“Parti de Portugal e de Tomar com a mente em chamas”, dizia Umberto Eco através de uma das personagens do livro O Pêndulo de Foucault, publicado em 1988. O Convento de Cristo era o motivo da visita do escritor a Tomar em 1984, um ano depois de ser considerado património mundial da UNESCO, juntamente com o Castelo dos Templários.
Pelos vistos, a visita de investigação surtiu efeito. “Se eu conseguia imaginar um castelo templário, assim era Tomar”, acabaria por escrever. O passeio inspirou várias páginas e descrições de um dos seus romances mais conhecidos e punha Tomar no mapa com o carimbo de “umbigo do mundo”, recordou no Facebook Andreia Galvão, diretora do Convento de Cristo.
“Eco esteve várias vezes em Portugal e gostava particularmente da Cidade de Tomar, que visitava sempre que podia, chegando mesmo a apelidá-la de ‘Umbigo do Mundo’ (l’ombelico del mondo), expressão italiana para lugares cuja beleza e central importância se equiparam à da outrora capital do Império Romano”, escreveu a diretora. “Referiu ainda, através de um das seus personagens desse romance, que se comoveu ao entrar na Charola, o templo octogonal que reproduz o do Santo Sepulcro, núcleo de todo o monumento e onde tudo começou”, continua no mesmo post, partilhado por mais de uma centena de pessoas.
No entanto, “e com imensa pena”, confessa-nos por telefone, não chegou a conhecer o escritor, até porque só está à frente do Convento há dois anos. Foi Luís Graça, antigo diretor, quem guiou Eco por este lugar onde “os sobreviventes da Ordem [dos Templários] gozavam de plena liberdade e de garantias intocadas”, escreveu no livro.
Um livro muito barato
A visita a Tomar não foi a primeira de Eco a Portugal. Antes disso, já tinha estado em Lisboa pouco depois do lançamento de O Nome da Rosa, em 1983. Recorda Piedade Ferreira, na altura diretora editorial da Difel:
Lembro-me que fez uma sessão de autógrafos na Bertrand do Chiado que teve imensa gente e depois houve um jantar na Tágide por causa daquela vista magnífica em que se convidaram várias pessoas como o Assis Pacheco ou o Eduardo Prado Coelho”
A editora tinha surgido há pouco tempo, em 1982, “e depois de uma década de livros políticos, havia um interesse dos leitores por ficção”, conta. Piedade descobriu o livro quando ainda não estava traduzido em lado nenhum, um tesouro. “Foi muito barato, comprei-o muito cedo. Não foi daqueles leilões caros, foi uma coisa tranquila, o sucesso veio depois.” De tal forma que no ano seguinte, em 1984, quando Eco voltou para visitar Tomar para se inspirar para o próximo livro, também publicado pela Difel, O Nome da Rosa já ia na sexta edição. “A tradução foi feita por uma senhora que não conheço com um curso de italiano, Maria Celeste Pinto, que tinha vivido em Itália. Agora a Gradiva reeditou-o com uma nova tradução.”
Do escritor que chegou a reencontrar na Feira do Livro do Frankfurt (durante a qual inclusive “se casou com uma alemã”) guarda boas recordações: “Era uma pessoa muito afável e acessível, era fácil ter um relacionamento com ele.”
Sobretudo e boné tipo Sherlock Holmes
A mesma “simpatia” recorda Luís Graça, antigo diretor do Convento que o guiou “num domingo chuvoso” pelo monumento. “Apareceu acompanhado por pessoal da embaixada [de Itália] e o guarda foi-me chamar. Vi logo quem ele era.” Apareceu sem aviso, de “sobretudo, [com] uma cigarrilha que não fumegava, ia mascando, e um boné tipo Sherlock Holmes”, descreve. Na mão tinha um bloco de notas para apontar tudo.
Se quem o acompanhava parecia importar-se com a chuva, Eco “não tinha pressa”. “Até lhe disse para voltar num dia que não chovesse e ele respondeu que a chuva era um bom décor”, conta Luís. Além da visita da praxe, o antigo diretor também lhe mostrou “os espaços e aquelas situações que não eram objeto do circuito de visita, como a adega”. “Estava muito interessado em verificar tudo. A grande preocupação dele era a decoração dos capitéis, com alguns elementos metafóricos.” Mas também o “espaço onde os seminaristas dantes ficavam alojados”, “as escadas em caracol” e a “arquitetura luminosa, com a luz sempre virada a Ocidente”.
Depois de mais de uma hora de visita, “que deu para fazer um sumário de tudo”, Luís Graça diz que o escritor se foi embora. “Não estiveram demorados em Tomar, depois foram logo para Lisboa.”
Muito escrevia ele
Já Alexandra Vasconcelos, a dona do centenário Café Paraíso, também em Tomar — conhecida como “Xana do Paraíso”, como a própria refere — garante que o escritor se sentou vários dias na mesma mesa do seu café. “Só soube que era ele depois porque estava aqui outro cliente que me chamou a atenção a perguntar se sabia quem era aquele senhor”, conta. “Fiquei logo toda contente, gosto muito dele. Mas na altura passou quase despercebido.”
Xana garante que Eco se “sentou sempre na mesma mesa, muito sossegado, vários dias seguidos, e esteve sempre a escrever com o seu cachimbinho”. “Muito escrevia ele. Depois soube que era para o livro.” A dona do café não chegou a ler O Pêndulo de Foucault, só O Nome da Rosa. “Mas vão-me emprestar esse agora”, remata.
Depois da morte do escritor na sexta-feira, aos 84 anos, o município de Tomar lançou um comunicado em que lamentou a sua morte “como se fora um dos seus cidadãos”. Em grande parte porque “levou o nome da cidade até milhões de leitores por todo o mundo”, escrevem. Talvez com isso, o Convento de Cristo e Tomar ganhem renovada atenção de mais e novos visitantes. Ou talvez não. “Ele [Umberto Eco] dizia que o mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê e eu, como mulher do património, posso dizer que este país também está cheio de peças fantásticas e património que ninguém vê”, confessa a atual diretora do Convento. “Se calhar porque não tiveram o Dan Brown que escrevesse sobre elas ou porque não houve ainda nenhum clique de alguém que as visitasse e que as pusesse no mundo.”