A imagem de Azam Taleghani, uma mulher de 73 anos, a entrar no Ministério da Administração Interna do Irão para se inscrever como candidata às eleições presidenciais no seu país correu o mundo. É a quarta vez que ela tenta, amparada por uma bengala, quebrar o status quo de uma sociedade que, apesar de ter bastantes mulheres em cargos públicos e políticos, ainda não as autoriza a concorrer à presidência nem ao organismo que de facto decide quase tudo no Irão: o Conselho de Guardiães, a Câmara Alta do parlamento, constituida por doze membros do clero, todos homens. Este ano foram mais de 130 mulheres a seguir o seu exemplo.
Desde 1997 que há mulheres a enviar candidaturas à Presidência, mas este ano foram mais de 130 as que optaram por dar esse passo, simbólico mas importante.
Tentar aceder a um cargo que lhes está vedado, continuar a insistir naquilo que consideram certo, é uma metáfora para aquilo que muitos iraninos sentem quando chegam as eleições.
Alguns analistas consideram as eleições no Irão uma espécie de exercício académico, um ato vão, que pouco pode mudar, mas as pessoas que falaram com o Observador têm outra ideia. As mudanças no país, sob a batuta de Hassan Rohani, que voltou a vencer as eleições na passada sexta-feira, 19 de maio, são reais. Rohani venceu com 57% dos votos, ou seja 23.5 milhões de pessoas contra os 15.8 milhões que votaram em Ebrahim Raisi, o candidato conservador que fez uma campanha nacionalista, advogando menos contacto com os “inimigos do Ocidente e “contra as elites ricas”.
Raisi, que tem 56 anos e fez carreira como advogado e juíz, foi escolhido pela Frente Popular das Forças da Revolução Islâmica, criado após a derrota dos conservadores nas eleições anteriores que de alguma forma se sentiram “esvaziados” depois da queda de Mahmoud Ahmadinejad, president do Irão de 2005 a 2013, extremamente criticado pela comunidade internacional por negligenciar acordos internacionais de Direitos Humanos, e também internamente, até pelos conservadores.
Raisi dirige aquela que é considerada a mais rica instituição de caridade do mundo muçulmano, a Astan Quds Ravazi. No verão de 1988 foi um dos juízes que autorizou a execução de mais de 30 mil dissidentes e presos políticos, um acontecimento que o Irão não esquece, e muito menos Rohani, que lembrou o acontecimento durante os debates e comícios.
Rohani, por outro lado, concorreu pela primeira-vez prometendo abrir o Irão ao mundo, e o primeiro passo foi dado: a assinatura do acordo nuclear com os Estados Unidos, no qual o Irão se comprometeu a abandonar o seu programa nuclear em troca do levantamento das sanções económicas que congelaram a economia desde da Revolução Islâmica de 1979, defendeu reformas sociais e económicas no Irão e recuperou os valores religiosos e tradicionais do islamismo. Mas as restrições à imposição do seu programa de abertura vão continuar.
O Líder Supremo Ali Khamenei tem poder de veto em todas as políticas e controlo sobre as forças de segurança. É por isso pouco provável que algumas exigências da sociedade, como a libertação de dissidentes, jornalistas ou líderes políticos oposicionistas presos nas suas próprias casas venham a tornar-se uma realidade a curto prazo. Jonah Hull, repórter da Al Jazeera em Teerão, escreveu que Rohani conduziu uma campanha “muito hostil, alienada da maioria das instituições que poderão não estar propriamente inclinadas para o ajudar neste segundo mandato”.
A maior promessa de Rohani, contudo, a do crescimento económico, ainda não se concretizou, ou pelo menos não de forma tão clara e abrangente como esperava a maioria dos iranianos.
A IranPoll, com sede em Toronto, no Canadá, onde vivem mais de 100 mil iranianos que não puderam votar porque o Canadá não mantém relações diplomáticas com o Irão, mostra que, embora a maioria dos inquiridos tenha uma opinião favorável sobre Rohani, mais de 70% não considera que a situação económica da população tenha melhorado com a assinatura do acordo. Além disso, a inflação baixou depois de Rohani ter chegado ao poder, mas os preços ainda estão a subir a uma média de 7% ao ano. O desemprego é outro problema: continua à volta dos 12% mas entre os jovens está perto dos 30%. Muitos recorrem por isso a negócios ilegais como a organização de festas clandestinas com homens e mulheres no mesmo espaço e a produção caseira de álcool — crimes punidos severamente, incluindo através de tortura física como golpes de chicote.
Zahra Kalhori, Teerão
Zahra é Estudante de Engenharia do Ambiente em Teerão, tem 23 anos e cresceu numa familia liberal. A família votou toda em Rohani. “A minha adolescência foi passada sob o jugo de Ahmadinejad e alguns dos seus slogans ressurgiram durante esta campanha e isso é assustador. ‘Morte à América’ e outras posições mais antagónicas em relação ao exterior voltaram a fazer parte do discurso público e isso faz-me lembrar as alturas em que os casais tinham medo de se sentarem lado a lado num banco de jardim“, diz Zahra.
