Foram perto de quatro anos de desenvolvimento — da ideia e do protótipo nascido de um Game Jam feito em 48 horas até ao lançamento mundial na PlayStation 4 e em PC, na terça-feira. Desde que começou a correr eventos nacionais de videojogos que Strikers Edge rapidamente se tornou no mais antecipado jogo português em desenvolvimento. E não era para menos: aquilo que os criadores Tiago Franco e Filipe Caseirito apresentavam era um jogo (aparentemente) simples, divertido, frenético e o furor de qualquer mostra de jogos indies nacionais.
Vê-lo ganhar a primeira edição dos Prémios PlayStation não foi surpresa para ninguém. Já nessa altura Strikers Edge demonstrava saber para onde queria ir e qual era a sua meta, tentando criar um jogo que tivesse potencialidades para entrar no mercado internacional dos jogos competitivos. O cruzamento das suas inspirações, entre o clássico de arcadas Windjammers e as melhores adaptações a videojogo do Jogo do Mata tornavam-no num objeto potencialmente único, num mercado que já demonstrava sinais de saturação.
Seguindo a tónica da maioria dos jogos portugueses, a sua execução artística apresentava desde cedo uma ambiciosa pixel art, com animações complexas e detalhadas que o equiparavam com os melhores exemplos revivalistas do mercado indie. Se analisarmos o crescimento desta vaga de talentos do game dev nacional (como observámos em Greedy Guns) é fácil perceber que a Arte (seja visual ou musical) é possivelmente o grande talento que encontramos nos estúdios portugueses. E o resto? De que forma encontramos a definição das mecânicas e o direcionamento de game design que pode ou não decretar a identidade única de um jogo? De que forma vemos os projetos nacionais a serem criados com uma perspetiva global? Seria Strikers Edge a resposta efetiva para estes Calcanhares de Aquiles de muitos dos jogos que o antecederam em Portugal?
Strikers Edge define-se como um dodgebrawler, um neologismo entre o Jogo do Mata (dodgeball) e um jogo de pancadaria (brawler), visto que mistura ideias de ambos. Com um campo de jogo dividido a meio (sem que possamos pisar o meio campo oposto), o nosso objectivo é o de acertar repetidas vezes no adversário até que este fique sem barra de vida. Uma ideia e um objectivo simples que foram levados ao máximo da sua complexificação através da adição de uma série de mecânicas interessantes.
Cada um dos oito personagens tem capacidades, histórias e mecânicas de jogo únicas e é no domínio em que estão associados à compreensão de todas as possibilidade de acção de Strikers Edge que reside a nossa destreza e sucesso em batalha. Para evitar sermos atingidos pelos projéteis dos adversários não nos basta movermos no meio campo. Temos uma panóplia de ações à disposição — seja deflectirmos os ataques com uma barreira que tem utilizações limitadas, seja tentar um movimento à Guilherme Tell e parar o projétil oposto com um nosso (na direção contrária) ou dar cambalhotas pelo terreno.
Há um dramatismo curioso neste jogo de ação intensa, com o pequeno slow motion e zoom in que acontece quando um personagem consegue desviar-se no último instante antes de ser atingido. Há um momento épico de repetição como no futebol, quando a televisão nos mostra a bola a passar tangencialmente perto da baliza, sendo quase golo. O público levanta-se e coloca as mãos à cabeça. Em Strikers Edge também.
Sejam manobras defensivas ou ofensivas (como arremessar a nossa arma), tudo gasta uma barra de energia. Isto confere um grau de estratégia interessante a Strikers Edge, que torna todo o jogo mais interessante do que qualquer tentativa prévia de fazer jogos deste ambiente. Saber quando atacar ou desviar é parte do segredo destes duelos, que se tornam cada vez mais batalhas de nervos à medida que os personagens vão perdendo as suas barras de vida.
Sendo um jogo direcionado para o multiplayer (seja ele local ou online, ainda que estas partidas permitam modos de dois contra dois, além dos duelos) foi uma agradável surpresa perceber a meio do processo de desenvolvimento que estava a ser criado um modo de história para um jogador. Esta é apenas mais uma prova do quanto a equipa da Fun Punch Games quis ir o mais longe possível com o seu jogo, nunca se acomodando às decisões confortáveis iniciais e sabendo que o trilho para a diferenciação também passa pela visão aberta sobre a sua criação.
