O Presidente começou a manhã a comer queijo, mas não se esqueceu de mandar recados ao Governo ao longo do dia. “Eu sou o Rei dos queijos”, disse com graça ao visitar um espaço com o mesmo nome em Ponta Delgada. Rei dos queijos e dos portugueses. Em quatro dias nos Açores, Marcelo alimentou a imagem de um autêntico Presidente-rei. Ou nas suas palavras de republicano: “Responsável supremo no quadro da política do Estado português”.

Nos Açores, foi o que queria ser: um homem que o povo admira e acarinhou (recebeu banhos de multidão), que é figura cimeira do Estado (repetiu-o) e que, do alto da sua corte unipessoal, faz avisos ao Governo (foram dezenas). Governo esse, como o Presidente fez questão de repetir vezes sem conta, “só tem mais um ano e dez meses de mandato.”

Logo pela manhã, no mercado da Graça, em Ponta Delgada, Marcelo voltou a puxar dos galões da hierarquia do Estado. O Presidente sabe que o assunto mais sensível entre Belém e S. Bento são os incêndios do último verão, mas, mesmo assim, não recuou na pressão ao Governo sobre o assunto. Prometeu a um homem que o abordou que não ia deixar de acompanhar o assunto: “Eu não largo”. E, mesmo que não fosse essa a pergunta, Marcelo reiterou em jeito de ultimato: “Eu já disse o seguinte: o Governo tem menos de dois anos para resolver o problema”. O tom foi de ultimato.

À tarde — quando fazia o balanço da visita de quatro dias aos Açores numa escola das Sete Cidades — avisava que essa posição de tutela do Governo vai continuar até ao fim do mandato do Governo. Marcelo garantiu que fará “exigência constante para que não ocorra novamente uma tragédia” como a que ocorreu nos incêndios de Pedrógão Grande e de 15 de outubro. O Presidente explicou que reduzir a exigência que tem tido com o Governo de António Costa nos últimos dias a uma “realidade circunstancial é empobrecê-la“. Quanto à dureza do tom que utilizou para com o Governo a 17 de outubro, justifica que não foi “uma questão pessoal” ou “teimosia“, acrescentando que se não percebem o que quer dizer é porque “quem ouve, não quer ouvir ou não entende”.

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Cavaco Silva tinha fama de ir para as ilhas quando havia uma crise política nacional. Marcelo acabou por fazer o contrário, fomentou-a ao não desmentir o deteriorar de relações com o primeiro-ministro logo assim que aterrou no arquipélago, na quarta-feira à tarde, em Santa Maria. O seu antecessor numa das visitas aos Açores, em 2011,foi ridicularizado por falar em “vacas felizes” nos Açores, enquanto Marcelo mostrou mais ser descrente das “vacas voadoras” prometidas por António Costa. Repetiu várias vezes ao longo da viagem que é um “otimista realista”, por oposição ao primeiro-ministro que desde os tempos em que foi aluno Marcelo considera um “otimista irritante.” Todos os dias lhe enviou recados, entre um queijo ou um copo de leite.

Nos Açores, como seria de esperar, laticínios fizeram, aliás, parte das metáforas mais frequentes do Presidente. No sábado — durante uma aula a alunos do sexto ano, contou às crianças que quando visita uma fábrica de queijos os jornalistas lhe perguntam: “Diga lá presidente: é mais difícil fazer queijos ou dar-se com o primeiro-ministro? É mais difícil fazer leite bom ou ter um governo bom? A ver se o Presidente se descai e diz assim uma coisa com piada: ‘Ah, o leite é mais difícil do que o Governo. Ou são os dois difíceis’. Título: ‘É tão difícil ter um bom Governo, como ter bom leite’.”

Nos vários dias, Marcelo foi destacando que o Governo e o Parlamento têm menos de dois anos de mandato para cumprir. Mas ele, o Presidente, tem um mandato que vai além dessa data. E esta referência faz parte do objetivo: justificar ainda mais a sua legitimidade política. Daí que deixe o aviso que o Presidente “vai assumir até ao fim do seu mandato com este Governo, tal como com o futuro governo, qualquer que ele seja, um dever de exigência constante para que não ocorra novamente uma tragédia como esta [de Pedrogão e do 15 de outubro.”

No discurso mais oficial, Marcelo Rebelo de Sousa foi dizendo que não quer que se discuta os detalhes das querelas políticas: “Se continuamos a discutir os pormenores, não chegamos lá. E eu como Presidente da República não posso admitir que não cheguemos lá. Fui eleito diretamente pelo povo para exigir a mim mesmo e aos outros que cheguemos lá”. Marcelo define também como uma “questão menor” considerar que a sua exigência a a, b, c, ou d é “por razões conjunturais, fortuitas ou circunstanciais”.

Ainda assim não abdicou de enviar mais recados ao Governo de Costa, dizendo que em primeiro lugar após a tragédia o Presidente “ficou chocado consigo mesmo. Não começava pelos outros, começava por ele próprio, como responsável supremo no quadro da política do Estado português”. Marcelo enaltece aqui o facto de ser a figura cimeira do Estado, mas faz uma crítica velada aos membros do Governo — como noticiou o jornal Público em manchete — que se sentiram chocados com o discurso do Presidente a 17 de outubro.

Pela manhã, no mercado da Graça, Marcelo recebeu um autêntico banho de multidão e ouviu de tudo. E tudo de bom: “Precisávamos tanto, tanto de um presidente assim”; “Está a fazer um grande trabalho”; ou “Ai, que até fico nervosa ao pé do Presidente”. Provou tudo quanto era bolos ou frutas que lhe ofereciam. Num dos casos, em que demorava mais tempo na prova, ouviu o elogio: “Ele é muito paciente”. E aproveitou a boleia para mais uma indireta ao Governo: “Sou muito paciente, agora é que acertou”. E continuou, repetindo: “Sou muito, muito, muito paciente.” Era mais uma indireta, das dezenas que mandou ao Governo ao longo de quatro dias.

Por se demorar tanto a falar com as pessoas, Marcelo perdeu o voo comercial que tinha de regresso ao continente e irá seguir em voo militar da Força Aérea para Lisboa, tal como os jornalistas que o acompanharam nestes dias.