Quando o punk aparece, Rui Eduardo Paes é ainda adolescente. Tem agora 55 anos e nos idos de 1980 não só não apreciava aquele estilo musical como o considerava excessivo. A custo, por influência do irmão e dos programas de rádio de António Sérgio, acabou por aderir.
Só muito mais tarde, ou seja, há poucos anos, descobriu o queercore. “Sabia que havia essa linha e conhecia algumas bandas, mas só cheguei lá através das minhas pesquisas constantes sobre o pensamento anarquista e pós-anarquista. Deparei-me então com o pensamento queer académico e cheguei ao queercore”, explica ao Observador.
Se queer é um conceito estabelecido nos anos 80 para falar de minorias sexuais e pessoas fora das convenções, e se punk hardcore é um género musical considerado mais agressivo do que o punk, fácil será concluir que queercore mistura os dois.
“O queercore surge em inícios dos anos 1980”, explica Rui Eduardo Paes. “Teve o seu auge na década de 90, mas continua até hoje. Nasceu no Canadá, depois chegou aos EUA, e foi criado por pessoas LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] que gostavam de rock e punk mas rejeitavam o chauvinismo e o machismo destes estilos”, acrescenta. “Ao mesmo tempo, eram pessoas cansadas da identificação dos homossexuais com a música de Liza Minnelli, Barbra Streisand e outras intérpretes. Quiseram reagir a isso.” O contexto e as bandas deste subgénero estão agora explicadas no livro Anarco-Queer? Queercore!.
A editora é a Chili Com Carne, fundada em Lisboa em 1995 e essencialmente dedicada à banda desenhada e à ilustração. O livro “a” maiúsculo com círculo à volta, de 2013, também de Rui Eduardo Paes, está na origem da nova obra. “É a continuação do trabalho que tenho feito sobre a relação entre música e anarquismo”, resume o autor.
Com capa de Carles G.O.D. e ilustrações e grafismo de Bráulio Amado, Astromanta, Hetamoé, Joana Estrela, Joana Pires e Rudolfo, Anarco-Queer? Queercore! aparenta ser um fanzine – a preto e branco, com erros propositados de impressão e aspeto artesanal. A opção é óbvia: a estética fanzine está associada ao movimento punk e no início serviu de suporte à militância queer.
A linguagem é informal e o texto, por vezes sexualmente explícito, informa e faz crítica ao mesmo tempo. Numa época de informação imediata na internet, o livro terá o mérito de a juntar, contextualizar e por em perspetiva.
Ao longo de cinco capítulos, Rui Eduardo Paes fala, de forma quase exaustiva, das bandas que deram corpo ao queercore, teoriza sobre anarquismo, pensamento libertário e música, e relata a evolução do estilo em torno da pop e da eletrónica, assim como das artes plásticas e visuais.
“Acho que a minha escrita se caracteriza desde há muitos anos por contextualizar a música, buscar razões para as músicas serem aquilo que são, ou não são, e por fazer a ponte entre isso e conceitos filosóficos e das ciências sociais”, enquadra o crítico.
Depois de dezenas de nomes canadianos, norte-americanos e britânicos, a última página deixa uma nota portuguesa: “Este livro não refere quaisquer bandas queercore portuguesas” porque “simplesmente, não existem ou não se deram a conhecer”. Próximas do estilo, são citadas apenas duas: Panelas Depressão e Vaiapraia & As Rainhas do Baile.
Também nas últimas páginas, uma conclusão pouco abonatória sobre o panorama atual: “O hardcore queer ainda resiste, mas resiste porque está na defensiva, porque está fraco.”
Ao Observador, Rui Eduardo Paes explica a frase. Começa por dizer que o queercore “está hoje afastado das premissas originais, com muitas bandas a esquecerem o ativismo queer e os princípios libertários e anarcas desta frente musical”. No fundo, acrescenta, “foram apropriadas pelo sistema e pela indústria.”
“Mas não podemos generalizar demasiado, porque há grupos cujos elementos continuam a ser militantes da causa e já não procuram apenas emancipação da sexualidade, preocupam-se com várias questões políticas”, conclui.
Por ordem cronológica, apresentamos agora algumas das bandas de que fala o livro, com a respetiva descrição breve feita pelo autor (cuidado com o volume).
Dicks – “The Dicks Hate the Police” (1980)
Conhecidos pelos “textos pró-socialistas” do líder da banda, Gary Floyd.
Tribe 8 – “Wrong Bathroom” (1996)
“As canções tratavam de questões como o sado-masoquismo, a sua atitude era de desafio às ortodoxias feminista e lésbica.”
The Dead Betties – “Hellevator” (2007)
“Música intensa, violenta até, letras arrasam todas as normas sociais mainstream”
Hunx and His Punx – “You Don’t Like Rock ‘n’ Roll” (2009)
“Nunca levam a sério seja o que for. Já não é de humor pop que se trata, mas de sarcasmo desbocado.”
https://www.youtube.com/watch?v=iyv4bPwUJws
Nü Sensae – “I’m a body” (2010)
“Ganharam peso com o rock brutalista, quase noise, do álbum TV, Death and the Devil e publicam uma newsletter semanal feita tipograficamente e enviada não por e-mail, mas à maneira antiga das organizações de extrema esquerda: por correio.”
Gay for Johnny Depp – “What Doesn’t Kill You, Eventually Kills You” (2011)
“O grupo foi um dos poucos do chamado queercore que, em anos mais recentes, ainda justificavam a parte core do nome desta tendência.”