— Então e amanhã, Milton? Vencem?
— Oh Tiago, não há comparação: o Maia tem uma estrutura e o Canelas não. Pá, não há comparação! Nós não estamos a jogar para subir de divisão. É difícil subir.
— Mas e quanto a jogadores, está ela por ela? Tu é que dizes que vence quem “trabalha” mais…
— Sabes quem é que eles têm lá? O Pedras!
— Estás a falar do Pedras, “o” Pedras?
— Esse, esse. Que era do Leixões e fez a formação no Porto. O Pedras.
No sábado o treinador do Canelas deu uma entrevista ao Observador. E antecipou, qual Nostradamus, o que aconteceria no Maia-Canelas de domingo. O tal Pedras a que Milton se refere — hoje mais grisalho, barrigudo até, perto de ser quarentão e dar as últimas no futebol — tem um pé esquerdo que quase joga sozinho. Dois dos três golos do Maia são dele. Livres, cantos, até lançamentos laterais, tudo é por conta de Pedras nos maiatos: é aquilo a na gíria se chama o “dono da bola”.
Adiante lá iremos. É que o jogo não se conta só com o que no relvado se viu. E conta-se antes sequer de a bola começar a rolar. Milhares de adeptos — leia-se: milhares — chegaram a pouco e pouco à entrada do estádio. Do lado do Canelas havia uma meia centenas deles, sempre separados dos da casa pela polícia. Por falar em polícia: em redor do estádio, contavam-se uma dezena, talvez mais. No estádio, outra dezena só na pista de tartan, de costas para o relvado e olhos na bancada. Os restantes, cinco, seis, misturaram-se entre os adeptos do Canelas numa das extremidades da bancada central — o que a somar a um gradeamento e fitas lá colocados nunca permitiu que o caldo entornasse. A segurança era mais do que muita — só com o reforço que se viu o árbitro aceitaria apitar esta tarde como apitou.
Mas a polícia não impediria o bate-boca, isso não, e este começou logo na hora de esticar as pernas, que é como quem diz, do aquecimento. “Oh Macaco, não jogas um cara#%&! Oh Macaco, vai mas’é comer bananas, cara#%&! Vai mas’é p’ra casa!” O capitão do Canelas, Fernando Madureira, o “Macaco”, era o alvo preferencial dos adeptos do Maia. Quase nunca reagiu e quando fez, fê-lo sorrindo.
O dia primaveril convidada a sair de casa. Pelo menos até às bancadas. Na tribuna de imprensa a conversa é outra: à pinha de jornalistas, era envolvida toda ela em acrílico, envelhecido, riscado, o que dificultava a visão e fazia suar as estopinhas com o calor que lá se sentia. As televisões também acorreram ao estádio Prof. Dr. Vieira de Carvalho. O jogo seria filmado de fio a pavio. Mas se vieram à procura de “sangue” — como em tom de provocação se escutava dos adeptos do Canelas ainda no exterior –, vieram em vão e sangue não se viu.
Aliás, o que mais se viu foi compaixão. Sim: compaixão. Sobretudo por parte do Canelas. Ao quarto de hora, um jogador do Maia cai a meio-campo. Foi pisado (involuntariamente, atenção!) por um do Canelas na disputa de bola. O árbitro deixou seguir, mas apitaria depois ao notar que o maiato continuava sobre o relvado, a contorcer-se com dores num pé. Antes mesmo de o árbitro lá chegar, chegou primeiro Macaco, ergueu-o, deu-lhe um abraço e um calduço na nuca. Nas bancadas escutar-se-ia um misto de risos (alguns sarcásticos, pois claro) e de aplausos. O fair-play não é uma treta aqui.
Paulo, “só Paulo”, chegou tarde e com o jogo já a decorrer e não encontrava lugar onde se sentar. Ao colo trazia a filha e amarrado à mão da petiz estava um balão em forma de pónei cor-de-rosa. Lá se sentou. “Habitualmente não venho, habitualmente não. Mas hoje, como se falou tanto disto, quis ver no que daria. Se é perigoso para ela [filha]? Perigoso só se for para o Canelas — o Maia é muito melhor. E se forem violentos são expulsos, é tão simples quanto isto. Não estou nada preocupado.”
O adepto do Maia tinha razão numa coisa: os da casa estavam a ser, nos primeiros minutos, “muito melhores”. Dinando é extremo de posição, traz o número sete na camisola, um meia-leca que prega cuecas por dá-cá-aquela-palha, que cada vez que acelera e dribla deixa os rins dos laterais do Canelas feios num oito. As bancadas — ou melhor: a banca central, repleta — gostam do que veem.
FOR-ÇA MAI-AAA! FOR-ÇA MAI-AAA!
Do lado do Maia não há uma claque propriamente dita, mas há uma mão-cheia de mulheres que, estridentes, se escutam, intervalando o cântico com palminhas. Estão fora do tempo, é certo, mas o que é conta é a intenção. Um ou outro homem mais envergonhado lá junta a sua voz à delas. E Lurdes Barros é uma “delas”. “Eu cá sou do Maia e venho aos jogos todos. Sou mesmo do Maia. Não vim cá hoje só por vir. Provocações? Oh menino, eu lá sou disso”, garante, para depois atirar de chofre para o relvado e para o árbitro: “Os cartões ficaram em casa, cara#%&?” O árbitro não mostraria um só cartão o jogo todo, de facto. Mas tinha-os no bolso, Lurdes.
Do lado do Canelas escutava-se um hit da Juve Leo: “Uma curva belíssima…” Mas a letra é outra — e de tão ensaiada a trouxe-mouxe, mal se entende. Na frente da claque, debruçado sobre a pista de tartam, via-se o treinador do Canelas, Milton. Castigado que está durante um ano só de longe pode assistir ao jogo. Pouco depois mudar-se-ia (sozinho) para a tribuna. O seu adjunto volta e meia olhava para trás e, puxando do telemóvel, pedia-lhe indicações.
