Frederico Lourenço leu pela primeira vez a Odisseia quando era pequeno e, desde então, Homero parece persegui-lo. Ou melhor: ele é que parece perseguir Homero. Foi sobre o poeta grego que deu a sua primeira aula depois de se licenciar e, em 2003, foi responsável pela primeira tradução portuguesa, feita a partir do grego, das aventuras de Odisseu (Ulisses para os latinos) que, depois do fim da Guerra de Tróia (narrada na Ilíada), embarca numa longa viagem de regresso a casa, na ilha de Ítaca, repleta de peripécias. Dois anos depois, repetiu o feito com a Ilíada. Passados 15 anos, muita coisa mudou e, aceitando um desafio lançado pela Quetzal, Lourenço decidiu aventurar-se mais uma vez na Odisseia e fazer uma nova edição do poema, revista e anotada. O livro, em capa dura e com perto de 700 páginas, chega às livrarias no próximo dia 23 de fevereiro.

“Voltarei sempre a Homero com todo o gosto”, afirmou o classicista durante a apresentação aos jornalistas desta nova edição, esta quarta-feira, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. “É um texto que não me cansa. Quanto mais se lê, mais parece inesgotável e fascinante”, admitiu Lourenço, que está neste momento a traduzir a Bíblia grega, cujo quarto volume deve sair em novembro, garantindo que “o tempo” que dedicou a esta nova Odisseia “soube a um momento paradisíaco de férias porque, apesar do trabalho, dá um gosto enorme”.

Para esta Odisseia, o especialista reviu “linha a linha” a edição anterior. Esta é, por isso, “muito diferente” da de 2003, a começar pela tradução. “O que quis fazer [na altura] foi dar a conhecer o poema às pessoas que se interessam por poesia e dar a conhecer um poema que, em Portugal, não era conhecido de forma aceitável”, explicou Lourenço. Até à publicação da sua tradução do poema homérico, havia apenas disponível uma única versão em prosa feita a partir do francês, tal como acontecia com a Ilíada. “Muitas pessoas em Portugal não sabiam o que era a Odisseia.” No Brasil, “a situação era diferente”. Contudo, as edições brasileiras sempre estiveram mais preocupadas em tentar “encontrar uma linguagem muito rebuscada”, que fosse de encontro à linguagem utilizada por Homero, do que em fazer uma tradução rigorosa do grego original.

A nova tradução da Odisseia, feita por Frederico Lourenço, chega às livrarias a 23 de fevereiro, com chancela da Quetzal

“Aqui optei mais pelo rigor do que pelo som”, explicou Frederico Lourenço que, na edição de 2003, não tinha tido tanto isso em conta nalgumas partes. “Esta está mais fiel ao que está em grego”, correspondendo “de forma mais rigorosa” à versão universalmente aceite da Odisseia. E que grego é este? É uma língua “que ninguém falou”. “A Bíblia foi escrita num grego que as pessoas falavam e que, na altura, era mais ou menos internacional”, afirmou o tradutor.

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“No caso da Odisseia, é uma mistura de dialetos. Era como se fosse uma mistura de catalão, castelhano e galego. A um grego da altura, daria a sensação de que se tratava da sua própria língua mas, ao mesmo tempo, não era. É uma língua totalmente artificial, poética, literária, mas ao mesmo tempo é grego, que é o grego da Bíblia. Muitas das palavras (90%) que podem ser encontradas na Bíblia grega, que Frederico Lourenço está a traduzir, vêm da literatura grega anterior. Algumas delas até surgem na Odisseia.

“Foi gratificante voltar a este grego, com o ritmo tão bonito que ele tem”, admitiu o especialista, acrescentando que “a intenção de todo o trabalho” que faz é fazer entender “às pessoas que, se souberem grego, podem entrar ainda mais a fundo” nas questões centrais da obra. “Sinto que a minha missão é dizer às pessoas o quão importante é o ensino do grego. É horrível perceber que, um dia, em Portugal, não vai haver ninguém a saber grego.”

