Regressámos sãos e salvos da maior aventura das nossas vidas. Há cinco meses, a Maria e eu largámos tudo para fazer uma viagem pela América do Sul com os nossos filhos, a Luísa de quatro anos (agora cinco) e o Manel de dois.

Em 140 dias, visitámos 40 cidades de oito países. Apanhámos 16 voos, fizemos mais de 12.000 quilómetros de autocarro e andámos ocasionalmente de barco e de comboio. Experimentámos 32 hotéis, dormimos em 11 casas de famílias amigas e passámos nove noites em trânsito, no autocarro.

Tomámos banho nas águas quentes do Caribe e do Rio de Janeiro, tiritámos a -17ºC no deserto de Atacama e brincámos na neve em Bariloche. Estivemos ao pé de lamas, baleias e pinguins, vibrámos com a vista sobre Machu Picchu ou as Cataratas do Iguaçu, mas no top das memórias ficaram-nos as experiências humanas, como ouvir a história do resgate dos mineiros chilenos na primeira pessoa ou passar uma semana de sonho com grandes amigos na Colômbia.

Certamente que haverá frutos que só vamos perceber daqui a anos e é impossível avaliar o que fica para os miúdos de uma experiência destas, a um nível mais profundo do que os lugares de que se vão ou não lembrar no futuro. A lista que se segue reúne algumas coisas que fomos aprendendo ao longo da viagem, e que esperamos que animem mais famílias a pegar na mochila e ir.

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1. Foi um privilégio desfrutar deste tempo em família

A viagem foi sobretudo um pretexto para passarmos tempo de qualidade em família. Uma viagem de amor, como resumi na primeira crónica. Podia não ter sido tão longo e tão longe, mas a experiência de nos afastarmos da nossa realidade ajuda a focar no essencial, que é estarmos aqui uns para os outros. Com as 24 horas ao nosso dispor, sem muitos horários a cumprir nem solicitações de terceiros, tínhamos toda a atenção para o que cada um dizia ou fazia. Para o que cada um é. E descobrimos novas facetas nos miúdos e mesmo entre nós dois.

O que mais gozo nos deu foi vê-los aproximarem-se como irmãos. Em parte, por o mais novo finalmente conseguir alinhar nas brincadeiras da mais velha. Mas sobretudo por serem grandes cúmplices nesta aventura. Uma vez, logo ao início, tivemos de os deixar um par de horas com uns amigos para irmos a um almoço. O Manel ficou a chorar. A Luísa deu-lhe logo a mão e disse “vamos”, e assim seguiram por largos minutos.

Na primeira vez que deixámos os nossos filhos por umas horas, ele chorou e ela deu-lhe na mão.

Na primeira vez que deixámos os nossos filhos por umas horas, ele chorou e ela deu-lhe a mão.

2. As crianças adaptam-se muito melhor do que imaginamos

Um dos receios que levava para a viagem era que os miúdos se cansassem de estar tantas horas enfiados em autocarros. Chegámos a fazer 19 horas seguidas, e a média dos trajetos terá andado pelas 7-8 horas. A verdade é que eles aguentaram tudo isso, com muito poucos brinquedos e sem tablet. Com uma ou outra birra, sobretudo do Manel (que está na idade própria) e ao fim do dia, mas com doses notáveis de resiliência, como agora se diz.

Eles adaptam-se muito mais rapidamente do que nós a uma nova rotina. Ou à ausência de rotinas. Ou a comidas diferentes. Estar com os pais é o suficiente para os tranquilizar; se nós estamos bem, eles estão bem. Percebendo isso, não fomos rígidos nos horários (como se alguma vez o fôssemos…), nem nos limitámos a fazer “programas para miúdos”.

Depois da primeira viagem de autocarro, em que eles quiseram vir para o nosso colo, passámos a comprar só dois assentos. E assim passámos nove noites.

Depois da primeira viagem de autocarro, em que eles quiseram vir para o nosso colo, passámos a comprar só dois assentos. E assim passámos nove noites.

3. Os miúdos encontram sempre a beleza nos cenários mais desoladores

Numa das pensões mais manhosas em que dormimos, o quarto tinha bibelôs por todo o lado e a casa-de-banho tinha azulejos muito foleiros, com figuras marinhas em relevo. A Luísa aponta para um desses azulejos e exclama, contente: “olha o Nemo!” A mesma euforia quando entramos num quarto bafiento, minúsculo e sem janela, com cobertores que não eram sacudidos há séculos, mas que tinha… um beliche.

Eles não querem saber se estão no Ritz ou na Pensão Estrelinha, se estão numa cidade animada como Buenos Aires ou num “vilória” de praia onde não se passa nada no inverno. Se estão connosco, está tudo bem.

4. Conseguimos viver com muito menos

Como só podíamos carregar duas malas, tivemos de reduzir ao mínimo o que levávamos, fosse roupa ou brinquedos. Isso implicou andarmos cinco meses com os mesmos sapatos, dois pares de calças e meia-dúzia de t-shirts. Se à noite refrescava, o patamar seguinte era pôr um polar, não havia cá “meia estação”. E a Luísa já falava no seu “pijama inventado”, umas calças típicas daquela região, que muitas vezes vestiam também durante o dia.

A verdade é que nunca nos faltou nada. Por exemplo, quando era preciso algum remédio que não tivéssemos levado, encontrávamos em qualquer farmácia o mesmo do que cá. E os miúdos estimularam muito a criatividade a brincar com tudo o que lhes aparecia.

A Luísa e o Manel com o seu "pijama inventado"

A Luísa e o Manel com o seu “pijama inventado”

5. Os medos vão desaparecendo com o passar do tempo

Se ao início tínhamos alguns receios quanto à segurança (face ao perigo de roubos, raptos ou condução perigosa), aos poucos fomos relaxando e baixando as guardas. Sem nunca perder as crianças de vista, claro está, mas dando-lhes mais espaço para brincarem à vontade sem a nossa interferência. Eles souberam aproveitar essa liberdade para meter conversa com outros meninos, quebrando a barreira da língua, e para explorar parques infantis que faziam lembrar os da nossa infância, bem mais propensos a partir cabeças e esfolar joelhos. Sem qualquer nostalgia bacoca — ainda bem que as coisas hoje são mais seguras em Portugal –, na viagem também nunca andaram com cadeirinhas nos carros e muitas vezes nem sequer havia cinto de segurança.

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A maioria dos parques infantis onde eles brincaram chumbariam na vistoria da ASAE.

6. Não vale a pena criar expectativas sobre o que vamos visitar

Eu, que sou um programador inveterado, já sabia que qualquer semelhança entre esta viagem e outra que tivéssemos feito sem crianças seria pura coincidência. Por isso, tinha baixado muito a fasquia sobre a quantidade de atrações que conseguiríamos visitar em cada destino. Acho que conseguimos fazer ainda menos do que esperava. Porque não somos de acordar cedo, e em férias a coisa descambou ainda mais. Porque temos dificuldade com horários, e várias vezes batemos com o nariz na porta — foi o que aconteceu com a casa de Neruda, em Santiago do Chile, com a Barragem de Itaipú, em Iguaçu, ou com o Museu do Amanhã, no Rio. E porque muitas vezes acedemos ao pedido dos miúdos para visitar antes mais um parque infantil.

À hora a que chegámos à casa de Neruda em Santiago do Chile, já só conseguimos ver este mural no exterior.

À hora a que chegámos à casa de Neruda em Santiago do Chile, já só conseguimos ver este mural no exterior.

7. O que marca mais numa viagem é o lado humano

Este é um ponto essencial para nós. Em vez de escolhermos as praias mais paradisíacas ou as experiências mais exóticas, sempre escolhemos os nossos destinos com base nas pessoas que queremos encontrar. Seja para rever amigos ou simplesmente para viver o calor de outra família como a nossa. Foi, aliás, uma bela experiência sociológica comparar as dinâmicas familiares das casas por onde passámos. Na “vida normal”, podemos ir jantar a casa dos nossos amigos, mas não é costume ficarmos para dormir vários dias, como aqui fizemos.

