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Em 1908 veio a público um livrinho curioso, pouco conhecido dos leitores hodiernos — mesmo de alguns admiradores do visado – com o nome G. K. Chesterton: a criticism. O livro, além de curioso, excitava quem o fosse: não vinha assinado, mas trazia abundante informação sobre Gilbert Keith Chesterton, opiniões avisadas sobre o seu pensamento e uma certa vontade de polémica. Ora, o mais estranho nem era que um anónimo publicasse uma espécie de estudo biográfico-literário do jovem Chesterton, de tenros 32 anos, que ainda haviam de ser engordurados (não só em sentido figurado) com um caudal inesgotável de polémica, crítica e humor; estranho foi descobrir-se que o embuçado crítico era Cecil Chesterton, irmão mais novo do escritor.
Claro que esta biografia não tinha ainda as informações das mais recentes, que lavraram Ian Ker ou Michael Coren; em 1908 ainda estava no prelo a Ortodoxia, ainda não nascera o Homem Eterno nem o Padre Brown revelava os mistérios do crime a par dos mistérios da fé; a política ainda não sofrera os golpes da sua pena afiada de que já sangravam Kipling, Wells ou Bernard Shaw, Chesterton ainda não visitara a América numa roda-viva de conferências e, sobretudo, ainda não tivera a grande conversão católica da sua vida. Ainda assim, o livro de Cecil alinhava com argúcia alguns dos traços principais do carácter de Gilbert.
Chesterton, ficamos a saber, ganhou um prémio escolar de literatura quando ainda devia tentear nos mistérios do alfabeto; no entanto, e embora o prémio já adivinhasse a sua vocação literária, é a outro feito escolar que Cecil dá verdadeira importância. Parece que, enquanto andava na St. Paul’s School, Chesterton terá criado um pequeno clube de debate, The Debator; o sucesso teve alguma importância escolar, de tal maneira que, diz o irmão, Chesterton nunca o abandonou completamente. O seu grande eixo literário é feito de polémica e controvérsia (ou não se chamasse O Defensor o seu primeiro livro de ensaios), sempre a espadeirar contra alguém ou contra alguma ideia. Os títulos de vários livros dão logo conta disso (Que há de errado com o mundo, Heresias, o já referido Defensor…), e a justificação para o surgimento da Ortodoxia também – segundo o próprio autor, a Ortodoxia surgiu como resposta a uma acusação, depois de Heretics, de que Chesterton só destruía ideias, não apresentava soluções. Daí que, para destruir a ideia de que só destruía ideias, tenha decidido apresentar as suas.
Literatura de combate
Este é, provavelmente, o lado mais vulnerável da colectânea de ensaios seleccionada por Alberto Manguel que a Relógio d’Água nos apresenta. Embora haja de facto muitos ensaios de rebate de ideias feitas, ou de denúncia de “ideias Cristãs que se tornaram loucas” – o método é tão intrínseco a Chesterton que ignorá-lo seria calar o autor – faltam alguns dos ensaios mais vigorosos, em que o brilhantismo do raciocínio está mais à vista e as teses são mais importantes. Há combate, porque Chesterton tem uma mentalidade combativa que se nota quer quando trata da rima na literatura, quer quando filosofa sobre a técnica do romance policial; a melhor maneira de mostrar a sua força bélica, no entanto, está em lançá-lo no campo de batalha, não nos plácidos campos de Inglaterra ou na imensidão de Shakespeare, em que um Homem pode espolinhar à vontade sem chocar com nada.
Os ensaios sobre Kipling ou Shaw escolhidos para esta antologia são exemplo disto mesmo: em Heretics, o confronto com Kipling segue-se a um ensaio em que Chesterton leva até ao ridículo a ideia moderna de procurar ser heterodoxo, quando no fundo qualquer heterodoxo julga na verdade ser ortodoxo – isto é, que a sua opinião está certa. Embora o ensaio sobre o autor de Kim tenha interesse, embora, numa inflexão tipicamente Chestertoniana, mostre que o imperialismo de Kipling é contrário ao patriotismo, por desejar aquilo que está fora de Inglaterra, enquanto o verdadeiro patriota está contente com o seu país; embora o ensaio mostre o conhecimento que Chesterton tem da literatura do seu tempo, não tem aquele vigor das grandes intuições de Chesterton, aquela sensibilidade para perceber quais são os grandes erros do mundo moderno e combatê-los com toda a sua força e todo o seu humor.
