Sara não conseguia encontrar uma explicação para o que tinha acontecido. Tinham sido oito anos de vida em comum e o companheiro acabara de sair de casa sem sequer dizer-lhe porquê. Sentia-se nervosa, deprimida, o corpo começara a definhar e numa semana perdera oito quilos. Naquele momento achou que a resposta podia estar na Internet. E por lá chegou até Madalena, uma vidente de Salvaterra de Magos que lhe conquistou a confiança e prometeu trazer-lhe o marido de volta. O caso acabou em tribunal, quando Sara percebeu que a conta bancária estava a zeros e que continuava só.
Os familiares de Sara já tinham percebido que algo se passava na relação entre ela e o companheiro. Mas, naquele mês de agosto de 2010, quando ele saiu de casa para não voltar, Sara ficou incrédula. Entrou em “descontrolo emocional e crise depressiva” e sentiu-se “completamente angustiada”, como descreve a sentença do Tribunal de Santarém proferida em maio de 2017, e que condenou Madalena a uma pena suspensa de cinco anos e oito meses de cadeia por burla qualificada.
Sem uma explicação para o fim da relação, Sara, que trabalha como técnica de contas, navegou por diversas páginas da Internet à procura de ajuda. Foi quando surgiu o anúncio de Madalena numa página de classificados online. “Se tem algum problema na sua vida e precisa de ajuda, não hesite e contacte… Faço e desmancho todo o tipo de amarrações, magias, bruxarias, etc… Sou pessoa seria [sic] e executo o seu trabalho com todo o rigor e honestidade… Contacte…”, lia-se.
A marcação foi feita por telefone e no dia e hora combinados foi Madalena quem lhe abriu a porta de casa, em Salvaterra. “Uma mulher loura com um ar muito simpático”, como descreveu Sara em tribunal, depois de desabar em lágrimas e lembrar-se do que tinha feito. Naquele momento, perante o coletivo de juízas presidido por Ana Paula Rosa, Sara apercebeu-se que o que estava a relatar parecia “ridículo”, mas em agosto de 2010 a sua cabeça não a deixava raciocinar assim.
Madalena, 41 anos, sabia bem como chegar aos clientes. Depois de lhes conhecer a vida, transformava-se numa espécie de amiga íntima. Naquela primeira consulta traçou logo um diagnóstico: a separação de Sara devia-se a um “bruxedo” e era preciso “iniciar trabalhos” para desfazê-lo e devolver-lhes a felicidade. Mas, para avançar, Sara devia começar por pagar 200 euros pelos trabalhos — ou seja, pelas rezas.
Madalena é filha única de um casal que sempre viveu na zona de Salvaterra. O pai trabalhava numa fábrica de celulose e a mãe era doméstica e, garantem, nunca deixaram que lhe faltasse nada. Segundo o Relatório Social que consta no processo, Madalena andou na escola até querer. Com o 9.º ano e já depois de ter 18 anos foi trabalhar para uma empresa de limpezas que lhe arranjou serviço no campo militar de Santa Margarida e num banco. Depois optou por trabalhar nas limpezas por conta própria. Há mais de dez anos, afirmou ela, percebeu que tinha uma “capacidade inata” e começou a aprender a ler cartas. Diz ter sido uma autodidata. O pai sofreu um Acidente Vascular Cerebral. Desde então, vivem juntos novamente.
Durante dois meses, os encontros com Sara sucederam-se. Umas vezes no carro, outras num bar da zona. Madalena ia pedindo fotos dele, da família. E dinheiro. Depois pedia mais fotos, porque as anteriores não eram eficazes. E mais dinheiro. O Ministério Público fala em cinco entregas em dinheiro vivo, a mais baixa de 400 euros e a mais elevada de 1300 euros. Entregas estas alternadas com o pagamento de seis cheques (em que o valor mais baixo foi de 150 euros e o mail elevado de 3 mil euros). O dinheiro foi levantado da conta de Sara, dos pais dela e de dois cartões de crédito.
