Nome: “O Último Amante”
Autor: Teresa Veiga
Editor: Tinta-da-China
Páginas: 216

Em “Antes da Revolução”, a terceira das quatro novelas reunidas em O Último Amante (duas delas já publicadas em 1990 pela Cotovia e duas até hoje inéditas), Alexandra Raquel, a protagonista e narradora, conta que, certo dia, ao vasculhar as gavetas de Alexandrina, a sua mãe adoptiva, encontrara num livro as letras de músicas que ouvira na infância. Ao lê-las, percebe que aquilo que toda a vida imaginara ser a “melodia das fadas” era afinal a “melodia das espadas” (página 129). É precisamente este revisionismo a partir de uma invasão da privacidade a chave de leitura para as novelas de Teresa Veiga.

Teresa Veiga parece querer, ao juntar duas novelas àquelas que publicara há mais de vinte e cinco anos, trazer uma nova luz à casa da Rua da Junqueira e à vida de quem nela habita: Alexandrina, a narradora das duas primeiras histórias, e Alexandra Raquel, a protagonista das duas últimas. Este complicado jogo de luzes em que cada ponto é iluminado pela história que se segue (sendo até os nomes das personagens principais apenas revelados na história seguinte) é, no entanto, muito mais do que um simples malabarismo circense da autora.

Teresa Veiga aproxima-nos e afasta-nos das personagens sem nunca procurar a simpatia fácil que a focalização naturalmente gera e que nos leva a perdoar os crimes sangrentos de um narcotraficante sul-americano apenas pela forma como este puxa as pregas das calças para cima. Em nenhum momento, as personagens que nos contam a sua história parecem minimamente interessadas em que nos coloquemos nos seus sapatos ou em que nos afeiçoemos a elas. Em nenhum momento, Raquel ou Alexandrina procuram explicar o seu ponto de vista, desculpar-se pelos seus erros, humanizar-se, gerar afeição em quem as escuta ou criar uma sensação de proximidade, sendo portanto a luz que nelas incide sempre uma luz negra que oculta mais do que aquilo que mostra. Ler as novelas que compõem O Último Amante é sempre como remexer as gavetas de Alexandrina, ou como alugar a casa do outro lado da Junqueira para procurar ver o que os portões e os muros não permitem.

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As histórias de O Último Amante são acima de tudo histórias de pessoas que nunca deixaram de sentir que nasceram no sítio errado e que viveram a vida errada, como percebe Raquel mesmo no fim de “Antes da Revolução”. Tanto Alexandrina como Alexandra Raquel são mulheres que nunca passaram de visitas das suas próprias vidas. Alexandrina cresce com uma mãe que lhe dava tanta atenção como a um cocheiro e tem suspeitas mudas acerca da identidade do seu pai. Alexandra Raquel é adoptada por Alexandrina à nascença mas nunca é acarinhada por esta, vivendo na mesma casa a vida toda sem por um momento deixar de ser confundida com uma empregada doméstica. E mesmo quando percebe, num momento aparentemente catártico, que nunca fora capaz de fazer de si mesma o eixo da sua própria vida, que fora sempre uma forasteira na sua própria casa, Raquel é incapaz de abandonar a Rua da Junqueira e “tomar nas mãos o seu destino” (página189), permanecendo assim alheada de si mesma.

O tom austero e distante com que as personagens contam as suas histórias não é, todavia, sempre o mesmo. Nas três primeiras novelas, encontramos frequentemente a distância, a frieza e a impessoalidade que leva a que, por exemplo, Alexandrina, em vez de se descrever como uma mulher bonita e graciosa, afirme que “certos olhares, que me atingiam de raspão quando passava na rua (…), insinuavam-me que havia um punhado de pessoas no vasto mundo para quem eu nunca poderia ser indiferente e eu própria não detestava a minha imagem no espelho, embora tivesse dificuldade em descobrir o que é que me salvava do desastre total, que longínquo parentesco mantinha com a beleza” (página 91).

No entanto, a esta frieza habitual juntam-se nas diferentes histórias pormenores que colocam em evidência, sempre discretamente, o enorme virtuosismo da escritora que assina com o nome de Teresa Veiga. Em “O Último Amante”, esta frigidez mistura-se com a amargura que Alexandrina sente pelo desprezo a que a mãe a votava; em “Antes da Revolução”, a impessoalidade de Raquel junta-se com a tentativa de fuga à influência da mãe adoptiva, evidente quando, ao comparar a superior beleza da mãe em relação à das senhoras que lhe costumam fazer companhia, argumenta que preferiria apesar de tudo parecer-se com estas últimas quando envelhecesse, acrescentando: “Prefiro uma rosa desfolhada a um cacto polido, erecto, sobranceiro e intocável no seu vaso.” (página 116); e em “A Minha Vida com Bela”, onde Alexandrina conta a história da sua amizade com Florbela Espanca, sendo a secura habitual contaminada por laivos de sentimentalismo exacerbado e da melancolia afectada característicos da poetisa portuguesa, como quando Alexandrina afirma que “era preciso que os versos germinassem e o orgulho crescesse, para que todos viéssemos a participar do festim magnífico” (página 40).

Sendo certo que todos os comentários a cada nova edição de uma obra de Teresa Veiga abrirão impreterivelmente com mais uma alusão ao mistério em torno da real identidade da escritora, é curioso notar que é contudo sempre para a sua própria biografia que as histórias integrantes de O Último Amante apontam. Na curta biografia que sempre acompanha os seus livros, somos informados de que Teresa Veiga terá nascido em Lisboa em 1945, precisamente o ano em que, na Rua da Junqueira, nasce Alexandra Raquel. Se a isso acrescentarmos que Alexandrina, a escritora reformada, tem, no período de escrita de “Antes da Revolução”, sensivelmente a mesma idade que Teresa Veiga terá hoje, compreendemos que existe uma peculiar autorreferencialidade nesta obra da escritora, que, ao criar a ilusão de desejar permanecer no anonimato não deixa de chamar a atenção para si mesma e para a importância da sua identidade na obra, encarnando ela própria este jogo das escondidas que as personagens teimam em jogar com o leitor, em que aquilo que se mostra serve apenas para engrandecer o que timidamente se esconde.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa