“Parto sempre do princípio de que um bom livro é mais inteligente do que o seu autor. Pode dizer coisas de que o escritor não se apercebe”, afirmou Umberto Eco numa entrevista à Paris Review, em 2008. Ora, uma das sensações proporcionadas pela leitura dos seus romances é a de estarmos perante uma cabeça formidável, um cérebro omnívoro e enciclopédico. Quando li O Nome da Rosa, aos dezassete anos, leitor com pouca rodagem, não tive dúvidas: Umberto Eco era a pessoa mais inteligente à face da terra. Numa primeira abordagem aos seus livros, o leitor cai de joelhos, fulminado por tanto conhecimento e erudição. Naquela entrevista disseram-lhe que essa era uma crítica recorrente: o leitor, humilhado pela sua própria ignorância, é obrigado a uma admiração provinciana da sua pirotecnia erudita. Eco, com a calma possível, respondeu que não era um sádico nem um exibicionista e que o conhecimento de que dava mostras era essencial ao romance. Cabia ao leitor captar o que conseguisse.
Um argumento a favor de Eco é que, no seu caso, a erudição não era um engodo para atrair leitores que procuram em romances de fácil digestão a informação que não têm tempo ou paciência para procurar noutros lugares. Antes de publicar o seu primeiro romance, em 1980, aos 48 anos, Umberto Eco já era uma figura respeitada no meio cultural italiano e os seus trabalhos académicos, como Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados, já tinham passado fronteiras. Quando se lê O Nome da Rosa, percebe-se que o conhecimento que o autor tem do período medieval não resulta de uma pesquisa superficial para a construção atabalhoada de um cenário. A reconstituição minuciosa sugere um conhecimento profundo daquela época nos seus mais variados aspetos: da vida quotidiana à religião, da botânica à filosofia, da arquitetura à culinária. Quase como se o autor tivesse vivido lá. Na verdade, antes de escrever o romance, Eco tinha vivido na Idade Média:
Durante toda a minha vida, tenho tido inúmeras experiências de total imersão na Idade Média. Por exemplo, ao preparar a minha tese [O Problema Estético em São Tomás de Aquino], tive duas estadias de um mês em Paris, para pesquisar na Bibliothèque National. Nesses dois meses decidi viver apenas na Idade Média. Se reduzir o mapa de Paris, e escolher apenas certas ruas, pode mesmo viver na Idade Média. Aí começa a pensar e a sentir como um homem daquela época.”
Como tantos outros romancistas estreantes, Eco escreveu sobre aquilo que conhecia. A diferença é que essa realidade distava 600 anos do autor, uma diferença que pouco se nota ao longo do livro, tal a autoridade da voz que narra a história. Em O Pêndulo de Foucault Eco tentou repetir a proeza, mas fora do seu ambiente natural nota-se o esforço dos oito anos de pesquisa para o livro (O Nome da Rosa levou-lhe apenas dois). Emerge também a obsessão com os factos – reais ou inventados – e a preocupação com o poder das ficções, das mentiras e das falsificações de interferirem na realidade. Esse é o tema forte da sua ficção: a forma como as mentiras se infiltram no tecido do real, alterando-o. O que não diminuía o seu interesse sociológico e literário por essas mentiras.
Na religião
A opinião de Eco sobre as religiões seguia a mesma linha de pensamento. Ainda jovem, o escritor perdeu a fé, mas isso nunca lhe diminuiu o interesse pela questão religiosa. Não acreditava na existência de Deus, mas acreditava na existência das religiões: “Os seres humanos são animais religiosos, e uma característica tão peculiar do comportamento humano não pode ser ignorada ou desvalorizada.” Podemos desvalorizar os factos com as nossas interpretações mas os factos não deixam de existir. E na obra de Eco existem tantos que isso lhe valeu um ataque do crítico literário James Wood. Num ensaio sobre o escritor alemão W. G. Sebald, Wood escreveu: “O que é notável em Os Anéis de Saturno e em Os Emigrantes [livros de Sebald] é a artificialidade reticente da narração de Sebald, através da qual os factos são recolhidos no mundo real e transformados em ficção. Isto é o oposto da banal leveza ‘faccional’ de escritores como Julian Barnes e Umberto Eco, que pegam nos factos e desestabilizam-nos superficialmente dentro da ficção, que os agitam um pouco, mas cujas obras são, na verdade, um tributo à religião dos factos.” O próprio Eco acabava por admitir essa adoração pelos factos:
“Nos meus romances usei inúmeras histórias e situações reais porque penso que são muito mais românticas, ou mesmo romanescas, do que qualquer coisa que alguma vez tenha lido na dita ficção.”