Criar um modo single player de história num jogo obviamente direcionado para a competição é não só aumentar a nossa proximidade emocional com o elenco, mas também dar-lhe uma segunda vida possível. A morte prematura de um jogo destes, especialmente um indie cujo alcance não se equipara ao das pesadas estratégias de marketing de um blockbuster, pode passar pela ausência total de adversários. Incluir um modo de campanha permite-nos treinar e dominar cada personagem mas também adiciona um nicho exequível de jogo à falta de alguém para combater connosco, e desta forma podemos sempre jogar sozinhos.
Ver jogar a Strikers Edge e jogá-lo efetivamente são duas realidades distintas. Se tudo aquilo que nos aparece à vista é um jogo de combate simples, com personagens sempre em movimento, controlá-los e perceber o quão longe foi possível ir com uma ideia simples é outra completamente diferente.
Quando falámos do último grande lançamento português, o Greedy Guns, prenunciámos o Strikers Edge como o ponto de viragem do mercado indie nacional. A perceção de que a comunidade tem de todas as provações, sacrifícios, quilómetros e investimentos que levaram desde um protótipo de game jam até ao lançamento final ontem é o exemplo a perceber. Strikers Edge é a charneira do desenvolvimento em Portugal, a linha traçada entre o desconhecido do que estava antes e as certezas de que poderá chegar um dia para estúdios pequenos. A prova de que uma boa ideia é apenas a ínfima parte do que poderá resultar num bom jogo como este e a consciência de tudo o que é preciso caminhar entre esses dois pontos.
Indicámos Greedy Guns como o melhor que já tinha sido desenvolvido em Portugal, muito graças à sua direção artística e à composição de Miguel Cintra, que também assinou a banda sonora de Strikers Edge. Mas se a Greedy Guns faltavam argumentos para se destacar num mercado global apesar da sua qualidade, Strikers Edge soube estender a sua criação para além de qualquer coisa já feita.
Uma excelente ideia maturada e desenvolvida ao longo de alguns anos, afinada ao pormenor, com o suporte de comunicação e apoio da PlayStation, e que se pode traduzir na resposta a uma série de variáveis para conduzir um jogo sucesso. A esta equação adicionámos também a presença do jogo em eventos de três continentes, a promover o jogo e a recolher o feedback do maior número de público possível. Finalizamos a aritmética se lhe adicionarmos o know how de dois veteranos da indústria, Ricardo Flores e Diogo Andrade que se juntaram à Fun Punch e também contribuíram para levar Strikers Edge a bom porto. O bom caminho de entregar ao mercado um jogo bem executado, mas cuja incógnita do sucesso comercial não é respondida pela soma de todas aquelas variáveis na sua criação.
Strikers Edge é um excelente jogo e indubitavelmente o ponto de viragem do desenvolvimento indie nacional. A qualidade de todos os seus componentes iguala o que de melhor o mercado independente apresenta “lá fora” e as opiniões de quem joga reflectem-se nisso. O lançamento assume sobretudo o desenvolvimento indie em Portugal como uma possibilidade viável se for encarada com seriedade, rigor, metodologia e talento. O sucesso global do jogo dependerá da sua capacidade de demonstrar num curto espaço de tempo a sua qualidade, irrompendo com as paredes de saturação do mercado. Uma tarefa difícil, ao qual se somam todas as variáveis e incógnitas que tornam um jogo vendável ou não, cujo resultado efetivo não o despe do patamar de qualidade onde está.
Strikers Edge crava uma lança bem portuguesa no ano de 2018, demarca o tecido nacional de desenvolvimento num ano que aguarda a maior produção de sempre feita por portugueses, o Dakar 2018. O jogo da Fun Punch Games é o melhor título criado, desenvolvido e lançado por um estúdio português até então e é a sua qualidade que servirá como pedra basilar para que essa qualidade seja internamente ultrapassada. A importância de Strikers Edge para o tecido nacional de desenvolvimento ultrapassa as suas próprias barreiras enquanto objeto videolúdico. Novos “melhores jogos portugueses virão” porque o têm como o exemplo de um jogo que quis ir mais longe do que lhe era permitido a priori. E ao fazê-lo arrombou a porta das nossas próprias limitações coletivas e mostrou-nos que fora deste retângulo existe um mundo ao qual não somos inferiores. Essa conquista será sempre sua.
Ricardo Correia, Rubber Chicken