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Durante quase dois anos passou os dias ao computador. A consultar bibliografia e a escrever. Escreveu quatro artigos científicos e completou a tese de doutoramento, que defendeu a 22 de dezembro de 2015. Agora, sente os dias demasiado vazios. Ana Luísa Silva é engenheira biológica, mestre em Biotecnologia e agora doutorada em Ciências Biofarmacêuticas, mas está desempregada desde 2013. Ela, como outros portugueses, quis voltar para trabalhar no país que a viu nascer.
Ana Luísa foi para a Holanda fazer o doutoramento em 2008. Tinha-lhe interessado o projeto proposto pelo Centro Académico de Leiden para a Investigação em Drogas (LACDR, na sigla em inglês). Mas quando terminou o contrato com a Universidade de Leiden, em 2013, decidiu voltar para Portugal. “Estava farta da Holanda e daquele tempo horrível”, diz a investigadora queixando-se da chuva e dos verões tristes. “Os meus amigos estavam todos a acabar o doutoramento e a ir embora.”
E Ana Luísa Silva veio também. Esperava poder arranjar um trabalho na sua área de investigação e deixar as horas vagas para escrever a tese na área da imunoterapia do cancro. “Voltei com a tese ainda por escrever, mas achei que não teria problemas em arranjar trabalho por cá.” Não pode candidatar-se a bolsas de pós-doutoramento por ainda não ter defendido a tese, mas também não conseguiu uma bolsa de investigação para mestre por ser sobre-qualificada.
A imunoterapia – o estímulo do sistema imunitário para combater o cancro – é uma área de investigação em expansão e Ana Luísa Silva trabalhava num tema específico: a utilização de nanopartículas nas vacinas contra o cancro. Tinha-se especializado num campo tão específico que achou que seria fácil encontrar emprego, mas não foi. “Cheguei à conclusão que existe imensa gente com doutoramento à procura de emprego”, diz. “Como é que há 10 pessoas a concorrer a uma vaga numa área tão específica?” Mas a investigadora sabe que muitas vezes, apesar de o concurso público ser obrigatório, a bolsa já está atribuída a alguém do laboratório.
Com 36 anos, Ana Luísa quer “assentar num sítio e criar raízes”, por isso não se sente muito atraída por bolsas de investigação de três ou seis meses, longe de Lisboa e que nenhuma garantia lhe dão sobre o futuro. Já pensou em desviar-se um pouco da sua área e ir para os ensaios clínicos, mas ficou indignada com as condições: para concorrer a uma vaga nesta área tem de ter experiência profissional, mas para ter experiência profissional tem de primeiro concluir uma formação de 50 horas na empresa. A formação custa 1.500 euros e só os três melhores classificados podem ficar na empresa a ganhar a dita experiência. Mas mesmo depois da formação paga, o emprego que os “três felizardos” conseguem é um estágio profissional do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP). “As pessoas pagam para fazer o curso e depois fazem um estágio que metade dele é pago por todos nós”, diz indignada.
E a investigadora tem ainda mais razões para estar desiludida com o IEFP. Estava inscrita desde que voltou da Holanda, não porque ganhasse dinheiro com isso, mas porque alguns empregos pedem que esteja inscrita há seis meses ou um ano. Contudo, quando disse que tinha de se ausentar do país por cinco dias para defender a tese de doutoramento em Leiden, foi obrigada a cancelar a inscrição no IEFP, conta a investigadora. Neste momento, e aos olhos desta entidade, é como se só estivesse desempregada há um par de meses.
O que torna o vírus diferente também o faz mais vulnerável
Agora que não tem os dias completamente preenchidos com a escrita científica, Ana Luísa Silva passa grande parte do seu tempo a ver programas de culinária e a pôr em prática aquilo que aprende, mas na Holanda a receita que preparava era outra: uma solução mais eficaz para uma vacina contra o cancro do colo do útero. Os resultados conseguidos são preliminares e ainda estão longe dos ensaios clínicos, mas as perspetivas são promissoras.