Madalena justificava-se com os preços altos das velas e garantia que, até 18 de outubro, “mais tardar 19”, o marido estaria de volta a casa. As mensagens trocadas por telemóvel constam do processo que o Observador consultou. Nelas pode antever-se uma Sara desesperada a tentar juntar dinheiro e uma Madalena exigente com pagamentos e mais pagamentos. “Juro pela saúde do meu pai, que é a pessoa que mais amo neste mundo, que vamos vencer esta batalha”, disse Madalena numa das mensagens.
Sara foi pagando. Primeiro com o dinheiro dela, depois com empréstimos que ia pedindo aos pais e à irmã. A família ia tentando alertá-la, mas ao vê-la numa tristeza tão profunda não conseguia tirar-lhe aquela esperança. E ajudava-a. Até ao dia em que percebeu que já tinha dado 32.495 euros a Madalena e que nada do que esta lhe prometera se tinha concretizado. “Após ter percebido o erro que cometeu ao acreditar na arguida sentiu-se envergonhada, não saía à rua, não dormia e não comia”, lê-se no acórdão. Sara ainda tentou recuperar o dinheiro a bem. Mas acabou por sentir-se ameaçada por Madalena e o marido, como testemunhou a irmã e como explicou ao tribunal.
Madalena e António, 34 anos, casaram e vivem juntos há cerca de dez anos. Também ele, que tem apoiado Madalena, foi condenado neste mesmo processo a uma pena suspensa de dois anos pelo crime de recetação dolosa. Segundo a acusação, parte do dinheiro de Sara (mais de 5 mil euros) foi parar à conta dele. Pelo menos dois cheques (um de 150 euros e outro de 450) usou na compra de dois cavalos.
Aliás, no início do processo António identificou-se como um empresário que se dedicava à compra e venda de cavalos. Mas já em fase de julgamento mudou a versão sobre a sua ocupação profissional. Tentou convencer os juízes de que trabalhava diretamente com a mulher e que era ele quem fazia os trabalhos esotéricos mais complexos — enquanto ela se limitaria a deitar as cartas Tarot. Até apresentou um orçamento do tratamento que faria a Sara, para lhe trazer o marido de volta, argumentou. E ela terá aceitado. Uma versão que o coletivo de juízes considerou “inverosímil”.
O tribunal considerou ainda que Madalena “sabia que se dirigia a pessoas com problemas afetivos ou de saúde, debilitadas e desesperadas e, consequentemente, com maior recetividade a recorrer a esses préstimos em razão da situação de fragilidade psicológica em que se encontravam”. Mais. Que se aproveitou “do estado de fragilidade” da vítima e que a convenceu de que conseguiria trazer o marido de volta “através do erro que voluntariamente lhe causou”.
Madalena e António foram julgados no tribunal de Santarém, mas faltaram no dia 3 de maio, a data prevista para conhecerem a sentença. Justificaram as faltas com declarações médicas. Só nesse dia informaram o tribunal de que momentos antes tinham devolvido os 32 mil euros a Sara. Ainda assim, não se livraram da condenação. Devolver o dinheiro sete anos depois do crime e no dia em que seriam condenados não demonstra “arrependimento sincero”, consideraram as juízas.
Os argumentos usados nesta sentença explicam o que é necessário para, aos olhos da lei, o trabalho de um vidente ser considerado um crime de burla. “Os elementos objetivos essenciais do crime de burla são o uso de erro ou engano, ou seja, a manipulação psíquica do intelecto da vítima, sobre factos astuciosamente provocados, que determinem outrem à prática de atos que lhe causem, ou a terceiro, um prejuízo patrimonial”. Por outras palavras, lê-se no acórdão, esta manipulação corresponde “à manha, à habilidade para enganar, ao ardil, à intrujice, à subtileza para defraudar, ao embuste e à maquinação”. Não basta a pura mentira. A burla é qualificada quando representa o modo de vida do burlão.
Mas nem sempre assim entendem os juízes. Segundo explicou o advogado Carlos Melo Alves ao Observador, a fronteira entre o que é crime e qual o tipo de crime que configura esta atividade pode ser “muito ténue”. Para haver “engano ou erro” tem que se provar que a vítima estava de facto fragilizada e que não tinha noção das consequências do serviço que procurou e do dinheiro que pagou. Este é, aliás, um argumento pelo qual os advogados que defendem os videntes mais se batem: a consciência de que, quando alguém procura um vidente, sabe que está à procura de um serviço esotérico. É por isso que, nalguns processos, como o que corre em Coimbra, o Ministério Público opta por uma acusação de abuso de confiança.
