“Esperamos que morram todos”. Silêncio coletivo. Estávamos numa esplanada ao pé de um restaurante com vista para o rio. “Essa não pode ser a nossa solução”, respondi.

Game Dev Meet. Um evento que começou por ser um pequeno grupo de pessoas que se encontrava para falar de videojogos; “devs” (developers) que traziam os seus portáteis e mostravam as suas criações. O último Meet decorreu nos escritórios da Microsoft; o grupo não cresceu, explodiu.

O evento traz pessoas do estrangeiro. Nessa noite fizemos uma chamada Skype para os Estados Unidos, falámos com um “dev” que já tem múltiplos projetos multimilionários no currículo, e que está a trabalhar num projeto pessoal que tem sido elogiado pelas grandes vozes da indústria; falaremos nele num próximo artigo no Rubber Chicken.

Alguns de nós foram jantar depois do Meet. Grandes nomes da indústria e alguns prodígios desconhecidos. “Essa não pode ser a nossa solução”; já tínhamos jantado, estávamos a beber café.

A conversa era esta: Portugal. De acordo com o que se escreve no estrangeiro, Lisboa está-se a tornar a nova capital da cultura, uma nova Paris, uma Buenos Aires europeia. Portugal, um país de bom vinho e comida, está também a tornar-se num país de bons poetas, pintores, fotógrafos, músicos, muitos deles estrangeiros que vêm encontrar cá refúgio.

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Nos bares do Bairro Alto a língua menos falada é o português. Encontrei uma sul-coreana a tocar piano há uns meses, na livraria Ler Devagar do LX Factory; quando lhe perguntei se trabalhava ali, contou-me que encontrou o piano (numa sala usada para expor pinturas) e que decidiu tocar. Fui à livraria para escrever um artigo para o Rubber e beber um copo de vinho. Na sala principal, ouvia francês de um lado, e italiano do outro. A pergunta naquela esplanada era não era só “Portugal”, era também “e os videojogos?”.

É uma indústria que ultrapassou de longe o cinema em termos de receitas. É um produto digital e a exportação de um jogo em 2015 não tem custos: o público compra pela Internet, demora menos tempo que ir à loja e esperar na fila da caixa.

“E os videojogos?” é uma pergunta que surge com frequência parafraseada. Estou longe se ser o único a achar que estamos no início de outro boom em Portugal. As empresas de cá que criam e exportam jogos são numerosas, temos sido apadrinhados por multinacionais multimilionárias, não faltam cursos de jogos e jams de jogos regulares de norte a sul. Encontro cada vez mais miúdos que se juntam vários fins de semana seguidos e que acabam com protótipos de alta qualidade.

“Mas porquê os jogos?”, será uma pergunta natural para muitos leitores do Observador. “Porquê videojogos?” Respondo-vos com esta pergunta: o que é um jogo?

O futebol é um jogo importante. Enquanto no Inglês, só existe “play”, em Português temos “brincar” e “jogar”. As crianças brincam à apanhada, por exemplo, é um jogo. Mas um jogador de futebol não “brinca” ao futebol, não é como a apanhada.

O futebol é um jogo importante mas o xadrez também, é o manifesto político mais antigo e fácil de entender da história da humanidade. No xadrez contemporâneo, o povo morre primeiro, o rei é não só a peça mais importante como a mais impotente, e enquanto que um cavaleiro pode cobrir o tabuleiro todo, cada bispo está restrito a uma cor: a força da religião está nos números; político, religioso e ideológico; feminista: a rainha é, em contraste com o rei, a peça mais poderosa do jogo.

“Os videojogos não são para crianças”. Estávamos na esplanada e eu escutava a conversa em silêncio. Abri a boca para dizer isto. Os jogos são usados como ferramentas de ensino em escolas e universidades, e também são ferramentas ideais nas empresas para explicar modelos matemáticos complicados a investidores. “Não são para crianças”, reforcei.

Alguns de vocês jogaram num simulador antes da vossa primeira aula de condução. Os jogos online tornaram-se um paraíso para investigadores de psicologia e economia.

Continuei: “Há jogos para crianças como também há livros para crianças. Uma criança pode brincar com plasticina; a escultura é para crianças? Uma criança pode brincar com lápis de cera e aguarelas; e a Pintura? É para crianças?”.

