Gina Miller não tem tido a vida fácil desde que chamou a si o desafio legal de assegurar que, depois do referendo sobre o Brexit, o Parlamento inglês também tinha uma palavra a dizer na decisão de o Reino Unido sair da União Europeia. O processo culminou esta quinta-feira com a decisão do tribunal superior britânico segundo a qual o governo conservador de Theresa May terá mesmo que ouvir os deputados. Ao jornal britânico The Guardian, Gina Miller, a mulher por detrás deste novo impulso judicial, diz que nunca quis reverter o referendo que decretou o Brexit, apenas fez “o que tinha de fazer” para assegurar a legalidade do processo. Ainda que, pelo caminho, tenha recebido muitos insultos e “ameaças de morte” por parte dos adeptos da saída.

“Nunca fui binária ao ponto de achar que ou era ‘sair’ ou era ‘ficar’. Sempre acreditei, e ainda acredito, que se trata de ficar, reformar e rever [“remain, reform and review“, no original]”, disse a gestora de investimentos de 51 anos que defende que o Reino Unido deve aproveitar o papel de força que já hoje tem no quadro europeu para mudar o que está errado por dentro, e não por fora. E foi por isso que decidiu agir desde logo, em junho, quando os britânicos foram às urnas e escolheram o ‘sair’.

Dinheiro não é, de todo, um problema para a empresária que dirige, com o marido, a empresa de investimentos SCM Private, e, por isso, contratou uma firma de advogados para analisar minuciosamente o processo. Podia o governo evocar o artigo 50 do Tratado Europeu, que daria início ao processo de saída da União Europeia, sem que o Parlamento britânico aprovasse a decisão? Miller achava que não e agora o tribunal londrino deu-lhe razão.

Ao jornal britânico, Miller explica porque não conseguiu ficar parada quando percebeu que muitas pessoas pensavam o mesmo, apenas não tinham o dinheiro e a rede de contactos que Gina e o marido tinham para desencadear um caso judicial desta envergadura. “Está na minha natureza, é o que faço quando vejo alguma coisa disfuncional a acontecer. Não conseguia pura e simplesmente deitar-me todas as noites e pensar que não havia um plano e que estávamos mesmo perante um futuro traiçoeiro”, diz, explicando porque considerou que “não havia alternativa” senão avançar para os tribunais.

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O objetivo, diz, nunca foi reverter o resultado do referendo, mas apenas garantir a legalidade do processo. Na quinta-feira, quando se soube da decisão judicial, Miller resumiu assim a ideia: “Este caso não era sobre política, era sobre processo”.

“A menos que tenhamos a segurança jurídica para saber que o que estamos a fazer é vinculativo, quem sabe o que o futuro nos reserva? Não é melhor termos a certeza jurídica agora do que quando já for tarde?”, questionou, citada pelo jornal inglês The Guardian.

O caminho, contudo, não foi fácil e valeu-lhe comentários negativos, insultuosos e racistas — apelidando-a pejorativamente de “estrangeira” — e até “ameaças de morte”. Gina Miller é natural da Guiana (antes uma colónia britânica), mas vive no Reino Unido desde os 10 anos. Escusando-se a detalhar o cariz dos insultos e ameaças que recebeu, a empresária responde afirmativamente quando questionada sobre se achava que a reação seria diferente se fosse um homem branco.

Gina Miller e o marido, Alan, têm-se dedicado a lutar pela transparência em fundos de investimento e de pensões, bem como pela reforma do setor da caridade. “Sempre me pus a jeito para ser impopular, mas não se trata de popularidade, trata-se de fazer o que está certo”, afirma.

Na sequência da decisão judicial de ontem, o governo de Theresa May anunciou que ia recorrer para o Supremo Tribunal da decisão sobre a “inutilidade de uma votação parlamentar” sobre esta matéria. Esta sexta-feira, a primeira-ministra britânica já fez saber que vai explicar à Comissão Europeia que não prevê quaisquer alterações aos planos que devem dar início às conversações, marcadas para março de 2017, sobre a saída do Reino Unido da União Europeia.