Madalena já foi condenada, mas tem registo criminal limpo
Um dos argumentos que os juízes usaram para manter Madalena em liberdade, condenando-a a uma pena suspensa, foi o facto de ter um registo criminal imaculado. Mas isso não significa que não tivesse sido condenada antes, como aliás se constatou no processo. Madalena fora já condenada por burla qualificada, mas, como esses processos não transitaram em julgado, não constam ainda do seu registo criminal.
Um dos casos remonta a 2007, quando conheceu um homem no consultório de uma vidente em Torres Novas. Segundo a queixa que ele apresentou, os dois mantiveram um relacionamento amoroso durante mais de um ano. E Madalena conseguiu burlá-lo em mais de 100 mil euros. Apresentou-se como médica e, para alimentar a mentira, chegou a pedir boleia ao namorado para o local de trabalho. Ele, garante, chegou a vê-la entrar e sair das unidades hospitalares onde dizia trabalhar. Depois de alguns meses de vida em comum em Tomar, Madalena alegou ter sido transferida para Lisboa e, por esse motivo, só podia vê-lo aos fins de semana. Pouco depois, para continuar a receber dinheiro da vítima, disse-lhe que estaria grávida de gémeos. Mas que enfrentava uma gravidez de risco, pelo que precisava de várias quantias de dinheiro para pagar os tratamentos. Madalena conseguiu sempre convencer o namorado de que ele não a podia visitar e de que estaria depressiva com tudo o que se estava a passar.
Quando percebeu que tinha sido enganado, o homem apresentou queixa por burla. Madalena foi condenada a uma pena suspensa de cinco anos de cadeia por burla qualificada e ao pagamento de 107.200 euros ao lesado. O Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a pena, mas, três anos depois, o processo ainda não transitou em julgado e não aparece no cadastro de Madalena.
Sobre Madalena pende ainda um outro processo interposto em 2013 por uma cliente dos seus serviços esotéricos. Luísa telefonou-lhe depois de ter visto um anúncio em que prometia ajuda espiritual para “casos de amor”. Estava apaixonada por um homem casado que prometera deixar a mulher, mas que nunca mais cumpria a promessa. Madalena conseguiu convencer a cliente a transferir-lhe várias quantias em dinheiro só com uma consulta por telefone. Em dois meses, naquele ano de 2013, Luísa transferiu mais de 56 mil euros, desfalcando as suas poupanças e as da mãe — que à data estava internada no hospital. Porque não parou? Porque Madalena terá ameaçado que lhe faria mal a ela e à mãe com os seus poderes sobrenaturais.
Mas Madalena está longe de ser caso único da justiça envolvendo este tipo de acusações de bruxaria.
O caso da “Bruxa do Forno da Cal”
À noite era pior. As dores pareciam “murros na cabeça” e nem os medicamentos receitados por vários médicos que tinha consultado a aliviavam. Depois vinham as “vozes”. Maria ouvia vozes que a atormentavam e que a medicina não conseguia calar. Foi este o desabafo feito ao taxista que tantas vezes a transportava, corria o ano de 2009. Ao volante do carro, o homem sugeriu-lhe que recorresse à “Bruxa do Forno da Cal”, uma mulher conhecida pelo seu poder curativo que todos os dias atendia em casa, em Montemor-o-Velho, dezenas de clientes. Mais de sete anos depois, a “proteção espiritual” acabou em tribunal também num processo por burla. A “Bruxa” apoderou-se de mais de 100 mil euros das poupanças de Maria e do irmão.
Maria, hoje com 66 anos, chegou a trabalhar como modista, mas as doenças empurraram-na para uma reforma por invalidez. Era a mais nova de dez irmãos e, talvez por isso, a que tinha um feitio mais “especial”, segundo testemunhos dados ao Ministério Público e que constam no processo que o Observador consultou. Toda a vida viveu em casa dos pais. Viu os irmãos saírem para casar, depois deu-se a morte do pai, da mãe, de uma irmã. Acabou por ficar só com um irmão mais velho, chamado Joaquim, agora com 81 anos. Foi nesta altura que Maria e Joaquim começaram isolar-se do resto da família. Sem razão aparente.