Os jogos são para homens e mulheres, de todas as raças, culturas, subculturas e posses. Não é preciso um computador ou para fazer-se um jogo, muito menos para jogar um. Não só são uma arte ancestral, como são o futuro dos audiovisuais e de um modo geral, dos media. De tudo, na verdade.

O maior obstáculo à chegada desse futuro é o estigma social que costuma estar associado às “novas” artes. Uma novela gráfica, por exemplo, terá o mesmo valor que uma banda desenhada do Pato Donald para muita gente.

“O problema é a TVI, a SIC e companhia”. Lembro-me de uma reportagem portuguesa sobre a maior feira de videojogos do mundo, na qual a jornalista comenta com desaprovação e sarcasmo o facto de ter lá encontrado tanta gente “crescida”. Lembro-me também que o dr. Quintino Aires, figura pública, psicólogo, veio à televisão dizer para os pais afastarem os filhos dos videojogos, porque eram como a cocaína; dois exemplos entre tantos.

E é por isso que artigos como este existem. Pais que desconhecem este medium, e outros leitores: não afastem os vossos filhos dos jogos, ou teremos um país de iliterados. Na verdade, o século XXI marca um novo capítulo na forma como expressamos ideias e interagirmos com o mundo. Façam parte desse capítulo, joguem vocês mesmos.

“O problema é a TVI, a SIC e companhia”. “O problema são os portugueses”, disse outra pessoa. “Não”, entrei de novo na conversa, “o problema não são os portugueses. O problema é global, os portugueses só estão um bocado atrasados”.

Recentemente deparei-me com este cenário; era um jogo de guerra focado na perspetiva dos civis em vez dos soldados. Só tínhamos uma ração de comida e havia duas pessoas doentes que não comiam há dias: um jogador de futebol, rápido e forte, e um professor de matemática. Ouviam-se tiros e explosões na rua, lá fora. Fui pragmático, escolhi o jogador de futebol.

Mas tinha-me apegado muito mais ao professor; chamava-se Anton. Um homem brilhante, tinha sido nomeado para um prémio nacional. Tentou proteger os seus alunos durante meses, sobreviveram nas caves da universidade. Morreu no dia seguinte.

Senti-me sujo. À entrada da nossa casa, havia um graffiti, “Fuck The War”; os meus olhos não largavam o graffiti. Estava em frente a um ecrã de computador.

“Os portugueses só estão um bocado atrasados; temos o nosso próprio ritmo. Mas por vezes até estamos à frente de toda a gente, tanto quanto sei, Portugal podia tornar-se na nova Meca dos videojogos. Há potencial para isso”.

“Quanto a isso não sei. Mas dou-te razão numa coisa: a economia está parada. Não é a vender cortiça e vinho do Porto que vamos sair deste buraco”. “Isso é tudo muito giro aqui entre nós, mas sabes muito bem que Portugal é um caso perdido. Quando eu explico à minha família que ganho a vida a fazer jogos, olham-me de lado”. “Portugal ainda é um país de velhotes a ver programas da tarde na televisão”. “Esperamos que morram todos”, oiço — dito em tom de gozo. Silêncio coletivo.

“Os jogos hão de chegar cá, mais cedo ou mais; ficamos à espera umas gerações”. “Essa não pode ser a nossa solução”, respondi; “se ficarmos à espera, vai ser tarde demais”. Alguns abanavam a cabeça de forma positiva.

“Essa é a nossa responsabilidade. Temos que ser nós a empurrar os jogos para o holofote. Temos que infiltrar-nos na rádio, na televisão, nos jornais; temos que associar os jogos às outra artes; quero ouvir uma banda portuguesa a tocar num jogo; quero ver os Linda Martini, por exemplo, a comporem a banda sonora de um jogo”; estava a rir-me, mas falava a sério. “Um videojogo escrito pelo José Luís Peixoto; concept art pela Paula Rego ou pela Fátima Lopes”.

“Revistas cor-de-rosa: ‘Novo Videojogo da Casa dos Segredos’”. “Isso. ‘Rita Pereira é capa de um jogo’. ‘Cristiano Ronaldo…’”. Fui interrompido. “’José Sócrates Será Personagem Jogável no Próximo Call of Duty’”. Gargalhadas. “Exatamente. É esse o espírito”.

Isaque Sanches, Rubber Chicken