Título: “A Espia”
Autor: Paulo Coelho
Editora: Pergaminho
Páginas: 184

a espia

A Espia a quem Paulo Coelho dedicou as quase duzentas páginas deste livro, morreu diante de um pelotão de fuzilamento francês vai fazer 100 anos em 2017. “Dançarina e cortesã” – diz sucintamente a Enciclopaedya Britannica – “cujo nome se tornou sinónimo de sedutora espia feminina.” É provável que a efeméride seja assinalada de alguma maneira na sua terra natal holandesa, onde vá-se lá saber porquê lhe ergueram uma estátua. (O maldito turismo? Assim como assim, Amesterdão não se coíbe de ter como atração turística, a par de Van Gogh e Rembrandt, o seu “Bairro Vermelho”, com as suas famosas e infames montras de mulheres de aluguer.) Fora a sua morte espetacular, cruel e fútil, “Mata-Hari” não se distinguiu muito de outras célebres cocottes do Paris do seu tempo, a não ser pela peculiar natureza das suas artes de palco que lhe granjearam especial fama e grande proveito durante alguns anos.

Sabe-se mais agora sobre Mata-Hari do que há 50 anos, quando numa nota biográfica de Charles Wighton (em The Real World of Spies) este jornalista inglês que se especializou em histórias de espiões escrevia que “a autêntica verdade” sobre a carreira na espionagem desta “fabulosa mulher nunca poderá agora ser estabelecida”, entre outras razões porque ela foi uma “mentirosa inveterada”. De facto, sempre mentiu sobre quase tudo, geralmente porque tinha alguma coisa a ganhar com isso: dizia a certa altura que tinha nascido na Índia, filha de um “homem santo” bramâne, mas o nome “artístico” que adoptou – Mata Hari, “Luz da manhã” – era malaio ou indonésio, bem como as danças “sagradas” que pretensamente a inspiraram não tinham sido aprendidas desde pequena na costa malabar, como “baiadeira” num fantasioso “pagode” (sic) hindú da deusa Shiva, mas em Java, onde viveu com o seu marido, um oficial holandês com o apelido improvável de MacLeod (era de ascendência escocesa), o que também lhe serviu para se apresentar algumas vezes como Lady MacLeod. Li algures que o Governo alemão já declarou que ela nunca fez espionagem que se visse em favor dos alemães e que no ano centenário da sua morte serão divulgados os documentos constantes do seu dossier nos arquivos franceses, até agora reservados à inspeção de poucos. Sabe-se mais agora – mas o que se sabe confirma em grande parte as conjeturas de Wighton nos anos 60 do século passado. Não foi uma grande espia, embora tenha oferecido – e cobrado – aos serviços secretos alemães e aos franceses os seus serviços como espia “de travesseiro”; na Alemanha ficou registada oficialmente com o nome de código H 21. Mas terá sido apenas uma infeliz aventureira que acabou mal.

Margaretha Geertruida Zelle nascera na Holanda numa família aparentemente abastada e até com fraudulentas pretensões de nobreza. Orfã de mãe bastante cedo e abandonada pelo pai falido, foi criada pelo padrinho e depois por um tio. Frequentou uma escola de educadoras de infância: foi expulsa por se ter metido como o diretor – ou fugiu de lá por ter sido brutalmente violada por ele (é a versão que ela dá, pela pena de Paulo Coelho). Casou aos dezanove anos (respondera a um anúncio de jornal) com um homem de boa presença e confortável posição social e financeira, vinte anos mais velho do que ela. Foi no ano em que nasceu o cinema – e o cinema desde cedo se rendeu também ao fácil sentimentalismo exótico a que se prestava (Greta Garbo interpretou-a em 1931, no que seria o seu maior êxito comercial).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Daí em diante pôs a render o “irresistível encanto” que o Larousse usa para definir o que é uma “femme fatale”, encanto que sem dúvida possuía e de que se serviu prodigamente. Parece que chegou a privar com o Almirante Canaris, futuro chefe da Abwehr, quando ele era apenas um jovem oficial. Constou que dormira com o próprio Kaiser e/ou com o Príncipe herdeiro do Império alemão (disto parece que chegou a gabar-se ela própria, embora aparentemente sem fundamento) e que o Príncipe de Gales também provou as delícias canais em que, pelos vistos, era exímia. É certo, isso sim, que foi amante ou fugaz devaneio de muita gente importante da Alemanha e da França nesse mundo frívolo em que tudo era vida e doçura e se preparava a carnificina da Grande Guerra, que acabou por ser também a perdição da “espia”.

É quase certo que nos seus princípios como artista (se assim se pode dizer), antes de ser uma famosa “cortesã” ou ainda mais eufemisticamente, “dançarina exótica”, “fez o trottoir” em Paris. A sua dança “oriental” era um striptease de luxo que muito se assemelhava à “dança dos sete véus” bíblica. Não é de estranhar que tenha nutrido a certa altura o projeto de pôr em cena a Salomé de Oscar Wilde, uma tragédia escrita originalmente em francês, que fazia furor em Inglaterra nesses anos de princípios do século XX (ou, se quisermos, de fins do século XIX). É interessante comparar a iconografia das Salomés da época (e da própria Salomé da Bíblia) com a de Mata Hari. Mas a única cabeça que a desesperada Salomé de Leeurwarden fez rolar foi a sua própria. Pobre “femme fatale” frustrada que não perdeu ninguém e foi abandonada na desgraça por quase todos os homens que seduzira. E até por aquele que, caso raro, talvez tenha amado – o oficial russo, vinte anos mais novo do que ela, ironia da sorte, que parece ter sido em parte a causa de que, com a prestimosa ajuda dos alemães, a armadilha dos serviços franceses se pudesse fechar sobre ela.

A Espia de Paulo Coelho é a história de Mata-Hari como vítima e quase heroína do “amor”, contada na sua maior parte como um diário dela própria – tendo como epílogo uma carta supostamente escrita na véspera da execução pelo seu advogado (e mais um dos seus amantes?), o Dr. Clunet. O livro é apresentado como “Adaptação de ‘A Espiã’” (só questão de grafia ou que mais?). O célebre guru brasileiro da autoajuda e do epicurismo místico de grande consumo louva-se para a reconstituição histórica em várias biografias e alguns documentos publicados desde o princípio deste século, em que vale a pena destacar a sua “verdadeira história” contada em 2003 por Philippe Collas, bisneto do Procurador que dirigiu a acusação contra ela perante o tribunal militar que a condenou à morte.

Conhece bem o seu material: A Espia é um hábil acto de ventriloquismo, em geral razoavelmente bem-sucedido, ocasionalmente traído pelo “brasileirismo” da prosa. É tecnicamente de admirar, por pouco que pareça uma tarefa especialmente urgente ou relevante a revisão romanesca de Mata-Hari. Foi uma mulher sem grande importância, vítima das circunstâncias e enredada na própria teia que teceu. Mas o fascínio da lenda persiste. Dispensávamos que Paulo Coelho nos tentasse convencer, pela boca do Dr. Clunet, com alguns ouropéis de erudição, que foi “vítima do pecado de ser mulher” ou, pior, de que “o seu maior crime foi ser uma mulher livre” como diz a faixa do livro. E a que propósito vem a invocação de Nossa Senhora – presumo que sem intuito de blasfemar – que encabeça o exercício?