Quando ainda tinha força para trabalhar, Joaquim lavava depósitos de vinho e enchia cascos na Junta Nacional do Vinho, em Cantanhede — e foi por lá que se reformou. Todos os meses, recebia 630 euros de pensão. Mas admitiu que era Maria quem tratava de tudo.”É ela que decide as coisas mais complicadas”, reconheceu ao procurador do Ministério Público que conduziu o processo de burla.
As dores de Maria começaram quando ficaram sozinhos. As consultas nos médicos, os medicamentos — nada resultava. Os irmãos começaram a suspeitar que eram vítimas de mau-olhado e até tinham uma razão para isso. Segundo Maria, Joaquim decidira fazer obras na casa de família e os outros irmãos não tinham ficado contentes. Ao Ministério Público, a família apresentou outra versão. Garantiu desconhecer os motivos do afastamento dos dois irmãos e disse que nunca foram contra as obras e que até receberam uma quantia simbólica em dinheiro do próprio Joaquim.
Mas Maria contou a sua história a Jacinta, a mulher conhecida por “Bruxa do Forno da Cal”, naquela primeira consulta no ano de 2009. Numa pequena sala, chamada a “Casa das Rezas”, Maria e o irmão sentaram-se à mesa em frente a Jacinta. E, durante meia hora (o tempo da consulta), contaram-lhe tudo. Maria falou das dores. Das intrigas de família. Jacinta ouviu-a e, no fim, cobrou-lhe 30 euros. Mas o tratamento teria que continuar. Seguiram-se mais consultas e, até, uma limpeza ao mau-olhado na casa dos dois irmãos a troco de 500 euros. Depois veio a proposta: proteção espiritual 24 horas por dia, desde que os dois fossem viver para casa dela e lhe pagassem entre 500 a 600 euros mensais.
A relação de confiança estava já estabelecida e para os irmãos era uma proposta irrecusável. Gostavam do sítio onde Jacinta morava e assim nunca estariam sozinhos e desprotegidos. Naquela casa térrea, viviam ainda, em dois anexos, as duas filhas maiores de idade de Jacinta, com os respetivos companheiros. E os dois filhos gémeos de Jacinta, com seis anos. Era um sítio “isolado” e calmo, segundo descreveram às autoridades. Podiam envelhecer ali.
Para trás deixaram as obras numa outra casa, em Lameiro, para onde pretendiam mudar-se em breve. Ainda faltava pintar, pôr tijoleira no chão e arranjar o jardim, mas Jacinta pediu-lhes a chave e prometeu tratar de tudo.
As duas fotografias de Jacinta que constam no processo mostram pouco desta mulher. Percebe-se que é forte, tem os olhos grandes, os lábios grossos e o cabelo ainda curto. Uma mulher comum que tem agora 52 anos. Em Forno da Cal, segundo constataram os investigadores da PJ, poucos ousam falar sobre ela. Dizem que todos os dias há muitos carros estacionados à sua porta de possíveis clientes que chegam de todo o lado. E mais não dizem porque “sentem temor”.
Na casa de Jacinta, Joaquim e Maria dividiam um quarto com duas camas de ferro pintadas de azul. Um anexo da casa que lhes permitia aceder a uma casa de banho e a uma cozinha exterior — que não era usada pela família. Quando se mudaram para ali, era Jacinta quem lhes cozinhava as refeições e os levava ao médico. Ao final do mês, a “Bruxa” levava Joaquim ao banco para ele levantar 600 euros. Ela dava-lhe 50 euros para “as despesas mensais” e ele entregava-lhe o restante pelo alojamento.
À medida que os laços entre Jacinta e os dois idosos se foram estreitando, o seu domínio era cada vez maior. Alegando que uma familiar estaria a mexer nas contas dos dois idosos, Jacinta conseguiu convencê-los a integrar as suas contas bancárias como segunda titular. A ideia era proteger-lhes as poupanças, disse-lhes. Mas, na verdade, o seu intuito era outro. Jacinta também conseguiu ser nomeada principal herdeira dos dois irmãos, por via de uma alteração no testamento. E até garantiu que os dois fossem consultados por um psicólogo que atestasse a capacidade para dispor dos bens.
A arguida começou a aperceber-se das posses económicas dos dois, que não se davam com mais ninguém precisamente por acreditarem que a família só queria o património que tinham, e começou a pensar na melhor forma de se apoderar dos 178 mil euros que estavam no banco, lê-se na acusação.
Entre maio de 2011 e janeiro de 2014, Jacinta conseguiu transferir das contas dos dois idosos 178 mil euros através de dezenas de levantamentos de 300 euros. Alguns valores transferia em contas próprias, outros usava para proveito próprio. Gastou centenas de euros em peças em ouro e até comprou um carro de sete lugares — alegando que precisava de uma viatura maior por ter dois idosos a seu cargo. Pagou tanto o ouro como o carro com dinheiro.
Quanto mais dinheiro e património Jacinta ia tendo dos dois idosos, menos cuidados lhes prestava. A certa altura deixou de cozinhar para os dois, disse-lhes que apanhassem um táxi para ir ao médico e só excecionalmente deixava que Maria usasse a máquina de lavar roupa. Os dois irmãos tinham que ir de bicicleta às compras e, quando o tempo permitia, Maria lavava a roupa no rio. Nalgumas vezes os dois irmãos perguntaram a Jacinta como estava a casa deles, aquela onde tinham decidido fazer obras pouco antes de se mudarem. Jacinta dizia que estava tudo bem e evitava que eles lá fossem.
Foi assim durante três anos. Até que o sistema de segurança do banco onde os dois idosos tinham as suas contas lançou o alerta. Maria e Joaquim tinham um perfil de cliente aforrista, com uma grande poupança e poucos levantamentos. E, nos últimos tempos, principalmente desde que Jacinta era também titular das contas, as suas poupanças estavam a ser desfalcadas sem razão aparente e sempre nos mesmos moldes. Era urgente avisar as autoridades.
O caso foi comunicado à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária em maio de 2013 e a PJ abriu inquérito. A investigação implicou ir ao terreno, falar com moradores, cruzar documentos bancários e, até, congelar contas para impedir que o alegado desfalque continuasse. Só no final desse ano o Ministério Público ordenou que fosse feita uma busca domiciliária a casa de Jacinta e que os idosos fossem informados de tudo o que estava a acontecer.
As autoridades ainda deixaram passar a noite de Natal e a festa do Ano Novo e só foram bater à porta de Jacinta nos primeiros dias de janeiro de 2014. O relatório das técnicas da Segurança Social que foram chamadas a acompanhar as buscas é claro. Os dois idosos viviam em “condições deploráveis”, num quarto “bastante sujo e sem condições de isolamento, demonstrando já grandes problemas de humidade”.
Não foi fácil falar com Joaquim e Maria. As técnicas da Segurança Social pediram para ficar a sós com eles, mas Jacinta teimava em interromper a conversa aos gritos. Quando conseguiram falar, explicaram-lhes que teriam que voltar à sua casa e que corria em tribunal um processo por suspeitas de burla. Tinham sido enganados por Jacinta.
O que diz o Código Penal
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Abuso de confiança
“Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade”. A pena pode ir até aos oito anos se o valor “for elevado”.
Burla
“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial” incorre num crime de burla. Pode dar prisão até três anos e, em caso de burla qualificada, oito.
Extorsão
“Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem”.
Joaquim e Maria ficaram surpreendidos, mas sentiam medo e receio de regressar a casa. Não por Jacinta, mas pelas dores que voltariam a atormentá-los. Diziam que tinham sido vítimas de “magia negra” por parte da familiar e que ali estavam protegidos. Acabaram por ceder e aceitar sair. Foram transportados por uma equipa de bombeiros à casa onde Jacinta impedia que fossem. Quando lá chegaram perceberam porquê. A mulher a quem tudo tinham confiado mandara pintar as paredes, pôr o chão e arranjar o jardim. Mas fez mais. Ocupou a casa com os seus bens e com fotografias da sua família.