Não sabemos se foi a mão de Milton ou não. Mas a verdade é que a primeira ocasião de golo é mesmo para o Canelas — e de Macaco. O capitão (e ponta-de-lança) remata cruzado e ao lado do poste esquerdo à guarda de Costa. Errou por pouco. Quem não é de errar é Pedras. Dinando parte a loiça toda na esquerda, cruza para dentro e Pedras desvia de pé direito — que até é o “cego”. Nas bancadas festejou-se como se da final da Champions se tratasse; dos do Canelas nem pio.
E assim se chega ao intervalo. O presidente do Canelas, Bruno Canastro, visivelmente agastado e sempre cabisbaixo, conversa com o Observador durante aquele quarto de hora até ao recomeço. Que cara é essa? “Estou assim mas não é por estar a perder, sabe? Estou sob tratamento desde que aconteceu aquilo [agressão ao árbitro do Rio Tinto-Canelas]. Sou asmático e tenho tido crises. Fui-me completamente abaixo. Não estava nada à espera do que ele fez.”
“Trate-me só por Bruno, não me trate por presidente.” Onde é que eu já ouvi isto? Adiante. Bruno chegou ao Canelas há sete anos por “mero acaso” e agora, mais do que nunca, conta sair como entrou: depressa. “Estava na Assembleia de Freguesia [de Caneças] e pediram-me para assumir o clube, que se encontrava ao abandono. Assumi. Mas isto criou-me problemas profissionais e pessoais que você nem imagina. Sou diretor financeiro de uma empresa, tenho uma empresa de consultoria também. Não tenho tempo para isto. Às vezes passam-se semana sem que vá ao clube. E faço isto sem ganhar um tostão — às vezes até tenho que meter algum do meu bolso. Quando chegar a acordo com a direção para que alguém assuma o clube, vou-me embora. Eu nem gosto de futebol, sabe?”
Como assim, um presidente de um clube de futebol que “não gosta” de futebol? “Não gosto. Raramente vou ao futebol — e nem pela televisão vejo. Acredite! Não vejo… Fui ver o Porto duas vezes se tanto porque o meu miúdo me pediu. Antes, fui uma ver ver o Porto, há muitos anos, ainda nem era casado, e o Porto perdeu 3-0 com o Braga. Jurei nunca mais lá voltar. Faz sentido o clube continuar — temos mais de duzentos atletas, maioritariamente miúdos –, mas não contem comigo…” E lá voltou Bruno, ainda cabisbaixo, à tribuna.
A conversa com o presidente fez-se no exterior do estádio, para arejar as ideias. Quem também lá estava era Joaquim Santos, a espreitar para o jogo do alto de uma rampa — de onde só se via parte de uma baliza, diga-se. “Não entro? Não, não. Daqui vê-se bem. Eu sei que não se paga, eu sei. Mas não, deixe lá, deixe lá. Medo? Quer-se dizer, eu nem ligo muito à bola, mas como vinha cá o Canelas, espreito daqui de cima, pronto. Quanto é que está? Está a ganhar o Maia? Bom, bom…” O senhor Joaquim é curioso mas de poucas conversas.
Volta a rrrrrolar a bola. E a primeira ocasião de golo após o recomeço volta a ser, tal como na primeira parte, do Canelas. O remate chega da direita, ninguém do Maia corta a bola na área, esta segue para o poste contrário, Macaco está isolado, estica-se todo, mas falha o desvio. E vão duas para Fernando Madureira — ele que sempre que não tem a bola, esbraceja, insurge-se, grita, murmura, suspira e repete o ato vezes sem conta.
Voltou a falhar, é certo, mas Macaco contribuiria e de que maneira para o empate aos 73′. Depois de recuperar a bola à entrada da área do Maia, entrega-a na direita em Oliveira, que remata entre Costa e o poste direito. Oliveira corre em direção à bancada, bate no símbolo do Canelas, alguns adeptos envolvem-no em festejo, outros nem dele querer saber, voltam-se para os adeptos contrários e entre impropérios e piretes está o empate festejado à sua maneira.
Mas foi sol de pouca dura. É que do outro lado estava o tal Pedras, a besta-negra que Milton tanto temia. Recebe a bola à entrada da área do Canelas, está de costas para a baliza, volta-se, puxa da canhota atrás e num remate em arco coloca a bola lá dentro. Até parece fácil.
Pouco depois, e em busca que estava de novo empate, o Canelas endureceu o seu jogo — não foi violento mas foi durinho. O central do Maia, Teixeira, cai. Disputou a bola com Macaco e cai. O árbitro nada assinala. Nem pede que o fisioterapeuta entre para ver como o maiato estava. Macaco faz as vezes de um e de outro, árbitro e fisioterapeuta, apoia Teixeira sobre os ombros e leva-o até à linha de fundo. Teixeira não quer ir — mas vai, oh se vai. E por lá continua a protestar que não tinha que sair. E não tinha, de facto. Macaco ri-se.
De nada valeu ao Canelas jogar aquele minuto e picos com mais um. Pouco depois, 3-1 a favor do Maia. Foi aos 83′. Joãozinho entra na área pela direita, sofre um encosto de Isaac — mas é o lateral do Canelas que fica no relvado a queixar-se –, cruza para trás e Guil remata de primeira para dentro da baliza. Escuta-se na bancada: “Mais um! Só mais um!” E respondem: “Dois ou três. Com um 6-1 é que vai ser o bom e o bonito, para deixarem de falar deles!” O jogo acabaria pouco depois.