead of a tasting session as more than 250 wines from some 60 Israeli wineries compete for coveted awards to be announced next week March 19, 2007 in Tel Aviv. Wines have been produced in the Holy Land since pre-biblical times, but the Muslim conquest of 636 AD forced a hiatus in the tradition. Currently Israeli per capita wine consumption has doubled but compared to European countries it remains low. (Photo by David Silverman/Getty Images)

O efeito do vinho triplica no ar. Por isso é que o consumo de bebidas a bordo é limitado.

O que as companhias estão a fazer para melhorar a sua experiência a bordo

Numa tentativa de ajudar a British Airways, o conhecido chef britânico Heston Blumenthal, do restaurante com duas estrelas Michelin Dinner by Heston Blumenthal, sugeriu que a companhia distribuísse sprays nasais aos seus passageiros, uma ideia que não reuniu muitos apoiantes e o deixou apenas com uma solução: apostar fortemente no umami.

Além de receitas ricas em umami, a British Airways apostou em headphones com bandas sonoras que anulem o barulho ensurdecedor do motor do avião e que tornem a experiência mais prazerosa e a comida mais saborosa. A banda sonora é vasta e é usada conforme o que os passageiros estão a comer — se a comida for peixe escocês, a música a acompanhar será música escocesa, numa tentativa de criar a sinestesia perfeita.

Já a Singapore Airlines tem um simulador de cabine no seu centro de catering, onde a comida é cozinhada e testada em condições de baixa pressão atmosférica. Isso tem permitido que a companhia desenvolva muitos pratos com base nas descobertas feitas neste espaço.

A comida que vai comer a bordo vai sempre depender da companhia em que viajar. Se as há muitos preocupadas, certamente também as há mais desleixadas. No entanto, não espere deliciar-se com a comida servida, porque o seu estado temporário de constipação não lhe irá permitir apreciá-la. O ponto positivo é que um voo não faz as férias e quando aterrar pode vingar-se nos restaurantes que quiser.