Jacinta foi constituída arguida em agosto de 2015 e formalmente acusada já este ano. O Ministério Público entendeu não estar perante um crime de burla, porque os dois idosos pagavam uma prestação mensal pelo quarto que ocupavam, logo havia uma “contrapartida patrimonial”. Mas considerou estar perante um crime de abuso de confiança agravado na forma continuada e um crime de branqueamento. O Ministério Público considerou ainda que Jacinta lesou o Estado porque não declarou os valores que recebeu dos idosos nem das consultas que dava em casa. A Segurança Social exige-lhe que devolva os subsídios, do Rendimento Social de Inserção, que recebeu durante este período.
Jacinta está em liberdade, mas mudou de casa. Os dois irmãos, Maria e Joaquim, estão num centro de dia e dormem na casa decorada pela “Bruxa”. Um e outro dizem não estar de costas voltadas para ela. Só querem que ela lhes devolva o dinheiro. Maria assume que continua a consultar outra bruxa, porque só assim se sente bem.
“É mais fácil acreditar numa voz do além do que num psicólogo”
O psicólogo Carlos Céu e Silva até entende que, “em desespero”, as pessoas procurem serviços prestados por videntes. No entanto, constata que há clientes que não estão de facto desesperados, mas para quem é mais fácil “aceitar uma explicação esotérica, acreditar numa voz do além do que num psicólogo ou num psiquiatra que impõe uma mudança de comportamento”, explica ao Observador.
“O grande problema das pessoas é compreenderem que têm de mudar comportamentos. É muito mais fácil ouvir uma resposta mágica, viver uma vida iludida. As pessoas acham que o processo psicoterapia é demasiado longo e demorado”, diz.
Um engano, segundo o psicólogo. É que, explica Carlos Céu e Silva, consultar um vidente sai mais caro do que ir a um psicólogo ou a um psiquiatra e “a pessoa sai tão vazia como entrou”. “A pessoa sai com uma luz interior na qual acredita, mas continua depois com a sua vida desiludida, porque essa luz não se mantém acesa. Para se manter acesa tem que voltar ao vidente e, muitas vezes, comprar materiais para ‘se limparem por dentro’. Cria-se uma fantasia”, diz. “A nossa cabeça continua muito primitiva nesse aspeto, mesmo em tempo de novas tecnologias. Evoluímos pouco em termos emocionais”, considera.
O vidente que curava inveja, vícios, impotência sexual e problemas financeiros
O anúncio estava em todo o lado. Nas televisões, nas rádios, nos jornais: “Grande Vidente em Portugal; Ajuda a Destruir a Inveja, Vícios, Impotência Sexual, Retorno da Afeição e Problemas Financeiros. Resultados Muito Rápidos”. O negócio estava bem montado, com uma empresa com as contas em dia por trás e com consultórios em Lisboa, Porto, Faro, Funchal.
Foi no Porto que Fernanda marcou consulta naquele ano de 2006. Estava desesperada. Emprestara 500 mil euros aos patrões e não havia meio de recuperar o dinheiro. Acreditava que com rezas e mezinhas o valor voltaria à sua conta.
Naquele dia de janeiro, preparou os 30 euros de consulta e deslocou-se ao consultório do “Grande Vidente”. Na sala de espera havia uma caixa multibanco e pelo corredor “circulavam indivíduos de raça negra, corpulentos, vestidos de escuro”, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
Fernanda entrou numa sala sem janelas, decorada a vermelho e preto, com ar pesado, carregado de fumo de incenso. Sentou-se, atrás de si dois homens corpulentos. À frente, o homem que ia resolver-lhe a vida: vestido de branco, com uma coroa e colares. Ao seu lado uma mulher, também vestida de branco, que servia de intérprete e iria traduzir do francês para o português.
Fernanda devia deixar um cheque em branco ou um cartão multibanco dentro do cesto pousado em cima da mesa, só depois começaria a consulta.