Além desta questão, as edições anteriores sempre procuraram manter a “ideia de uma prosa imbuída de uma perfeição absoluta, que é que se espera de uma obra-prima”. Mas essa perfeição não existe na Odisseia. O poema está, de uma ponta à outra, repleto de pequenas inconsistência, de “pequenas coisas” que são próprias da tradição oral e que talvez até passem despercebidas aos mais distraídos. “Essas coisas estão tão bem disfarçadas que uma pessoa pode ler o poema” sem se dar conta delas, salientou Lourenço, explicando que foi esse um dos motivos pelos quais decidiu incluir as notas no final de cada canto e não na respetiva página. Deste modo, é possível manter a experiência “de deslumbramento” e até de ingenuidade que alguns leitores quererão quer, salvaguardando a ideia de que a Odisseia pode ser lida como um poema deslumbrante, mas também de forma crítica”. “Esta é uma edição que dará essa dupla oportunidade.”

Notas, para que vos quero?

A incorporação de notas explicativas é uma das novidades desta nova edição da Odisseia, que se deve, em parte, aos inúmeros pedidos que Frederico Lourenço recebeu dos leitores ao longo dos anos. ”Não pôr notas permite não tomar nenhum partido em relação às polémicas envolvendo a Odisseia”, nomeadamente em relação à geografia da obra (por exemplo, a Ítaca que surge descrita no texto, não corresponde à Ítaca que existe e que pode, ainda hoje, ser visitada) e ao próprio autor, uma questão debatida desde a Antiguidade.

Para esta edição, contudo, Lourenço viu-se obrigado a “tomar algumas decisões”, ao mesmo tempo que tentou “ser isento em relação às diferentes teorias que existem sobre Homero”. “Muitas das coisas que dava como adquiridas, que eram absolutamente fixas, quando comecei a dar aulas, já não penso que são assim tão certas assim”, adiantou, explicando que, hoje em dia, já não considera que a Odisseia se trata de um poema composto apenas oralmente, mas sim “com ajuda da escrita”.

Mesmo que a Odisseia tenha sido composta por “um poeta que tinha vindo de uma tradição oral”, a escrita é tão complexa e contém tantas citações da Ilíada que Lourenço que não acredita que tenha sido criada sem qualquer suporte escrito. Contudo — e curiosamente –, o poeta da Odisseia é “menos perfeccionista” do que o poeta da Ilíada porque é menos consistente. Ao longo do texto, existem “pequenas falhas que vêm da composição oral ou do descuido do poeta” que, se calhar, julgou que quem o estava a ouvir não iria notar essas inconsistências. Porque a Odisseia não foi “composta para ser lida, mas para ser ouvida”. Nesse sentido, a existência de notas explicativas no final de cada canto joga a favor de Lourenço que, assim, teve possibilidade de citar outros autores e de “dar fontes” e “pistas bibliográficas” aos leitores para que sejam eles próprios a formar a sua opinião.

Para o classicista é, porém, nesta natureza contraditória que está a beleza do texto. “As pessoas são intrinsecamente contraditórias e a natureza humana não tem uma só cor”, afirmou Frederico Lourenço. “[Na Odisseia,] o herói [Odisseu] é alguém de quem dificilmente gostamos e por quem dificilmente sentimos admiração. Quando abre a boca, é para mentir — não é capaz de dizer a verdade. Tem resposta para tudo e solução para todos os sofrimentos. O que acho interessante, é a existência de coisas contraditórias nas personagens.”

Por exemplo, Telémaco, filho de Odisseu, é apresentado no início da Odisseia como o príncipe ideal. Contudo, no final do poema, “é alguém que enforca escravas”, mostrando-se capaz dos crimes mais terríveis. Também em relação Penélope, a mulher de Odisseu, nunca se percebe muito bem “o que é que ela quer dos pretendentes”. Apesar de prometer que só se casará uma segunda vez quando acabar de tecer uma mortalha para o sogro Laertes (que desfaz todas as noites), de acordo com Lourenço, nunca se chega a perceber se ela dá esperança aos que querem casar com ela ou se, por outro lado, os procura afastar. É por estas razões que, para o classicista, “a Ilíada e a Odisseia são dois grandes tratados sobre a natureza humana”. As personagens dos poemas homéricos tem qualidades mas, sobretudo, defeitos. É isso que faz com que sejam humanos como todos nós.