Continua a não ser permitido o convívio próximo entre homens e mulheres que não sejam casados, mas hoje em dia a maioria dos polícias deixa passar. “Claro que continua a haver uma enorme restrição à convivência e as mulheres continuam a usar véu e tudo isso e os dissidentes continuam a ser severamente castigados. Para eles ainda não mudou quase nada, porque continuamos a ser um país conservador, mas para a população no geral, que não se mete em política, respira-se outro ar”. E é por isso que Zahra diz que é importante votar. “Fico feliz de saber que as urnas estiveram abertas até à meia noite, porque é uma prova que as pessoas sabem que têm alguma coisa a perder se não forem votar em massa. Se não votarmos então são os extremistas que ganham, porque esses votam sempre”.
Em 2013 o Irão dava ainda os primeiros passos na relativa modernização mas já era “um país diferente” porque “as mudanças políticas podem não ser tão significativamente radicais como aquelas que já aconteceram no Ocidente há muitos anos, mas quando Rohani chegou ao poder podia quase sentir-se que aquela era a direção certa num caminho mesmo muito longo, que só agora o país começou a percorrer”.
Hesam Houry, Montreal
Hesam é analista financeiro em Montreal, tem 38 anos e veio para o Canadá em 2009, no furacão da Revolução Verde, que é hoje considerada o embrião da Primavera Árabe e que se seguiu à segunda vitória de Ahmadinejad, que muitos consideram fraudulenta. Foram milhares de jovens, pela primeira vez munidos com telemóveis para dizerem ao mundo o que se estava a passar, e ele foi parte disso. “Quando te envolves em política num país autoritário sofres as consequências”, diz ao Observador numa chamada pelo Facebook.
Rohani foi “a melhor opção”, mas Hesam alberga poucas fantasias. “Desde a presidência de Khatami, muito mudou. Nesse tempo Rohani era um dos duros, esteve no Conselho de Segurança Nacional, escolhido pelo próprio Líder Supremo e sempre foi muito religioso. Só do ultra-conservadorismo de Ahmadinejad, as placas da política no Irão mudaram imenso. Continua a ser irónico para mim que ele seja o candidato moderado”, diz.
As promessas económicas de Rohani não produziram o efeito desejado o que “ofereceu um trunfo aos conservadores”. O Irão, diz, “continua uma sociedade dividida, apesar do turismo, dos contratos com fabricantes de automóveis europeus e dos homens de negócios que vão a Teerão, ainda há muita gente que não beneficia disto o que cria uma mentalidade de ‘nós contra eles’ “, acrescenta o analista financeiro. É preciso não esquecer, subinha ainda, “que a sociedade iraniana ainda é fortemente religiosa e apesar de haver muitos jovens, os conservadores ocupam os lugares de decisão e o comum iraniano tem muito pouco poder para questionar as instituições que o regem”.
Hadi Gaehmi, Nova Iorque
“Podíamos estar muito perto de um destino sangrento se Raisi tivesse ganho”, diz Hadi Gaehmi, diretor executivo do Centro Iraniano para os Direitos Humanos, ao telefone a partir de Nova Iorque, onde a sua organização está sediada.
O ativista e professor de Física mostra-se claramente aliviado ao telefone, mas sem nunca deixar de sublinhar o tortuoso caminho que o seu país ainda tem pela frente e a divisão latente na sociedade iraniana, que ele deixou em 1983.
“As primeiras preocupações dos iranianos são, por esta ordem: economia, emprego, liberdades culturais e direitos dos jovens e das mulheres. Em todos eles avançamos, em todos eles temos muito que avançar”, diz Gaehmi, que refere alguns dos “negócios” que proliferam na clandestinidade e que “safam” muitos jovens que continuam sem emprego, tal como a organização de casamentos clandestinos, onde os homens e as mulheres podem dançar uns com os outros.
“É uma sociedade cheia de jovens empreendedores, educados, inteligentes, com estudos e sonhos e é preciso dar condições que permitam às pessoas concretizarem o seu potêncial. Estas eleições, como as outras, não são irrelevantes como algumas pessoas dizem. É certo que há um corpo não eleito de homens que decidem quase tudo, mas o presidente tem o poder de influenciar a política, escolher ministros, pressionar, e, como se vê, as coisas podem e estão a mudar”, diz.
Isto porque, por muito religiosos que sejam os membros do Conselho de Guardiães, é dificil implementar medidas “completamente tradicionalistas e castradoras”, se não for essa a vontade expressa nas urnas. “Isso acontece em muitos países, é certo, mas o Irão é um pouco mais avançado, incluindo democraticamente, do que aquilo que as pessoas lêem nos jornais”, completa.
O problema continua o mesmo, contudo, para todas as vozes dissidentes. “A cultura tem sido extremamente reprimida, filmes, jornais, livros e ainda há muitos realizadores e jornalistas e ativistas na prisão. Para quem é mesmo dissidente as coisas não mudaram muito, mas para a sociedade em geral sim, a ‘polícia da moral e dos bons costumes’ relaxou”.
Mas o que esteve em causa nesta eleição, e isso foi uma “prova superada”, foi a eleição do próximo Líder Supremo. “Esta eleição foi muito importante, porque envia um sinal aos homens que irão escolher o próximo Líder Supremo. É o mais importante. O sucessor de Khamanei será a pessoa mais poderosa do país, a terceira apenas desde a fundação da República e um conservador de linha dura poderia colocar o país em confronto, quem sabe militar e direto, com potências tão fortes como a Arábia Saudita e os Estados Unidos“. Até porque Donald Trump “não está propriamente contra os Russos nem contra os sauditas” e se, “deste lado”, também exisitisse essa posição de confrontação “as coisas podiam não correr bem”. Este voto, para Gaehmi, “mostra que Irão não quer guerra”.