Já existe vacina contra algumas estirpes do papiloma vírus humano (HPV), a principal (se não a única) causa do cancro do colo do útero, e até faz parte do Programa Nacional de Vacinação (só para raparigas com menos de 13 anos). A vacina é eficaz na prevenção da infeção porque tem anticorpos específicos contra determinadas estirpes do vírus (HPV 6, 11, 16, 18), mas uma vez que o vírus se tenha instalado no interior das células, estes anticorpos já nada podem fazer. Quando as células infetadas com o vírus não são eliminadas naturalmente pelo sistema imunitário podem originar lesões pré-cancerígenas, que, por sua vez, podem levar ao desenvolvimento de um tumor maligno.
Os vírus não são seres vivos. Na verdade, os vírus pouco mais são do que material genético dentro de cápsulas, daí que precisem de infetar células de organismos vivos. Nas células que infetam, assumem o controlo: colocam o seu material genético no comando e aproveitam toda a “fábrica” da célula, por exemplo, na síntese de proteínas. À medida que o material genético do vírus vai sendo transcrito em proteínas, e que o vírus dá novos comandos às células infetadas, algumas dessas proteínas aparecem na superfície das células. Estas “bandeiras” que indicam que aquela célula foi “conquistada” são um bom alvo para os tratamentos de imunoterapia.
O HPV 16, uma das estirpes mais agressivas de HPV, também coloca as suas “bandeiras” na superfície das células, qual caminheiro que chegou a um novo pico de uma montanha. Mas a sua vitória é também a sua derrota, porque é essa “bandeira” que vai dizer ao sistema imunitário que se trata de um elemento estranho ao corpo. Sim, o sistema imunitário consegue reconhecer algumas células de cancro, especialmente estas que têm proteínas exóticas à superfície, mas em alguns momentos não consegue ter uma resposta suficientemente eficaz para eliminar todas as células tumorais.
O que a imunoterapia pretende fazer é identificar para cada tipo de cancro como pode ajudar o sistema imunitário a produzir uma resposta mais agressiva e eficaz. E é neste ponto que voltamos a trabalho de Ana Luísa Silva. Por vezes, o sistema imunitário não consegue lançar o alerta mesmo com todas aquelas “bandeiras”, por isso a investigadora espera dar um pequeno empurrão: enviar informação (os sinais de alerta) nas nanopartículas das vacinas de tratamento.
As vacinas de imunoterapia contra o cancro do colo do útero pretendem “mostrar” estas “bandeiras” (proteínas) ao sistema imunitário para que ele produza uma resposta. Neste momento estão em ensaios clínicos vacinas que transportam peptídeos sintéticos (equivalentes a partes das “proteínas-bandeira”) num óleo mineral, como o Montanide ou MF59. Nos casos de lesões pré-cancerosas e quando já existe um tumor, os resultados têm sido promissores, “em alguns casos com remissão total”, diz a investigadora. Mas o Montanide tem algumas desvantagens: como não é biodegradável apresenta alguns efeitos secundários (desconforto, inchaço, dor), o processo de produção é complexo e a resposta do sistema imunitário não é tão forte como se desejaria.
Criar uma vacina mais eficaz contra o cancro
Na preparação de uma vacina, o uso de antigénios (moléculas que podem despertar o sistema imunitário) acarreta menos riscos do que usar o agente patogénico atenuado, como um vírus ou uma bactéria. O problema é que os antigénios solúveis das vacinas, mesmo quando são moléculas do vírus, (como as “bandeiras” que o HPV deixa nas células), não são suficientemente “provocadores” aos olhos do sistema imunitário e acabam por ser eliminados do organismo antes de produzirem o efeito desejado.
O óleo mineral nas vacinas pretende servir como um sinalizador das moléculas que se pretende que o sistema imunitário reconheça como estranhas (adjuvante), mas a resposta ainda não é suficientemente forte. Em alternativa, Ana Luísa Silva e Eleni Maria Varypataki usaram como adjuvantes: nanopartículas, compostas por um polímero natural ou sintético, e lipossomas, vesículas esféricas com uma dupla camada lipídica (mais ou menos como a camada de lípidos da membrana celular).