Pode-se dizer que, nos romances de Eco, até as invenções são apresentadas com as máscaras dos factos (leia-se o início meta-ficcional de O Nome da Rosa, “Naturalmente, um manuscrito”), como se de um jogo se tratasse. Daí que a leitura dos seus livros provoque um sentimento ambivalente: por um lado, tudo aquilo parece real e é quase inevitável que o leitor assuma a existência verdadeira dos factos ali narrados, por outro, está sempre no limite da paródia, como se fosse uma brincadeira ou um truque. Trabalhoso, muito bem afinado e executado com mestria irrepreensível, mas ainda assim um truque. Não são brincadeiras assumidas como as do Diário Mínimo – uma série de pastiches e paródias a géneros e estilos literários –, são brincadeiras disfarçadas. Como é óbvio, só alguém que domine de forma excecional os códigos narrativos consegue manobrar milhares de factos e aguentar durante mais de 500 páginas um divertimento que não é literariamente inepto. Mas sendo admiráveis peças de retórica narrativa, reservatórios de conhecimento adequadamente articulado com a ação, os seus romances centram-se nesses mesmos mecanismos, como se se estivessem a olhar ao espelho, a apreciar os seus músculos factuais, a sua aparência real.
No fundo, é como se através dos seus livros de ficção Eco quisesse provar a sua tese de que mesmo uma mentira cria a sua realidade, de que as falsificações têm consequências reais. Nesse sentido, ao dizer em diversas ocasiões (divertido, mas também chamando a atenção para os pontos de contacto entre O Pêndulo de Foucault e O Código Da Vinci) que tinha inventado Dan Brown estava a certificar a eficácia “factual” do seu livro, da ficção enquanto geradora de factos que, por sua vez, alteram a realidade. É essa a filosofia subjacente aos romances de Eco: se acreditamos numa mentira essa mentira não passa a ser verdade, mas passa a ser real, transforma-se em facto. E os factos podem ser estudados.
Códigos e política
Muito compreensivelmente, os romances prolongavam os interesses académicos de Eco no campo da semiótica, da linguagem e da comunicação. Sendo divertimentos, são também um alerta ao espírito crítico do leitor diariamente confrontado com discursos que o tentam convencer de uma verdade, a comprar alguma coisa, a votar em alguém. É como se Eco fizesse uma brincadeira para mostrar ao leitor como as brincadeiras são perigosas. As brincadeiras e os discursos. Em várias intervenções públicas, o escritor notou as semelhanças entre o discurso político e o discurso publicitário, considerando que quem faz a propaganda de um partido ou de uma empresa, mesmo que execute um trabalho intelectual, não exerce a função intelectual porque não faz “a crítica do próprio discurso”. E o leitor (ou consumidor ou eleitor) deve aprender a separar a natureza dos discursos e a destrinçar a eficácia (ou a beleza) e a verdade: “Por razões estéticas, uma bela mentira pode ser considerada criativa”, escreveu num dos ensaios de A Passo de Caranguejo. Sendo um romancista fascinado pela capacidade de persuasão das mentiras, o rapazinho que desde muito cedo fazia os seus próprios livros de aventuras na Malásia ou na África Central, Umberto Eco nunca deixou de ser um cidadão e intelectual empenhado em alertar os outros para os perigos inerentes a essas mentiras.
Na sua cruzada anti-Berlusconi, fez muitas vezes uso do humor para atacar aquilo a que chamava de “populismo mediático”. O humor não era uma novidade em Eco. Por cruzar alta cultura com baixa cultura, São Tomás de Aquino e banda desenhada, Kant e o Super-Homem, esse lado lúdico animava os trabalhos académicos que o celebrizaram e alguns textos como os do já citado Diário Mínimo. O humor enquanto arma contra o fanatismo era também um dos temas (talvez o tema central) de O Nome da Rosa. Na entrevista à Paris Review, confessou que esse era capaz de ser o grande livro sobre teoria da comédia que nunca conseguiu escrever. O riso não servia apenas para desmentir os fanáticos e castigar os políticos; em 2002, Umberto Eco antecipava, em registo irónico, o mundo do pós-11 de setembro dizendo que em caso de um conflito global entre cristãos e muçulmanos “seria a primeira guerra em que o inimigo não só estaria em nossa casa, mas ainda seria ajudado pela nossa segurança social”. À distância de treze anos, exagerava as possíveis medidas para controlar as populações muçulmanas: “A única solução aceitável seria fazer o mesmo que fazem as redes de fornecimento de trabalhadores clandestinos: atirá-los ao mar. Solução final de hitleriana memória. Milhões de cadáveres a flutuarem pelo Mediterrâneo. Quero ver quem é que vai ser o primeiro governo a tomar estas medidas.” Na opinião de Eco, a função do intelectual era a de antecipar cenários. Certa vez, respondendo a um desafio do presidente francês François Mitterrand, participou num congresso para discutir o papel dos intelectuais na resolução da crise do mundo contemporâneo. A sua participação foi curta, porém incisiva: “Os intelectuais não resolvem crises, os intelectuais criam-nas.” Com humor e a inteligência que os seus livros sugeriam.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015