O mesmo se passa com George Bernard Shaw. A amizade antagónica de Chesterton e Shaw, que temperava visões do mundo opostas com o mesmo humor paradoxal, levou Chesterton a publicar um estudo literário sobre o autor de Man and Superman. Esse estudo começa com três capítulos provocatórios em que Chesterton afirma não ser possível compreender Bernard Shaw sem compreender a sua índole profundamente irlandesa, puritana e progressista. Ora, mesmo fazendo vista grossa ao descaramento de chamar irlandês típico ao maior internacionalista do seu tempo, e de chamar puritano a um materialista convicto, é impossível fazer vista grossa à combatividade destes três capítulos.
São casos típicos de Chesterton: a inversão de uma imagem – neste caso do irlandês, tido por sonhador no anedotário de Inglaterra, que Chesterton verte em pragmático – e o combate ao puritanismo (“ser puritano não é só um grande pecado; é também já um grande castigo” diz noutra altura). O ensaio sobre Shaw apresentado nesta antologia vem depois deles, quando Chesterton já recolhe as canas de uma sequência imparável de exuberância dialéctica.
É certo que alguns dos ensaios ideológicos mais conhecidos – como a moral do país das fadas, tirado da Ortodoxia – figuram na selecção; acontece, porém, que estão enquadrados num ambiente que não permite dar conta da sua combatividade. Os livros de Chesterton prestam-se a isso, de facto, mas alguns dos ensaios escolhidos, mais do que como ensaios, foram pensados como capítulos; a introdução à breve história de Inglaterra aparece aqui como texto independente — tal como a moral do país das fadas, por exemplo — o que não permite ter uma percepção completa de tudo aquilo que Chesterton quer alcançar ou já pressupõe quando chega ao capítulo.
Perdem, portanto, alguns ensaios com isso, e perde também a antologia por não o referir. Para acabar com os defeitos numa selecção tão cheia de virtudes, parece-nos, portanto, que devia haver referências da origem dos ensaios. Já não dizemos dos ensaios soltos, publicados na G. K.’s Weekly e recolhidos depois numa amálgama de escritos Chestertonianos; há, porém, já o dissemos, autênticos capítulos de livros descontextualizados, ensaios publicados em conjunto separados em novos grupos e, confusão maior, conjuntos de ensaios que, neste livro, têm o nome de outros conjuntos. O defensor é não só o nome do primeiro livro de ensaios de Chesterton, como uma secção da antologia de Manguel; acontece que a escolha de Manguel tem ensaios do verdadeiro defensor noutras secções, omite de todo alguns e junta outros que não lhe pertencem. O leitor sabe que a selecção é de Manguel; no entanto, não só ganharia o livro com as referências, como perderia a confusão.
Chesterton eterno
Dissemos – e repetimos – que esta antologia está cheia de virtudes. Apesar de julgarmos o lado truculento de Chesterton sub-representado, também reconhecemos que há aspectos da sua vida que recendem das páginas com uma subtileza que poucas recolhas alcançariam. Depois do colégio e antes de se dedicar ao jornalismo, Chesterton foi estudar belas-artes; a partir dos ensaios escolhidos por Manguel percebemos que a paixão pelo desenho nunca acalmou. Entre os ensaios sobre o carvão e a tentativa de desenhar no tecto há um sem-número de ensaios que começam com o relato de uma situação em que Chesterton está a desenhar.
Ora, o desenho, para ele, está associado a uma espécie de deslumbramento infantil que dá à sua prosa grande parte da frescura que ela tem. O deslumbramento pelo desenho, pela possibilidade de criar, é o mesmo que lhe causava o teatro de fantoches tão gabado na sua autobiografia, e também o mesmo que lhe traz o amor e o fascínio pelo mundo. Claro que na sua grande batalha pela visão surpreendente do mundo – como em tudo o que ele escreve, aliás – há um lado moral; o facto de Chesterton se surpreender mais com a existência de nariz nas pessoas do que com brincos no nariz dos originais tem muito que ver com a oposição à ideia materialista da causalidade como uma necessidade absoluta.
Chesterton – no Homem Eterno mais do que em qualquer outro livro – explica a causalidade como uma espécie de magia em câmara lenta, como se os Homens, por verem o processo de transformação de um príncipe num sapo, deixassem de se admirar com o resultado. O hábito não produz necessidade, nem a necessidade produz razão para essa mesma necessidade; daí que Chesterton, além de desprezar todo o tipo de eugenias e materialismos que encontram a necessidade depois do facto, ganhe uma visão tão singular do mundo.