O objetivo é que as células dendríticas (um tipo de células do sistema imune) “engulam” os antigénios e os exponham nas membranas celulares. Funciona mais ou menos como um retrato robô espalhado por todas as esquadras da polícia. As células B (que produzem anticorpos) e as células T (que dão outro tipo de resposta imunitária) preparam as armas e, com base naquele “retrato robô”, percorrem o organismo a destruir os “vilões”. É assim que se espera que a vacina contra o cancro do colo do útero funcione: assim que as células T reconheçam que “proteínas-bandeira” é que pertencem ao vírus, as procurem no organismo, as identifiquem nas células da lesão cancerígena (ou pré-cancerígena) e destruam estas células.
Para potenciar a resposta à vacina, as duas investigadoras propõem a utilização de sistemas de partículas para apresentação dos antigénios às células dendríticas, porque a estrutura, pela forma esférica, mimetiza o tamanho e o aspeto dos patogéneos e, portanto, são mais facilmente reconhecidos como um elemento estranho. Depois, quando estas partículas são “engolidas” (internalizadas) pelas células dendríticas vão libertando as “proteínas-bandeira” aos poucos, prolongando o período em que estas células do sistema imunitário mostram os antigénios (“retratos robô”) na membrana. Mais, apesar de biocompatíveis e biodegradáveis, estas partículas não são tão facilmente eliminadas pelos rins como os peptídeos no óleo mineral.
Ana Luísa Silva e Eleni Maria Varypataki compararam o desempenho das nanopartículas PLGA e dos lipossomas com o de dois óleos minerais (Montanide e esqualeno) nos ratos de laboratório. E concluíram que as nanopartículas eram tão boas como os óleos minerais a estimular o sistema imunitário, com a vantagem de que os sistemas de partículas não apresentavam os mesmos tipos de efeitos secundários que os óleos minerais. Melhor foi demonstrar que o desempenho dos lipossomas supera todos os outros. Como são ainda mais pequenos que as nanopartículas é possível que viajem com mais facilidade até aos capilares e nódulos linfáticos, explica a investigadora portuguesa.
As nanopartículas PLGA foram aprovadas pela autoridade norte-americana do medicamento (FDA, Food and Drug Administration) para uso em dispositivos médicos e sistemas de entrega de fármacos. Na verdade, da degradação destas partículas resulta ácido láctico e ácido glicólico, dois subprodutos do metabolismo normal e que portanto podem ser facilmente eliminados do organismo.
Ana Luísa Silva defende este tipo de vacinas por oposição às vacinas ou tratamentos feitos à medida de cada doente. Quando a vacina é feita especificamente para uma pessoa, podem ser retiradas algumas células do sistema imunitário do doente, que são potenciadas ou melhoradas em laboratório, multiplicadas e reintroduzidas no paciente. “Isso obriga a uma vacina por doente: imensa logística, muito mais caro, menos acessível”, conclui a investigadora. Os sistemas de partículas são específicos para a infeção com um determinado vírus ou da “bandeira” apresentada pelas células cancerígenas. Podem assim ser produzidas em quantidade e com menores custos e servir para mais pessoas.
Mas, por enquanto, este é um trabalho preliminar, visto que as investigadoras não chegaram a testar as partículas com os peptídeos produzidos pela infeção com HPV16. O estudo foi feito com ovalbumina que é um modelo muito conhecido e bem estudado, porque o primeiro passo era perceber se os sistemas de partículas nas vacinas eram mais eficazes que os óleos minerais. Se não fossem, a ideia teria de ser descartada (ou melhorada). Assim, cabe à equipa da Universidade de Leiden que continua a investigação nesta área, ou outras equipas na área da imunoterapia, dar o próximo passo – usar os peptídeos do HPV 16 em vez de ovalbumina.
Nota: nos dois anos desde que regressou a Portugal, Ana Luísa Silva escreveu a tese e quatro artigos científicos, mas no seu percurso enquanto investigadora é autora de nove artigos científicos.