Quando “Barry Lyndon” se estreou nos EUA, em 1975, a lendária revista “Mad”, que em cada número publica uma “charge” devastadora a um filme de destaque, intitulou a sua paródia “Borey Lyndon”, um trocadilho feito a partir do nome da personagem do filme, Barry, e de “boring” (“aborrecido”). “Aborrecido” foi apenas uma das coisas que os críticos que não gostaram do filme de Stanley Kubrick – e mesmo alguns que não desgostaram – lhe chamaram. “Frio”, “distante”, “oco” e “decorativo” foram outras. Foi como se depois de quatro filmes, “Lolita”, “Doutor Estranhoamor”, “2001 — Odisseia no Espaço” e “Laranja Mecânica”, que, cada um à sua maneira, agitaram as águas (e não só do ponto de vista artístico), e dividiram os críticos, Kubrick tivesse feito, com “Barry Lyndon”, um filme de época acomodado, formalista, académico, que unia boa parte da crítica numa mesma deceção.
[Veja o “trailer” original de “Barry Lyndon”]
A fita, agora de volta em versão digital restaurada, foi um modesto sucesso comercial nos EUA, fez melhor na Europa e ganhou quatro Óscares (Melhor Direção Artística, Fotografia – para o grande John Alcott –, Guarda-Roupa e Banda Sonora). Mas deixou Stanley Kubrick a ver navios quanto aos Óscares de Melhor Argumento, Realizador e Filme para que foi nomeado. Mesmo incompreendido e minimizado, “Barry Lyndon” sempre teve defensores ferrenhos entre cinéfilos, críticos (os americanos Roger Ebert e Richard Schickel, ou o francês Michel Ciment, por exemplo) e realizadores (é o filme de Stanley Kubrick preferido de cineastas tão díspares como Martin Scorsese e Lars von Trier). Crescentemente mais considerado e apreciado com o correr dos anos, consta hoje das listas dos Melhores Filmes de Todos os Tempos da “Sight and Sound”, da “Time” ou da “Village Voice”.
[Veja o novo “trailer” do filme]
Após dois filmes ambientados no futuro — um distante (“2001”), outro próximo (“Laranja Mecânica”) — e depois de não ter conseguido o financiamento para o seu projeto sobre Napoleão, devido ao fracasso comercial do monumental “Waterloo”, de Sergei Bondarchuk, Stanley Kubrick quis permanecer no passado. Leitor de Thackeray, o cineasta pensou primeiro em filmar “Feira das Vaidades”, mas percebeu que a atarefada história não podia ser contada no espaço limitado de um filme, e que “seria destruída na passagem do papel à tela”, como disse numa rara entrevista dada a Michel Ciment, toda dedicada a “Barry Lyndon”. A escolha caiu então em “The Luck of Barry Lyndon” (1844), também de Thackeray, sobre um arrivista irlandês que tenta imiscuir-se na aristocracia inglesa. O livro é considerado um dos primeiros, ou mesmo o primeiro, com um anti-herói, ou “sem herói”, segundo o próprio escritor.
[Veja Ryan O’Neal falar sobre Stanley Kubrick e a rodagem]
Como costumava sempre acontecer quando adaptava livros ao cinema, Kubrick fez várias modificações na história. A mais importante foi a substituição de Barry Lyndon (interpretado por Ryan O’Neal, uma escolha muito atacada à altura, mas que resulta porque o actor consegue fazer sua esta personagem com quem é difícil simpatizar, mas que é “muito real, que não é nem um herói convencional nem um vilão convencional”, como observou o realizador na citada entrevista) como narrador imperfeito na primeira pessoa, por um narrador exterior à história e omnisciente, embora não inteiramente de confiança. Kubrick atenuou também o tom cómico do livro e rebocou-o para o lado dramático, sem no entanto prescindir de entrelinhas satíricas.
[Veja cenas do filme]
A reposição de “Barry Lyndon” em versão digital restaurada confirma-o como um dos melhores filmes de Stanley Kubrick. É uma obra de uma inatacável unidade narrativa, visual, dramática, estética e de recriação histórica, expressão maior do perfeccionismo exaustivo do realizador e da sua capacidade de inovação técnica, submetida a uma visão artística e nunca decorativa ou visando efeitos gratuitos, aqui patente no uso, para as sequências à luz das velas, de uma lente Zeiss pertencente a um lote de dez fabricadas para os satélites fotográficos e as missões Apollo da NASA, e que o cineasta ainda modificou. É uma fita que adapta um livro mas nunca se torna “literária”, que bebe na pintura e na gravura da época em que a ação se passa (Constable, Gainsborough, Hogarth) sem se tornar pictórica, onde a literatura e a arte são sempre serviçais de uma ideia consistente, eloquente e poderosamente cinematográfica, na representação da espectacularidade como da intimidade. É um filme em esplendor para onde quer que se olhe, o que quer que mostre, em tudo o que conta.
[Veja a cena de batalha do filme]
Há ainda em “Barry Lyndon” um pormenor de especial agrado para os interessados em história militar, como o autor destas linhas. Na sequência do combate na Prússia, durante a Guerra dos Sete Anos, onde o protagonista luta do lado inglês contra os franceses, as distâncias de tiro entre os soldados estão exatas, um caso raríssimo de rigor no cinema histórico ou de temática militar, que costuma exagerar por excesso ou por defeito para fins espectaculares, comprovando a importância e o cuidado que Stanley Kubrick punha nas minudências e nos detalhes. É que ele sabia que não é só o diabo que está nos detalhes, é também a verosimilhança.