Para Chesterton tudo é milagre, daí que seja tão belo ou tão cómico. O seu ponto de vista não é um ponto de vista habituado, é uma atenção permanente que consegue extrair a estranheza do facto de um Homem andar sobre dois pés ou de ter cinco dedos em cada mão. É deste ponto de vista fascinado que brota quase todo o seu humor e a comovente beleza dos seus escritos. Não é preciso concordar com Chesterton, nem sequer admirar as contorções do seu raciocínio, para sentir um fascínio pelo modo como a vida transparece em todo o seu esplendor na prosa de Chesterton.
Quando, na sua autobiografia, Chesterton fala da morte do seu irmão, este amor pela vida é particularmente óbvio. Cecil morreu na guerra, mas o tom de Chesterton é tão espantoso que quase que o exuma. O sentido de justiça que Chesterton lhe atribui, a incansável pugna pelas suas ideias, ressuscitam pela boca do irmão sobrevivente. Cecil devia intui-lo; daí que, como herança, tenha deixado a Chesterton um dos trabalhos mais relevantes da sua vida.
No princípio do século, Belloc, o grande amigo de Chesterton (tanto que Shaw chamava Chesterbelloc a esta parelha de cruzados) tinha um pequeno jornal chamado Eye-witness. Gilbert e Cecil Chesterton escreviam nele, por lá começaram a divulgar o afamado distributismo, o sistema económico baseado na pequena propriedade e a defesa da moral Cristã; acontece que o jornal passava por algumas dificuldades económicas, de tal modo que Cecil decidiu comprá-lo, mudar-lhe o nome para The New Witness e chamar o seu irmão para maiores responsabilidades no jornal.
Chesterton já tinha abandonado as belas-artes para se dedicar ao jornalismo; no entanto foi só com o The New Witness que ganhou verdadeiro arcaboiço no assunto. O New Witness foi o principal delator do famosíssimo caso Marconi, que cobriu com grande insistência e lhe valeu uma série inesperada de leitores e outra mais esperada de inimigos. Belloc, colaborador do jornal, foi provavelmente quem mais sofreu, com acusações constantes de conspiração francesa (Belloc era francês pela parte do pai, como Chesterton pela parte da mãe, coincidência muito esmiuçada na autobiografia de Chesterton); quem mais teve de aguentar, porém, foi Gilbert Keith Chesterton, já que Cecil partiu pouco depois para a guerra e confiou-lhe a direcção do jornal até ao seu regresso. Ora, como Cecil morreu na guerra, Chesterton manteve-o até ao fim da vida.
A morte de Cecil foi, de certa forma, um golpe no distributismo e na sua liga, já que o irmão mais novo do escritor de Tremendas Trivialidades era um dos seus maiores entusiastas; a sua acção indirecta, porém, continuou bem visível. São várias as vezes em que Chesterton escreve sobre o carácter sagrado da propriedade, sobre a forma como esta liberta o Homem ou sobre a magia de um lar inexpugnável; mais ainda, porém, são as vezes em que menoriza o espírito oligárquico e sofisticado (no fundo, o espírito do caso Marconi) e exalta o senso-comum do povo.
O popular elitista
Nesta antologia da Relógio d’Água a secção em que Chesterton defende os maus romances é a mais significativa neste aspecto; no conjunto da sua obra, porém, a Pequena história de Inglaterra é provavelmente o maior hino ao valor do povo. Chesterton, como bom admirador da autonomia medieval, da civilização a construir-se, toma a sabedoria popular como a toma um verdadeiro tradicionalista. Não só nas frases mais sonantes – como quando afirma que a verdadeira democracia é aquela que também tem em consideração a opinião dos mortos – mas em toda a mistura de idealismo e sentido prático, de amor pelos prazeres comezinhos e de interesse pela vida genuína que encontra no povo.