Normalmente, o vidente cobria a cabeça dos seus clientes com um pano, fazia uma reza, passava-lhe as mãos ou um colar de contas pela mãos. E já estava. “Finda a lengalenga e sempre em francês, o arguido informava o incauto cliente de que o mal ou males de que padecia, era(m) provocados(s) por um ou mais espíritos, ou “forças negras” que se lhe tinham entranhado, ou de que sofria de um “mal ruim”, lê-se no acórdão. De seguida cobrava quantias entre os 6 mil e os 20 mil euros e, caso os clientes reclamassem, mostrava-se muito zangado e começava a “falar português”. O arguido ainda entregava uma garrafa com um líquido castanho, com a qual os clientes deviam banhar-se ou espalhar pela casa.
Na primeira consulta com Fernanda, o vidente disse-lhe que, se lhe desse 35 mil euros, ele conseguia fazer com que os patrões lhe pagassem os 500 mil euros em dívida em mês e meio. Fernanda acreditou. Ainda assim, só ao fim de ano e meio e depois de milhares de euros gasto em consultas é que percebeu que nada seria feito. Segundo a queixa que apresentou, em maio de 2007, Fernanda ainda voltou ao consultório do vidente para lhe exigir a devolução do dinheiro. Mas este tê-la-á empurrado contra uma parede, provocando-lhe ferimentos.
O vidente acabou por ser acusado pelo Ministério Público de burla qualificada e de ofensa à integridade física. Mas acabou despronunciado. Argumento: o caso em questão não pode ser considerado um crime de burla porque a vontade da vítima não foi manipulada e as agressões, embora comprovadas por uma entidade médica, não foram presenciadas (ver caixa). Ou seja, Fernanda procurou “os poderes fantásticos” e as “atividade esotéricas” que a terão lesado, logo não foi vítima de alegadas “manobras fraudulentas do agente”. Aos olhos da lei não houve burla.
PSP lançou o alerta
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Cuidado com alegados videntes, mestres, professores, magos, médiuns, curandeiros e astrólogos que fazem uma ampla divulgação dos seus serviços alegando que atendem profissionalmente em hotéis, escritórios e casas particulares, referia o comunicado da PSP em outubro de 2015, depois de vários relatos chegados àquela força.
Os falsos videntes, acrescentava o comunicado, “abordam as vítimas na via pública, junto a estabelecimento de saúde, cemitérios e outros locais suscetíveis de encontrar pessoas fragilizadas psicologicamente”. Os suspeitos — na sua maioria mulheres — apresentam-se, normalmente, “como possuidoras de faculdades transcendentais, capazes de prever o futuro, chegando a fazer pequenas demonstrações/truques para convencer as vítimas e alegando resolver todo o tipo de assuntos a troco de quantias monetárias”.
Segundo a PSP, na maioria destas situações suspeitas os falsos videntes “acabam por fazer render as suas supostas capacidades tanto quanto podem, revelando que tal só resulta se as vítimas não contarem a ninguém o sucedido e cobrando quantia monetária pelos seus serviços de futurologia”.
A experiência do Mestre Bambo
Argumentos idênticos usou o Tribunal do Porto numa sentença proferida em 2013 que envolvia o conhecido professor Bambo, o “Mestre Africano” que, com mais de 28 anos de experiência, resolvia “problemas de família, amor, trabalho, heranças, complicações com filhos entre outros”.
Nesse processo, fruto das queixas de dois casais em 2010, o “professor” era acusado do crime de extorsão. Mais uma vez, os juízes consideraram não haver crime, uma vez que o serviço prestado pelo vidente foi acordado com os clientes. Mais: Bambo devolveu às suas alegadas vítimas todo o dinheiro que estas tinham pago pelas consultas e tratamentos.
Um dos casais, que lhe tinha entregue 7.500 euros, contou que, à semelhança de Fernanda, o professor Bambo os tinha ameaçado caso não pagassem a tal quantia. Que primeiro o vidente tinha falado em francês com a ajuda de uma intérprete e que, no final, já falava em português.
Durante o julgamento, o professor falou sempre em francês, com a ajuda de uma tradutora, alegando ter trabalhado “14 anos em França e na Bélgica”. “Sou uma pessoa de paz. Nunca ameaçaria os clientes, não sou assim”, disse.
(Os nomes usados são fictícios para proteger a verdadeira identidade dos suspeitos e das vítimas.)