Os ingleses têm Shakespeare, os espanhóis têm Cervantes, os italianos têm Dante, os portugueses têm Camões — e, agora, os checos têm Bernardim Ribeiro. A novela pastoril do século XVI Menina e Moça, numa tradução feita por Marie Havlíková, a mais importante tradutora checa de língua portuguesa, tem sido um sucesso no país. Na República Checa, o número de instituições a ensinar português passaram de três para 13 nos últimos dez anos. O fenómeno é mais sentido na capital, Praga, mas estende-se também a outras zonas do Leste, como a Hungria, a Polónia ou a Rússia.

E não, não são professoras reformadas e entediadas que vão estudar português. São jovens, entre os 20 e os 30 anos, vestidos com as últimas tendências da moda e com rastas no cabelo e tatuagens. São altos quadros de empresas, são economistas, estudantes e viajantes. São já 580 alunos. Há ainda a Escolinha Portuguesa, que tem um grupo de 25 crianças a aprender o português como segunda língua.

Joaquim Ramos, leitor no Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões em Praga e professor de Língua e Cultura Portuguesa na Universidade Karolina, explica as razões desta procura: “Na República Checa os níveis de alfabetização são de 100%. A cultura faz parte do quotidiano, não é uma coisa excepcional, e os governos investem muito no ensino artístico. Tudo isto cria uma predisposição e uma curiosidade pelas culturas estrangeiras. Hoje temos até políticos do governo checo e diplomatas a aprenderem português, apesar de isto ser destinado a criar relações com mercados emergentes como o Brasil e Angola. Mas o facto de eles perceberem que o pólo crucial para estas relações é a língua portuguesa é fabuloso. Já os nosso governantes preferem ignorar esse valor reprodutivo da língua”. As queixas são muitas. Em Praga, o orçamento do leitorado para despesas correntes é de apenas 4.500 euros anuais e só três professores são pagos pelo Estado português.

Jovens checas no Festival de cultura Portuguesa em Praga

Jovens checas no Festival “Lusófona”de cultura Portuguesa  em Praga

De Júlio Dinis, Camões e Eça a Pessoa e Afonso Cruz

“Adoro a palavra ‘galão’. Humm, é tão elegante e tão bom aquele copo de café com leite”, diz Maria Mikhailovna, saboreando a memória do sabor mas saboreando ainda mais as palavras. Mikhailovna é professora de português numa das universidades de São Petersburgo, na Rússia. Veio a Praga ao congresso internacional de Literatura Portuguesa Século XXI que Modernidade, hoje?, que se realizou nos dias 25 e 26 de setembro, organizado pelo Instituto Camões.

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Maria Mikhailovna falou sobre a poesia de Mário de Sá Carneiro e lembrou com entusiasmo as sua vindas a Lisboa. Ela, ao contrário da tradutora e antiga docente Marie Havlíková, pode ir e voltar quando quer. Já Havlíková conheceu bem a vida sob uma ditadura comunista e a impossibilidade de, durante anos e anos, vir estudar para Portugal e aproveitar as bolsas de estudo que a Gulbenkian lhe concedeu: “Se a bolsa era de oito meses o governo só me autorizava a estar fora durante quatro…”

Ao centro a principal tradutora literatura portuguesa: Marie Havlíková

Ao centro, uma das tradutoras literatura portuguesa para checo: Marie Havlíková, que traduziu Bernardim Ribeiro e Afonso Cruz

“Nesses anos — lembra Havlíková — o principal autor de língua portuguesa traduzido e lido pelos checos era Jorge Amado. Mas o Primo Basílio, de Eça de Queiroz, também fez muito sucesso e vendeu mais de 100 mil exemplares nos anos 60. Hoje, o mais famoso e lido talvez seja Afonso Cruz. Também traduzimos Natália Correia, que ameaçou processar-nos por termos mudado o nome dela para Correiova”

O primeiro autor português a ser traduzido em checo foi Júlio Dinis, com As Pupilas do Senhor Reitor, em 1892. Depois foram Os Lusíadas, em 1902. Só na década de 40 é que o estudo do português chegou às universidades e apenas nos últimos dez anos se tornou mais procurado.

Apresentação do livro de Afonso Cruz, A Boneca de Kokochka

Apresentação do livro de Afonso Cruz, A Boneca de Kokochka, com a presença do autor

Muitos chegam ao português por causa da poesia de Fernando Pessoa, outros pelas viagens a África ou ao Brasil e outros ainda pela vontade de estudarem línguas latinas. Há um recrudescimento do estudo do Latim nas novas gerações (a Alemanha já reintroduziu seu estudo nas escolas secundárias). Assim, o português acaba muitas vezes por ocupar o lugar do italiano ou do francês.

Joaquim Ramos chama-lhe a “infiltração subversiva da diferença”. Mas na prática é uma reação contra a hegemonia da língua inglesa e da cultura anglo-americana que está a fazer com que cada vez mais jovens se interessem por outras menos conhecidas. “A maioria do pedidos de tradução de autores portugueses que entra no Instituto Camões vem de países eslavos”, confirma este docente.

O Festival Lusófona e o KlubCafé Pessoa

Um dos grandes momentos de visibilidade da língua portuguesa na República Checa é o Festival Lusófona, que já acontece há quatro anos em Praga. O evento, que decorre em vários espaços da capital checa, tem teatro, dança, concertos, leituras e gastronomia — e mobiliza centenas de pessoas.

Enchente num dos eventos do Festival lusófona, em Maio deste ano

Enchente num dos eventos de língua portuguesa do Festival Lusófona, em Junho deste ano, em Praga

A embaixadora portuguesa, Manuela Franco, conta como ficou impressionada com este evento dedicado à literatura e cultura portuguesas. “Havia vários espaços onde decorriam leituras públicas de autores portugueses e todas as salas estavam a abarrotar. Cada leitura demorava 20 minutos. Depois, a sala esvaziava-se e voltava a encher com outras pessoas e assim durante uma noite inteira. Fiquei assombrada.”

Para além deste festival anual  há ainda uma Feira do Livro, uma mostra de design português, um festival de cinema e os concertos do 10 de Junho. No ponto oposto destes eventos públicos há o curioso KlubCafé Pessoa, na localidade de Hradec Kralove. Um pequeno clube fundado e mantido por checos que se encontram para falar sobre poesia e sobre cinema feitos em português.

A jornalista viajou a convite do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões em Praga.