O Carnaval de Ovar saiu hoje à rua com “espírito em alta” após dois anos de interregno, reaproveitando carros e adereços que ficaram por utilizar em 2022 e equacionando vender depois esses materiais para maior sustentabilidade económica e ambiental.
No desfile que hoje e na terça-feira leva a esta cidade do distrito de Aveiro mais de 4.000 participantes, um dos grupos carnavalescos que defendem essa economia circular é o Vampiros, que em 2023 assinala 52 anos de uma atividade em que se afirmou como especialista na conceção de maquetes à base de esponja e foi “pioneiro no bilhete-turista”, que permite a visitantes externos integrarem o corso.
Ascendino Silva integra a direção do grupo, traja a rigor para a gala dos “Simcuentras (e 2)” — que é a festa a decorrer no carro alegórico onde atuam imitadores de Toy e Quim Barreiros — e começa por dizer que “este ano toda a gente que participa no Carnaval tem o espírito em alta, depois de tanto tempo de pandemia, com as sedes quase vazias, sem desfiles para preparar, sem ambiente”.
O carro que os Vampiros agora fazem desfilar por Ovar foi concebido para o Entrudo de 2022, mas, após o cancelamento do evento nessa data, manteve-se guardado para utilização posterior. “Não se podia desperdiçar aquele trabalho todo, porque só em material estão ali uns 22.500 euros. É por isso que eu defendo que devíamos começar a ter uma política de reutilização destas peças, por um lado para evitar o desperdício de material que, no fim do Carnaval, vai diretamente para o lixo e, por outro, para ajudar à sustentabilidade financeira dos grupos”, explica.
Considerando que “o apoio da Câmara é de 7.900 euros, que as quotas dos 40 elementos do grupo não chegam para tudo, que é cada vez mais difícil ter patrocinadores e que a situação não vai melhorar com a guerra e a inflação”, Ascendino Silva pensa nas seis crianças que esse ano se iniciam com os pais na performance dos Vampiros e propõe: “Temos que ser conscientes. Podíamos criar uma feira para grupos de Carnaval de todo o país, em que se mostrasse o material que ainda pode ser utilizado outra vez e cada um comprasse o que lhe desse jeito para próximas edições.”
Beatriz Ventura, do grupo de ‘passerelle’ Joanas do Arco da Velha, aprecia a ideia, embora note que a ‘performance’ que partilha com as suas cerca de 80 colegas cria menos resíduos por ser totalmente apeada e não envolver carros. “Mas lembro-me que, noutros anos, ao desmaquilhar-me depois dos desfiles, me custava ver aquele ‘glitter’ todo a ir pelo lavatório abaixo, sabendo que ia parar ao oceano”, recorda.
As decisões quanto à compra de materiais mais ecológicos para o grupo não passam por ela, mas Beatriz tenta fazer a sua parte ao prolongar “ao máximo” o uso das roupas: “Guardo os meus fatos todos, para usar noutras ocasiões, e também vou buscar muitos à minha tia, que começou nas ‘Joanas’ há uns 30 anos e tem vários para me emprestar, que eu vou usando nos diferentes dias do Carnaval.”
Cada um desses trajes vem sendo feito, diz a estudante de 17 anos, “com muito cuidado e rigor”, o que se verificou também este ano, com fatos “de elite militar” em que casacos com colarinhos em padrão camuflado e botões dourados, por exemplo, prestam “uma homenagem às muitas ‘task forces’ de Forças Armadas, enfermeiros, médicos, etc. que ajudaram o país a ultrapassar a pandemia”.
Beatriz gostava era de ver esse esforço reconhecido também por um júri e daí lamentar que este ano não haja competição entre os grupos, numa decisão justificada com o facto de muitas das maquetes e adereços terem transitado da edição que se suspendeu em 2022.
“Nós demos o máximo na mesma e chegámos a ter reuniões só para discutir se devíamos trazer esta meia vermelha a espreitar acima das botas, em contraste com o verde, mas sabemos que nem toda a gente levou as coisas tão a sério. Haver competição era bom para nos incentivar”, argumenta a jovem.
Além disso, o anúncio dos vencedores constituía também um ritual: “Na terça-feira à tarde íamos sempre à Tenda [do Carnaval] conhecer os classificados. Acabar sem isso vai ser estranho… É como se a festa ficasse inacabada.”
Perante uma plateia constituída por 5.000 pessoas dispostas por bancadas e 11.000 espetadores apeados, alguns dos quais fantasiados de Minions, Rainha de Copas ou Harley Quinns, o primeiro corso do Carnaval de Ovar exibe ainda grupos com máscaras como as de “Empregado do Mês”, varredores de lixo, jogadoras de basebol, piratas, dançarinos tribais e vendedores de bijuteria cubana.
Um das figuras que se destacam no desfile é Ricardo Queirós, que, de fato roxo, óculos de massa zebrada e larga fita métrica amarela ao pescoço, é o único a não usar saia entre as Melindrosas, grupo de ‘passerelle’ cujos fatos são este ano inspirados em acessórios de costura.
É de São João da Madeira, só participa no Entrudo vareiro há duas edições e, quando o desfile ainda mal está a começar, já conta, bem “alegre”, que não tinha noção de como era esta festa: “As pessoas de cá vivem isto de uma maneira louca, param tudo para trabalhar no Carnaval! E ser o único homem num grupo com umas 90 mulheres, todas maravilhosas e espetaculares? É um privilégio, caraças! Vocês não fazem ideia!”.