O sonho de uma viagem maior, aquela viagem, era antigo. Lembro-me de conversar com a Maria na lua-de-mel sobre uns amigos de amigos que tinham cruzado o mundo em torno de experiências gastronómicas (e o que isso mudou a sua vida!) e de sonharmos alto que um dia faríamos algo do género. Logo se via quando e como.

Entretanto, o desejo de ter filhos falou mais alto. 2011 trouxe-nos a Luísa, que nasceu no dia de anos da Mãe, e há dois anos chegou o Manel. Claro que muita coisa muda quando os filhos nos entram pela vida e nos obrigam a abdicar de alguma ramboia. Nós deixámos de ir ao cinema e os jantares românticos ficaram para as ocasiões mesmo especiais. Mas nunca fomos de nos fechar num casulo, presos ao cumprimento de uma rotina de banho, sopa e “xixi-cama” (os horários são, aliás, o nosso calcanhar de Aquiles). Gostamos de abrir a casa para jantares de amigos e não deixamos de alinhar numa ida aos arraiais de Alfama se tivermos de levar as crianças connosco.

Há precisamente um ano, este artigo do Observador, partilhado por uma amiga em jeito de saudável provocação, fez soar uma campainha na nossa mente: se ainda queríamos fazer uma viagem mais comprida e longínqua, agora também com os filhos, devíamos aproveitar até a Luisinha entrar para a escola primária. Tínhamos, portanto, um prazo de dois anos.

Medimos os prós e os contras de os levarmos tão pequenos, ponderámos o que fazer com os empregos, escolhemos o destino e montámos uma rota, e deu nisto: no próximo dia 30, partiremos para uma viagem de 140 dias (quase 5 meses) pela América do Sul. De mochila (e crianças) às costas, vamos passar por oito países, percorrendo mais de 10 mil quilómetros por terra, quase sempre de autocarro.

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De Bogotá a São Paulo, a viagem começa dia 30 de junho. Ilustração: Andreia Reisinho Costa/Observador

Porquê a América do Sul?

Somos uma espécie de viajantes sentimentais, termo cunhado pelo Tiago Salazar, com quem há pouco estive a aprender sobre escrita de viagens. No nosso caso, isto significa que não costumamos escolher os destinos pela montra das agências de viagens, mas quase sempre pela possibilidade de visitar amigos espalhados pelo mundo. E não é tanto pela poupança no alojamento, é mesmo pelo prazer de estarmos presentes em momentos ímpares nas suas vidas — já fomos a casamentos na Índia e na Guatemala — ou de simplesmente viver uma cidade pela mão de quem a conhece melhor, tal como temos gosto em receber amigos estrangeiros e de lhes mostrar Lisboa.

A Maria e eu vivemos alguns anos em Londres, onde começámos a namorar. E uma boa parte dos amigos mais chegados que lá fizemos eram da América Latina. Alguns vieram ao nosso casamento, há seis anos. Agora é a nossa vez de ir conhecer e apresentar as gerações mais novas que entretanto nasceram: por exemplo, na Colômbia vamos juntar-nos quatro casais de amigos, com dois filhos cada. Serão encontros de afetos, como agora se diz.

Por outro lado, temos família em São Paulo, e há muito que prometíamos à Luísa que a levaríamos a visitar os primos. Decidimos deixar esse culminar para o fim do percurso, para termos uma “cenoura” para lhes acenar nos momentos em que estiverem mais fartos das longas horas de autocarro entre os 40 destinos que vamos pisar.

Em Sevilha, no verão passado. Este ano a pedalada vai ser outra.

Em Sevilha, no verão passado. Este ano a pedalada vai ter de ser maior.

Há ainda motivos práticos que achámos que facilitariam a logística de viajar com crianças tão pequenas, face a outros destinos mais exóticos e baratos, como o Sudeste Asiático. Na América do Sul, a língua não é barreira e, na imersão na brincadeira com outras crianças, os nossos vão aprender naturalmente um pouco de espanhol; a base da alimentação não é tão diferente da nossa; os serviços de saúde a que podemos aceder com um bom seguro têm qualidade; e a cultura tem matrizes comuns que fazem toda a diferença.

Assim, tendo a Colômbia e São Paulo como paragens obrigatórias, e acrescentando pelo meio pontos de interesse incontornáveis, como Machu Picchu, a Patagónia ou as Cataratas do Iguaçu, chegámos a um plano de viagem que nos vai levar a oito países: Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Vamos deslocar-nos quase sempre de autocarro, mas não serão daqueles que levam galinhas à solta (talvez só uma vez ou outra, pela piada). Por ser o transporte mais comum por ali, os expressos de longo curso têm bancos que viram camas, wi-fi e até hospedeiras a servir refeições a bordo. Ocasionalmente, também vamos andar de carro, de avião, de barco, de comboio e de tuk-tuk.

