Começar a análise a um videojogo a dissecar as suas maiores influências pode parecer uma forma abrasiva e injusta. Identificar as semelhanças e os pontos de inspiração óbvios de outros objetos culturais pode parecer uma maneira de diminuir a qualidade desse mesmo videojogo, ou em extensão, uma quase definição da falta de identidade própria. Mas não é.

Reconhecer em RiME, a mais recente obra do estúdio madrileno Tequila Works, como um cruzamento entre a obra de Ueda em especial Ico, da linha visual de The Legend of Zelda: The Wind Waker e de Journey, três dos jogos mais consagrados da História, não é de forma alguma uma tentativa de menorizar as suas qualidades, mas assumir que essa interligação de três momentos-chave dos videojogos, quando bem conseguida, pode resultar num novo marco por si só.

RiME é uma história emocional que está a ser contada sem o recurso a uma única palavra, desde o seu início até ao seu fim, e na qual somos o protagonista. À semelhança de Ico e de The Last Guardian, somos um personagem que acorda num local desconhecido, com pouco ou nenhum contexto para o que nos antecedeu. Somos vítimas de um naufrágio, e isso é evidente pelos destroços na areia e pela nossa capa vermelha esfarrapada às costas, esvoaçante, e a demarcar-nos como um dos elementos mais destacados de toda a composição visual.

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Pouco ou nada nos é explicado e à medida que investigamos a ilha percebemos que há estátuas que ressoam à nossa voz, e que ativam elementos místicos que invariavelmente levam a alterações estruturais no cenário quase solitário à nossa volta. À exceção de alguns animais de pequeno porte e a pequena raposa que vamos seguindo desde os primeiros momentos, a ilha é completamente selvagem, e as construções com as quais nos cruzamos revelam os sinais do tempo e do abandono.

Falar de RiME é das tarefas mais difíceis que já tive enquanto crítico de videojogos. E não o digo por ser uma obra polarizadora para mim, que não é, mas porque qualquer descrição que possa fazer do que vamos descobrindo e o que vamos vivendo à medida que caminhamos em direção àquele farol longínquo seria automaticamente destruir a experiência de jogo.

RiME é uma forma diferente de contar uma história: a abordagem imersiva que os videojogos nos habituaram, de nos fazer sentir na pele as dores e os sofrimentos inscritos na narrativa. Admito que pouco depois do meio das cinco horas em que dura o jogo eu já tinha uma grande perceção do que estava a acontecer, de perceber a que metáfora correspondia todo o jogo e qual o desfecho que se avizinharia. Não estava errado, mas isso não diminuiu o impacto da experiência de o jogar, nem o quão devastado fiquei com o seu desfecho, e com a escolha derradeira que fiz ao cair do pano.

Mecanicamente este é um puzzle game, onde a nossa progressão pelos muitos cenários é conseguida através da ultrapassagem de certas barreiras. Nenhum destes puzzles é especialmente difícil, até porque acho que o intuito dos developers era de que estes obstáculos fossem momentos de crescimento e exploração do protagonista e não fontes de frustração para o jogador. São duas formas de criar jogos distintas, e neste caso os puzzles existem ao serviço desse bem maior que é a narrativa e não o inverso.

A direção artística de RiME é verdadeiramente sublime, sendo apenas igualada, senão ultrapassada pela sua banda-sonora. A construção visual do mundo remete-o para uma identidade estética próxima tanto de The Wind Waker como Journey mas com uma linguagem sua, e tendo tido a oportunidade de o jogar no PC com todas as especificações no máximo é que percebi o nível de detalhe e “realismo” que o jogo possui dentro da sua linguagem artística mais cartoonizada, onde a coesa e vibrante paleta de cores é sempre pincelada pela mancha castanha, branca e vermelha que nós somos.

As composições musicais de David García Díaz para o jogo são a melhor construção ambiental e emocional que poderíamos pedir. As excelentes orquestrações que o acompanham elevam o aspeto onírico desta jornada para um patamar de arrebatamento sentimental, onde cada uma das faixas da banda-sonora serve para ajudar a solidificar a ambiência visual e narrativa do jogo. E dentro de um media onde tantas bandas-sonoras são compostas, esta é daquelas que facilmente vou guardar e reouvir mais tarde, tendo a consciência de que serei transportado para os momentos de RiME que determinada música ilustra.

Chegámos agora a Junho mas 2017 tem sido um verdadeiro regozijo de excelentes jogos, criando invariavelmente uma ténue linha que separa as ótimas experiências que temos tido. Este ano que tantos bons jogos tem entregue veio inesperadamente trazer-me mais um, RiME, que pelo peso visual, estético e musical figurará como um dos melhores do ano no meu top pessoal, e uma experiência de cerca de 5 horas mecanicamente acessível a todos. Sem sombra de dúvida uma das grandes recomendações para praticamente toda a gente que goste de videojogos. E mesmo para aqueles que julgam não gostar.

Ricardo Correia, Rubber Chicken