Todas as instituições populares – sejam as canções, sejam os bares – merecem a admiração inesgotável de Chesterton, enquanto parte de um mistério que é a construção da sociedade. Como é que do convívio dos Homens sai tantas vezes algo maior do que as partes, algo que, sem aparente ligação e sem intenção declarada, tempera os ânimos e possibilita a vida comum? Chesterton sabe que a leitura de um romance é capaz de dar energia a um Homem para suportar dez dias de trabalho e uma cerveja paciência para dez noites em casa; olha para a vida social como um mistério, como um produto da ligação entre a vontade humana e a Divina que se vão adaptando, e é por isso que é um verdadeiro tradicionalista: porque, embora não saiba o que é que modela o quê, sabe que o Homem criou a civilização para si e sabe desfrutar dela.
Chesterton tem esta ambiguidade cómica, de ser ao mesmo tempo um amante da singeleza popular e da maior sofisticação literária, de ser um adepto dos princípios concretos e de ter um cérebro com evidente vocação abstracta; é, no fundo, o batedor do povo no meio da sociedade bem-pensante, e nisto tem uma certa semelhança com o seu grande herói literário, Charles Dickens. Chesterton conhecia profundamente a literatura do seu país: amava Chaucer e toda a sua época, Shakespeare e Fielding, vibrou com Stevenson e Carroll na infância e com Whitman e Wilde na juventude. A antologia de Manguel dá conta de várias destas paixões, mas também demonstra que nenhuma foi tão forte como a de Charles Dickens. Dickens tinha, a par da evidente sofisticação literária, o humor e o bom-senso que Chesterton não encontrava nos escritores da sua época.
De Heretics à Ortodoxia, Chesterton sempre gostou de polemizar com escritores. Shaw foi o mais visado, sem dúvida, mas a contestação de Chesterton ia do racionalismo cáustico do autor de Pigmalião ao non-sense da literatura vanguardista do seu tempo. Chesterton nunca foi um racionalista; no entanto, também põe o seu padre Brown a desmascarar um falso padre por este ir contra a razão (“é má teologia”, diz o Padre Brown). A razão de Chesterton é aquela que especula sobre o mistério; que sabe que as premissas são sempre dadas por uma asserção arbitrária e que a razão pode desvelar as suas contradições, mas não substitui o bom-senso na aceitação dos dados. A razão não é criadora e, na verdade, pode ser manejada para dizer tudo e o seu contrário.
Chesterton, o mestre do paradoxo, mais do que dizê-lo, mostra-o constantemente. A razão pode operar sobre os dados mais inesperados e as maiores fantasias; não consegue, no entanto, dispensar alguma fantasia, do mesmo modo que a fantasia não consegue dispensar alguma racionalidade. Um dos capítulos fundamentais da ortodoxia trata precisamente disto: a fantasia pode estabelecer as suas próprias regras; mas tem de as estabelecer.
O Homem que define um princípio, que afirma qualquer coisa, está já a afirmar a racionalidade e, com isso, a moral. Pode dizer, como Bernard Shaw, que a regra de ouro é que não há regra de ouro; não o pode fazer, no entanto, sem cair em contradição. A grande, a principal, batalha de Chesterton é esta: um Homem até pode dizer que não há verdade; mas nessa negação está a estabelecer aquilo que acredita ser a verdade; aquele que disser o contrário, por muito paradoxal que isso seja, estará a atentar contra a verdade. Todo o Homem, esforça-se Chesterton por provar, tem uma ortodoxia. A partir do momento em que a tem, está mais próximo da verdadeira ortodoxia, da bela e esplendorosa ortodoxia com que Chesterton se cruzou no meio do seu povo e no seio de sua casa.
A biografia de Ian Ker sobre Chesterton começa com uma invectiva aos leitores para que conheçam o Chesterton ensaísta. Isto porque em Inglaterra Chesterton é mais vezes reconhecido com o romancista de segunda do que como o ensaísta de primeira. Em boa hora, portanto, sai esta tradução tão abrangente que dá conta dos vários aspectos da personalidade de Chesterton. Chesterton é um autor cheio de trocadilhos, com uma cadência muito inglesa, difícil de traduzir. A versão portuguesa, embora com alguns erros vulgares (a bebé em vez de o bebé, aderência em vez de adesão), algumas formulações esquisitas como “Permito-me a explicar melhor” e umas “virtudes cardiais” que estiveram perto de nos causar um ataque cardéaco, faz tudo o que se pode fazer num caso destes. Chesterton usa a língua tão bem como o cérebro, o que reveste os seus ensaios de um duplo interesse raro mesmo na melhor literatura. Se escrevesse só como escreve, já estaria perto de se tornar um génio; a pensar como pensa, está além disso perto de se tornar um santo.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.