De um lado o Brasil, do outro a Argentina. Seja ao berlinde ou à macaca, eles não se gramam e há quilos de emoção mais nervos à flor da pele. O rastilho está aceso há mais de um século, ainda antes do tempo dos futebóis. Na Guerra do Paraguai (1865-1870), Argentina e Brasil mais o Uruguai formam a Tríplice Aliança para enfrentar o Paraguai de Solano López. Nesses cinco anos, os soldados argentinos e os escravos brasileiros lutam lado a lado, com uma nuance incómoda: mandatados pelo império, os escravos brasileiros eram sistematicamente ofendidos pelos soldados argentinos. Da guerra para o futebol, o desentendimento entre argentinos e brasileiros é um passo.

Estamos a 12 outubro 1920 e o jornal argentino “La Crónica” escreve sobre o particular com uma ilustração provocativa “Monos em Buenos Aires” (Macacos em Buenos Aires). O texto é assinado por Antonio Palacio Zino, enviado-especial do mesmo jornal à Copa América 1919, no Brasil, e o responsável por ter pegado fogo a um rastilho que nunca mais se apaga. Dizia ele o seguinte: “E cá estão os macaquinhos em terras argentinas […] No Carnaval, as mulheres abrem-se e os maridos vão para a festa, como lhes dá vontade. É por isso que, cada vez que nasce uma criança, o casal tenta descobrir com qual vizinho se parece […] A uma hora e meia da [então] bela capital brasileira [Rio de Janeiro], gente inocente é degolada, se assalta sem medo e é latente a escravidão em suas nuances mais selvagens.”

Horas antes do jogo, o jornalista argentino tem o desplante de visitar o hotel da seleção brasileira. É agredido pelo capitão Sisson e outros querem seguir-lhe os passos (e sopapos). Na hora de entrar em campo, só seis jogadores querem ir a jogo. Todos os outros se recusam como protesto, o que é naturalmente aceite pelos companheiros. A esses seis, junta-se Osvaldo Gomes, chefe da delegação brasileira e internacional em 1914, e mais quatro argentinos: Balgorri, Rosado, Solari e Castro.

Como é lógico, nenhum dos três mil espectadores convive bem com a situação e há mesmo ameaça de invasão de campo. O jogo é interrompido pelo árbitro por distúrbios nas bancadas. Os adeptos argentinos simplesmente não querem quatro compatriotas a jogar pelos “outros”. Então, a Argentina compromete-se a alinhar só com sete jogadores, tantos quanto o Brasil, e o guarda-redes suplente Kuntz adaptado a defesa-central. Sem mais incidentes, a Argentina ganhou 3-1 naquele que terá sido o último encontro dito amistoso. Desde esse dia diz-se “particulares”.

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Pois bem, p-a-r-t-i-c-u-l-a-r. Avançamos no tempo e já estamos em setembro 2011. Na cidade argentina de Córdoba, dá-se o improvável com o selecionador de um país a aplaudir uma jogada do rival. A cena acontece entre Sabella e Leandro Damião, então avançado do Internacional com recursos técnicos ilimitados. Tudo porque o brasileiro é o único a levar o jogo a sério e dá espetáculo com dois remates ao poste, o último deles aos 77 minutos depois de passar a bola por cima de um adversário, num movimento conhecido em Portugal como cabrito – lambreta no Brasil e bicicleta na Argentina. O lance prova a genialidade de Damião. Já depois de todos os espectadores se terem levantado para aplaudir, Sabella dá largas à sua emoção. “É para parar o jogo e aplaudir aquela jogada.” Bem-vindo ao século XXI, à época em que os argentinos aplaudem os brasileiros.

