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Welcome to Chiado. Entram hotéis, saem lisboetas

Este artigo tem mais de 5 anos

Uma loja de azulejos quase centenária, uma casa de candeeiros, uma tasca e uma corporação de bombeiros vão ter de sair do Chiado para dar camas aos turistas. Dois hotéis nascem no espaço de 50 metros.

Eça segurando a verdade nua nos braços
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Eça segurando a verdade nua nos braços

Eça segurando a verdade nua nos braços

“Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.

À primeira vista, pouco parece ter mudado. A estátua de Eça de Queiroz segurando os braços de uma mulher nua lá está, as pequenas palmeiras continuam no sítio, os edifícios pombalinos também. Acontece que a nudez da verdade é mais forte do que as aparências e o Largo do Barão de Quintela está tudo menos imutável. Brevemente, nesta praça do Chiado, em Lisboa, vão nascer dois hotéis. Para que tal aconteça, são vários os negócios, serviços e moradores que têm de sair – mas não sem luta.

São perto de cinquenta, os metros que separam as duas extremidades do largo. De um lado, um prédio cor-de-rosa onde três negócios e um habitante vão ser despejados. Do outro, um edifício com azulejos azuis de onde já saiu uma loja e de onde os Bombeiros Voluntários de Lisboa também vão ter de sair. Objetivo: ter camas suficientes para os turistas que vêm à capital.

No edifício cor-de-rosa, que já pertenceu aos descendentes do Marquês de Pombal e é hoje propriedade do Grupo Visabeira, estão instalados três estabelecimentos há dezenas de anos. O mais emblemático é a loja da Fábrica de Sant’Anna, especializada no fabrico e venda de cerâmica, sobretudo azulejos. Está neste local há 99 anos e não deverá chegar ao século. Em abril, os proprietários receberam uma notificação de que têm de abandonar o espaço até outubro. “Estamos a tentar reunir todos os esforços que temos ao nosso alcance para lutar pela manutenção aqui”, garante ao Observador Francisco Tomás, diretor comercial da Fábrica de Sant’Anna.

Instalada na Rua do Alecrim desde 1916, a loja é o ponto de venda das loiças fabricadas na zona da Ajuda desde 1741 e, se fechar, será “uma perda com impacto elevadíssimo” não só para a empresa como também para a cidade, defende Francisco Tomás. “Lisboa é hoje uma cidade famosíssima em todo o mundo pelo seu charme, pela sua cultura, pela sua tradição. Este tipo de iniciativas vem retirar o charme que existe na cidade de Lisboa. Os turistas visitam a nossa cidade por isto”, diz.

“Tábua rasa” ao passado

A mesma ideia tem Ana Salgueiro, dona de uma loja de antiguidades e candeeiros situada na porta logo abaixo da casa de faianças. “Está-se a fazer tábua rasa de uma série de lojas”, queixa-se a empresária, que herdou este espaço do pai, que ali abriu um antiquário há 50 anos. Com a chegada do novo milénio, os móveis antigos foram dando lugar aos candeeiros modernos, mas não definitivamente. A mistura dos dois estilos “é uma homenagem ao espaço, à cidade de Lisboa, à rua e ao meu pai”, diz.

É essa ligação entre o passado e o futuro que está agora em risco. “No fundo, está-se a cortar completamente pela raiz aquilo que pode tornar esta rua numa rua com vida”, argumenta, alegando também que, a pouco e pouco, a Rua do Alecrim e toda a zona do Chiado estão a perder os negócios que lhe davam “personalidade e especificidade”, dando lugar a inúmeros hotéis e hostels. Só na artéria que sobe do Cais do Sodré até ao Largo Camões há, pelo menos, quatro estabelecimentos hoteleiros. Nas ruas adjacentes, multiplicam-se os locais de dormida para turistas.

“Não tenho nada contra os hotéis, não tenho nada contra os turistas. Eu acho que os turistas nos fizeram apreciar mais a nossa cidade. Agora não vamos, de repente, só porque está a dar dinheiro, transformar tudo em hotéis”, diz Ana Salgueiro. A empresária não se opõe à criação de um hotel no prédio, mas acha que o senhorio – o Grupo Visabeira – podia tentar negociar a continuação dos espaços comerciais.

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O prédio que já pertenceu aos descendentes do Marquês de Pombal onde o Grupo Visabeira quer fazer um hotel dedicado a Bordalo Pinheiro

Uma “depressão do caraças”

Outro dos afetados é José Fernandes, há 38 anos dono da tasca Das Flores, casa com portas abertas para a Rua das Flores, uma das artérias que limita o Largo do Barão de Quintela. “Tenho andado aqui numa depressão do caraças”, admite o homem, de 61 anos. Está assim desde que recebeu o aviso de despejo. José chegou no Chiado com 23 anos, foi conquistando uma clientela fiel com pratos tradicionais e o senhorio quer que ele vá para casa em outubro com 2.052 euros no bolso, o valor de um ano de rendas. “Claro que eu não vou abandonar, só se me empurrarem”, atira.

À semelhança da Fábrica de Sant’Anna e de Ana Salgueiro, José recorreu a advogados para tentar impedir o despejo, mas as experiências de outros comerciantes da Baixa e do Chiado, que enfrentaram situações semelhantes, não auguram desfecho favorável para os três locais. “Um restaurante não se muda. Se isto fecha fico na penúria”, lamenta José Fernandes, esperançoso de que os cafés e as aguardentes que serve enquanto fala não sejam dos últimos a sair daquele balcão.

Também Ana Salgueiro ainda pensa ser possível chegar a acordo com o Grupo Visabeira. A ela, o senhorio propôs uma indemnização de 12 mil euros, um valor que diz ser “ridículo” para os anos que a casa já tem. “Havia uma alternativa que eu acho que era a melhor para todos, que era fazer um projeto de hotel que contemplasse as lojas”, afirma, sem contudo acreditar que isso ainda possa vir a acontecer. Resta o litígio judicial e político: além das contestações em tribunal, os três estabelecimentos querem levar o tema à Assembleia Municipal de Lisboa.

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O Bairro Alto Hotel (ao fundo, prédio amarelo) vai ocupar todo o quarteirão

O prédio dos azulejos azuis

Subindo o largo em direção ao Chiado, e depois de passar pela estátua de Eça, encontra-se o tal prédio de azulejos azuis. As janelas e águas-furtadas estão cheias de ervas daninhas, sinal de que os andares superiores já não veem gente há algum tempo. No rés-do-chão já só está o quartel dos Bombeiros Voluntários de Lisboa, mas não por muito mais tempo.

Este edifício, juntamente com um amarelo situado logo atrás, vai ser a continuação do Bairro Alto Hotel, uma das unidades hoteleiras mais premiadas da capital, para a qual se entra hoje através do Largo Camões. Para que a ampliação aconteça, os bombeiros vão-se embora, uma loja de flores já saiu e uma tabacaria também. Há ainda uma loja de roupa, cujo gerente não quis fazer declarações, e um espaço de loiças, onde as responsáveis garantiram ao Observador desconhecer o projeto de ampliação do hotel.

Enquanto as obras não começam efetivamente, os comerciantes do Largo do Barão de Quintela garantem que vão continuar a batalhar pela manutenção dos espaços que ocupam há anos e para que a praça não se torne num sítio só com hotéis. De sorriso irónico e olhar mordaz, Eça também lá continua, testemunha de que a nudez da verdade é sempre mais forte do que a fantasia.

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