Também lhes tentámos dar uma experiência socialmente variada. A maioria das casas onde ficámos eram nas zonas boas das cidades e tinham mais mordomias do que é comum na Europa. Mas também estivemos numa instituição para crianças com deficiência, na Colômbia, num centro para mães solteiras, em Buenos Aires, e num bairro da periferia, em Minas Gerais. E quisemos apresentar-lhes com a mesma naturalidade todos esses lugares.

Na Colômbia, fomos passar um dia a uma escola para crianças com deficiência.

Na Colômbia, fomos passar um dia a uma escola para crianças com deficiência.

8. Só cumprimos o orçamento se pouparmos nas coisas pequenas

Chegamos a uma zona da Argentina, onde só fomos pela fauna marinha que é única no mundo, e pedem-nos uma exorbitância para irmos num passeio de barco de uma hora ver as baleias no mar. Ou pagamos ou ficamos a vê-las por um canudo, e — repito — só fomos até ali por causa disto. Claro que pagamos. O mesmo em relação às viagens de autocarro: chegamos à Rodoviária, o preço está definido e qualquer transporte alternativo (exceto a boleia) seria mais caro ainda. Ou seja, nas despesas mais dolorosas, não há muito a fazer.

Nós, em matéria de gastos, somos um casamento entre o Vítor Gaspar e a Manuela Ferreira Leite, só que neste caso o “Vítor” tem uma fraqueza por comida e teve de ser a “Manuela” a impor-lhe que cozinhássemos mais vezes nos hotéis que o permitiam. De igual modo, mesmo nos sítios onde o táxi (ou Uber) era muito barato, tentávamos apanhar sempre que possível o autocarro urbano, mesmo quando era hora de ponta e estávamos com as malas todas. Ou andar mais a pé. Só assim conseguimos gastar exatamente o previsto, sem derrapagens.

9. Quando as coisas estão a correr bem, podemos esticar a corda

A opção pelos transportes públicos ou por caminhar não foi só uma questão de dinheiro. Ambos gostamos de sentir como vivem realmente os locais, o que é mais difícil quando só se anda num carro com ar condicionado (e agora rebuçados). Aquilo que pode parecer masoquismo para a maioria dos turistas, tem certamente a ver com a veia escotista da Maria e a minha curiosidade de jornalista.

Mas claro que só pudemos esticar a corda porque estava tudo a correr bem com os miúdos (ver ponto 2). Se eles estavam bem dispostos, se dormiam e comiam bem, também podiam andar mais a pé e aguentar os tempos de espera e os apertos dos transportes. E até pudemos arriscar tirar a chucha ao Manel a meio da viagem. Já as fraldas, “népias” — somos doidos mas nem tanto.

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Andar a pé até doer dá saúde e faz crescer

10. Não pensar demasiado quando se quer mesmo ir

Nós confiávamos que ia valer a pena, que era a altura certa e que os miúdos iam estar à altura do desafio. E agora podemos dizer que realmente assim foi. Mas quem se preocupa connosco fez-nos muitas perguntas antes de irmos: como ia ser com os empregos? Como iam os miúdos aguentar um percurso tão grande? Não era um risco para a saúde? E o zika? E a segurança nesses países “tão perigosos”? E para quê, se eles não se vão lembrar de nada?

Claro que tivemos o privilégio de poder escolher fazer isto. Mas muitos terão a mesma vontade, iguais possibilidades ou bem mais, e ficam-se pelos receios. Com a partilha desta experiência que vai ficar na história da nossa família, espero motivar mais alguém a cumprir um sonho semelhante. Acredite: o mundo é hoje um lugar muito mais seguro, barato e fácil de percorrer do que alguma vez foi.

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Assim termina o relato desta viagem no Observador, mas pode continuar a seguir as nossas aventuras no blogue O Verbo Ir, no Facebook e no Instagram.