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A visita a Machu Picchu será um dos momentos altos da viagem.

“E não têm medo?”

Nas reações de família e amigos aos nossos planos, surgiu muitas vezes o estereótipo negativo sobre a insegurança na América do Sul — a memória de Pablo Escobar ou do Sendero Luminoso ainda não descolou destes países. Mas, embora esses problemas ainda não tenham desaparecido por completo, a situação melhorou muito em pouco tempo. Todos os países — sobretudo os mais tensos, como a Colômbia — têm feito um grande investimento na segurança e na atração de turismo, pelo que hoje tudo é muito mais tranquilo. Claro que vamos manter sempre o alerta máximo e não vamos facilitar na segurança, mas confiamos que os riscos são os normais de uma viagem em qualquer lado.

O alarmismo das notícias de há uns meses sobre o zika fez-nos reavaliar os riscos (e tirou horas de sono às nossas mães). Nessa fase, várias pessoas, com a melhor das intenções, nos diziam que não devíamos ir para lá agora. Mas nós procurámos informação séria e decidimos não mudar de planos. Ter vivido em Londres na altura dos atentados, em que as pessoas voltaram ao “business as usual” no dia seguinte às explosões, foi uma lição para a vida sobre a importância de não ceder ao medo. E bastou a notícia perder destaque nos noticiários (certamente que não pela diminuição do risco) para acalmar os ânimos. Vamos andar besuntados de repelente nas poucas zonas de risco do nosso itinerário e pronto. Assusta-nos bem mais o provável mal-estar na adaptação à altitude.

Outro obstáculo a ultrapassar tinha a ver com os empregos. Como íamos estar cinco meses sem trabalhar? A Maria, que é enfermeira num hospital a dois passos de casa, tentou várias vezes pedir uma licença sem vencimento, que até há poucos anos teria conseguido sem grande problema, mas já não teve essa sorte. Era a decisão mais difícil de todas, mas o embarcar nesta aventura implicou para a Maria largar um contrato sem termo. Quando regressarmos, alguma coisa há de aparecer. Eu, que sou o crente da relação, fico a dever-lhe este exemplo de confiança e de não ter medo de sonhar em grande.

Para mim foi bem mais fácil, a esse nível. Deixara há pouco um emprego fixo para trabalhar por conta própria como tradutor, mantinha uma colaboração na produção de um programa de rádio e tinha começado a escrever sobre nostalgia no Observador. Tudo coisas que consigo fazer com um portátil e ligação à internet em qualquer parte do mundo, o que é um privilégio. Claro que em viagem a capacidade de trabalho será muito menor, mas pelo menos não vai ser um rombo total nos rendimentos.

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Quando dominamos os medos, voamos muito mais alto (Créditos: Mafalda Brandão)

Vamos!

Na próxima semana, vamos deixar a pressa de chegar a horas ao infantário (já disse que os horários são o nosso calcanhar de Aquiles?) e os turnos noturnos e ao fim de semana que há anos nos cortam o tempo para estarmos juntos. Durante estas 20 semanas, todo o tempo vai ser nosso. Uma viagem de amor, como um primo resumiu.

Vamos encontrar outras crianças em vários contextos. Filhos de amigos nossos, filhos de outros viajantes, filhos dos sítios por onde passarmos, filhos que encontram nalguns projetos sociais que visitaremos aquilo que lhes falta em casa. Com muito ou com pouco, aos olhos da Luísa e do Manel serão apenas outras crianças para brincar — todos diferentes, todos iguais. E são eles que nos vão abrir os horizontes para saborearmos tudo com o mesmo espanto com que eles vão reagir a tanta novidade.

Vamos levar só o essencial — uma mochila com as coisas dos miúdos, outra com as nossas –, para que nos pese o menos possível. E porque não precisamos de muito para viver o essencial. Este é o desapego que mais me está a custar, e que provavelmente mais vai custar aos nossos filhos, crescidos na era da superabundância de brinquedos. Mas pode também vir a ser a maior aprendizagem desta experiência.

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A ilustração feita para o blogue da viagem, O Verbo Ir.

Vamos, sem grandes exigências de conforto, dormir em sofás de amigos, hotéis baratos e algumas vezes no autocarro. Se há alturas em que apetece o “pouco mas bom”, neste caso o low-cost é a única forma possível de pormos em marcha este plano.

Todas as quartas, vou contar aqui no Observador as melhores peripécias da viagem. Na próxima crónica, na véspera da nossa partida, conto como têm sido os preparativos e quais são as nossas expectativas e receios (e os deles).

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