Novembro 2016, dia 10. No Mineirão, o Brasil recebe a Argentina para a qualificação sul-americana do Mundial-2018. É a roleta russa. O estádio enche-se para o clássico dos dogmas. Para os argentinos, a felicidade tem três estádios (carne, tango e Maradona) (ou Messi). Para os brasileiros, é mais feijão, samba e Pelé (ou Garrincha) (ou Zico) (ou Romário) (ou Neymar). Ora aí está o que é, Neymar. Ele é o cara e solta finalmente o grito do Ipiranga. Com a saída do seleccionador Dunga, o 10 brasileiro afirma-se em definitivo na seleção. O primeiro passo é o título olímpico. Na final, Neymar marca de livre direto e arruma a Alemanha no décimo e último penálti da decisão. Quebrado o enguiço do ouro, Neymar junta-se aos amigos sul-americanos Messi e Suárez no Barcelona. Quando volta ao Brasil, para o jogo com a Colômbia, em Setembro, é já um nome consagrado e endeusado pela esmagadora maioria da população. O que lhe falta para chegar à imortalidade, como um Pelé (ou um Garrincha) (ou um Romário)? O título mundial. Na longa estrada do apuramento até à Rússia, o menino da Vila Belmiro vai sempre em frente. É dele o 2-1 definitivo sobre a Colômbia e é ele quem comanda o 3-0 sobre a Argentina de Messi.

Quer dizer, dele (Neymar) mais Coutinho e Gabriel. Os três da vida airada. O número 9, 10 e 11. Quebra-cabeça sem solução para a Argentina. Ao intervalo, 2-0. O Mineirão ruge como nunca e reconcilia-se com a história da seleção, depois dos 7-1 da Alemanha na meia-final do Mundial. O 1-0 é uma cavalgada de Coutinho desde a linha lateral. O avançado do Liverpool mete uma abaixo e vai por ali fora até ao remate final, tanto em jeito como em força, sem hipótese para Romero. Ao cair do pano, Gabriel recebe a bola de costas para a baliza e liberta-se da marcação apertada de Otamendi. Dá um toque, outro e mais um, levanta a cabeça e desmarca Neymar. O 10 recebe isoladíssimo e atira à saída de Romero.

Ao intervalo, entra Agüero para o lugar de Enzo Pérez. E quê? Nada, a Argentina é um marioneta nas mãos do Brasil. Ou, se quisermos ser mais explícitos, nas mãos de Neymar. O artista corre pela direita e serve para a entrada de Paulinho, 3-0 aos 59 minutos. Em menos de uma hora, a Argentina é arrumada em três tempos, sem contemplações. Nos festejos desse 3-0, o selecionador brasileiro Tite corre pela linha lateral, desvia-se do bandeirinha para não o derrubar e junta-se ao abraço coletivo, na bandeirola de canto. Ordem e progresso, é o Brasil.

Para Tite, bicampeão brasileiro e campeão mundial pelo Corinthians, o placard elástico é uma surpresa maiúscula. “Nunca esperei uma coisa assim.” Como é que isso acontece?, insistem os jornalistas. Tite dá o mote. “No final da palestra com os jogadores, deixei-os a ver o golo do Capita [Carlos Alberto], na final do Mundial-70, e perguntei-lhes ‘o que essa imagem nos pode ensinar?’. Deixei-lhes algumas observações: Tostão dobrou a marcação do lado do Everaldo até a defesa, quase todos os jogadores tocaram na bola, ela rodou e quando apareceu do lado oposto, o lateral apareceu. Isso nos mostra o quanto é importante o senso de equipe. Talvez seja a maior homenagem que prestámos ao Capita.”

É o lance do 3-0, o da ação solidária de toda a equipa. “Alguns conceitos de jogo não mudam ao longo dos tempos. Os Cleveland Cavaliers foram campeões da NBA com o seu maior astro a fazer uma ação defensiva [LeBron James rouba a bola a Iguodala no jogo 7 da NBA 2016]. Temos que entender e valorizar a ação defensiva do Neymar com o Zabaleta. Ou quando o Gabriel fazia o lugar do Neymar para o fazer descansar do Zabaleta.”

Três-zero é dose. Em sexto lugar na fase de qualificação, a dois pontos do terceiro (Colômbia), a Argentina continua fora do Rússia-2018 a sete jornadas para o fim. Messi dá o toque. “Este é um momento de mierda.” Então? “O problema é a cabeça. Se a cabeça está mal, as pernas não respondem.” É o momento António Variações: quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga.