Na noite de 17 de dezembro de 1925 zarpava do Tejo rumo à Argélia um cargueiro banal com o improvável nome de Zeus. Deixaria na História o mesmo rasto que deixou nas águas se nele não tivesse embarcado Manuel Teixeira Gomes, o 7.º Presidente da jovem República Portuguesa, vice-presidente da Sociedade das Nações, antigo embaixador em Londres e Madrid, escritor de vanguardistas novelas eróticas, amante de corpos de mulheres e homens.
Não levou consigo nem um papel, nem um livro, nada que lhe lembrasse a vida que deixava. Apenas uma mala de roupa, que usaria até ao fim da vida e a certeza de que se havia homens dignos da solidão e da liberdade, ele era um deles. Para trás ficava um país, uma causa, duas filhas, cinco livros publicados, uma fabulosa biblioteca, incontáveis obras de arte. Tinha, nessa noite, 65 anos e não voltaria a pisar solo português. Mas, aos longo dos 15 anos seguintes, a viver num modesto hotel à beira mar, na cidade argelina de Bougie (Béjaia) haveria de escrever uma das obras-primas da literatura portuguesa do século XX, Maria Adelaide, e mais três livros de contos, memórias e cartas. O melhor da sua obra, consideram os críticos.
[o trailer de Zeus]
É a história esquecida deste homem singular que o realizador Paulo Filipe Monteiro decidiu contar no filme Zeus, que hoje se estreia nas salas de cinema portuguesas, “com a esperança que Portugal redescubra finalmente a vida e a obra deste político e escritor que o Estado Novo apagou e o Modernismo e a geração de Orfeu obscureceram”, disse ao Observador.
Comparado a Corto Maltese, o herói solitário de Hugo Pratt ou ao melancólico Gustav von Aschenbach, de A Morte em Veneza de Thomas Mann, Manuel Teixeira Gomes tem contudo as errâncias, ambiguidades e mistérios insondáveis dos homens reais para quem a Vida e o Real sempre foram insuficientes e que tudo perseguiram com a fúria devoradora de um Deus. Portanto, talvez não tenha sido por acaso que, quando renunciou ao cargo de Presidente da República, a 11 de dezembro de 1925, estivesse fundeado no Tejo um barco holandês de nome Zeus.
O biopic de Paulo Filipe Monteiro parte pois desses últimos meses de Teixeira Gomes em Belém, com o país à beira de uma guerra civil, mergulhado no caos político e militar que haveria de levar à chegada de Salazar ao poder apenas três anos depois. Um tempo crepuscular que antecede a sua decisão radical de abandonar o cargo, onde se sentia impotente, rodeado de intrigas, incapaz de manter um governo estável. E depois a sua decisão de partir para um lugar “onde pudesse voltar a sentir desejo”.
A segunda parte do filme dá-nos a ver um homem ressuscitado em areia e pedra, no mundo árabe que desde criança o fascinava (era originário de Portimão). A luz inunda a tela para nos mostrar não uma fácil felicidade reencontrada mas uma melancólica abnegação e a teimosia em não se deixar capturar por aqueles que em Portugal queriam fazer dele uma bandeira (a única relação que mantinha com o país era contribuir financeiramente para a revista Seara Nova e escrever alguns artigos ocasionais). E a amizade redentora com um criado árabe Amokrane (Idir Benaibouche) através da qual o realizador diz ter procurado “mostrar a abertura e o fascínio que o político tinha pelos árabes, tão contrária á diabolização que atualmente deles fazemos na Europa”.
“Saí de Portugal sem um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; nada que, de longe ou de perto, recordasse o antigo literato ou político: abri na vida uma página perfeitamente em branco (…)olho para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem, com a encantada curiosidade de um ressuscitado. Vou consumindo, à semelhança de certos animais que hibernam, a própria enxúndia (…) e repito, invariavelmente, ao fim de cada dia: ‘este já ninguém me tira’” (Teixeira Gomes em carta enviada ao poeta João de Barros e incluída no livro Miscelânea)
De entre os muitos factos que fazem a história deste homem, o realizador abdicou de tocar os mais polémicos e os que mais terão contribuído para minar a sua reputação: a forma livre como viveu e escreveu sobre o erotismo, a sexualidade, os corpos, a pretensa homossexualidade ou o gosto por ninfetas. No filme vemos mesmo o seu arqui-inimigo Cunha Leal ( do Partido Republicano Nacionalista) a ler uma passagem profundamente homoerótica de uma das novelas de Gomes e a exclamar: “isto só em Portugal, pôr um escritor como Presidente da República”, antes de ameaçar que a ler aquela mesma passagem no Parlamento. Sobre as alusões à sua sexualidade, Teixeira Gomes há-de dizer com ironia em carta ao escritor António Patrício:
“Para aqueles a quem falta, na composição do sentido estético, a intuição da nudez pudica, não há concepção possível da carne sem lubricidade. Um efebo nu é sempre, no seu entender, espetáculo só apreciável a sodomitas. O corpo humano aparece-lhes compartido em zonas castas, impudicas e escandalosas. Com exceção do Camões (até nisso ele é único) a nossa literatura clássica não possui um cantor da plástica humana; e nunca uma estátua grega transpôs as fronteiras lusitanas.”
O realizador rejeita a “pretensão de querer estabelecer verdades na vida de um homem que sempre cultivou o mistério”, e explica que durante os oito anos que passou a trabalhar nesta história “apenas confirmou que Teixeira Gomes teve relações amorosas com muitas mulheres e quanto ao resto que passagens da sua obra sugerem ter acontecido pertencerá para sempre àquele mundo onde realidade, sonho, imaginação e memória se fundem e onde nós nunca poderemos destrinçar o que é verdade e o que não é”. Precisamente aquilo a que o escritor chamava o “seu teatro d’alma”.
O “teatro d’ alma” de Manuel Teixeira Gomes
Zeus intercala factos da vida do político e escritor com a recriação da sua novela Maria Adelaide, escrita em 1938. O realizador diz que ficou deslumbrado com esta “obra-prima” que espantado por ser quase desconhecida hoje em dia “correu a mostrá-la aos seus colegas na Universidade Nova”, onde é docente. O cineasta resgata ainda João dos Castelos (interpretado por Miguel Cunha) um conto integrado no livro Agosto Azul.
Não tendo feito deste filme uma narrativa linear, mas um cruzamento de factos narrados por Teixeira Gomes nas cartas que deixou, factos narrados por outros como o diretor do Diário de Lisboa, Norberto Lopes, o único jornalista que o foi visitar à Argélia e que depois escreveu o livro O Exilado de Bougie, e excertos da obra ficcional, Paulo Filipe Monteiro, não dá apenas ritmo à história, mas mostra-nos como o próprio escritor percebia o mundo:
“Note que eu era sonâmbulo em pequeno, e sempre tive, acordado, facilidade de desassociar a inteligência da sensibilidade. […] O desdobramento da própria personalidade, em ator e espetador, posso-o provocar a meu bel-prazer; e sem o menor esforço, nos passeios solitários, se me arma o teatro da alma, o pano sobe, e a representação começa.” (conta Teixeira Gomes a Norberto Lopes e a João de Barros)
E este “teatro d’alma” aliado a um profundo sensualismo, ao hedonismo próprio de um grego do Parnasso, à recuperação de mitos, à fusão dos tempos, à transfiguração dos corpos, ao recurso ao erotismo para falar incessantemente de liberdade que serão a argamassa da invulgar arquitetura dos seus livros. Teixeira-Gomes foi contemporâneo de três movimentos literários Realismo, Modernismo e Neo-Realismo, porém, a sua obra é excêntrica a todos eles e constitui-se como algo totalmente original e não enquadrável em teorias literárias, o que têm contribuído para o seu apagamento.
A novela Maria Adelaide, longe de ser uma “história de lolitas”, como por vezes se quer fazer crer, é acima de tudo uma denúncia contra a sociedade patriarcal e a forma como esta destruía as mulheres. Partindo de uma recriação do mito de Pigmaleão e Galatea, Ramiro, senhor de uma comunidade de pescadores toma para si as adolescentes que deseja, põe-lhes casa, ensina-as a ler. Neste processo vai destruindo nelas toda a beleza, juventude, sensualidade enquanto se recria numa sexualidade mórbida que se confunde com o exercício de poder.
Recorde-se que Teixeira Gomes foi embaixador em Londres entre 1911 e 1918 e integrou os círculos do movimento das sufragistas e que a sua visão do erotismo pressupunha sempre a liberdade feminina. Nesses anos em que tinha por missão levar o rei de Inglaterra a reconhecer a jovem República Portuguesa, o escritor conseguiu mesmo ter mais simpatias no palácio de Buckingham que a família monárquica portuguesa exilada em Londres. O esteta e carismático Teixeira Gomes terá conseguido mesmo encantar a bela princesa Alexandra que lhe pediu ajuda para decorar o seu gabinete no palácio.
Teixeira Gomes morreu em 18 de outubro de 1941, com 81 anos, mas só em 1950 será trasladado para Portugal. No final de Zeus, o realizador faz passar no ecrã uma frase provocatória, dizendo que houve uma revolução em Portugal mas “só alguns homens se tornaram livres”. E esta é a grande e urgente lição que podemos recolher da vida e da obra de Manuel Teixeira Gomes através de Zeus : é que a liberdade dada por um regime político é apenas uma ferramenta para abrir caminho para essa grande liberdade livre que só pode nascer dentro de cada um de nós.
Esta quinta-feira à noite na Cinemateca, o filme terá uma sessão especial onde estará presente o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.