Até há sensivelmente um ano, o pequeno Jaime chorava com medo das expressões violentas do irmão autista, dez anos mais velho do que ele. De cada vez que se zangava, a cara dele contorcia-se de tal forma que ganhava contornos agressivos e o rapaz de então oito anos assustava-se. Hoje, a realidade em casa de Maria Ana, a mãe, é diferente e o motivo passa pela chamada educação emocional. Jaime é uma das crianças que beneficia desta atividade extracurricular no Jardim-Escola João de Deus de Leiria. “A educação emocional traz resultados mais tarde na vida. Traz ferramentas para que ele consiga lidar com situações difíceis, sobretudo tendo dois irmãos autistas que, de vez em quando, têm crises emocionais”, conta Maria Ana.
Que escolas apostam nos sentimentos?
O Jardim-Escola João de Deus de Leira é, por enquanto, o único daquele grupo que tem uma parceria com a Escola das Emoções — que nasceu em março de 2014 para trabalhar “o crescimento emocional da sociedade”. Há quatro anos que existe uma atividade extracurricular vocacionada para a educação das emoções, para alunos dos três aos 10 anos, e há três anos que a “disciplina” Estudo das Emoções chegou às salas de aulas ao nível do infantário (para os quatro e cinco anos). “Nestas aulas de educação das emoções as crianças começam por se conhecer a si próprias, mas também os outros. São trabalhadas quatro emoções básicas: alegria, tristeza, raiva e o medo”, explica ao Observador Vera Sebastião, diretora do jardim-escola.
Os objetivos, continua Sebastião, passam por compreender as emoções, perceber que as ações têm consequências e desenvolver as capacidades sociais das crianças. Algumas estratégias passam por explicar que as emoções estão sempre associadas a um pensamento, uma equação por vezes difícil de visualizar, mas que é desconstruída em sala de aula. “Este trabalho é uma sementeira, os frutos são colhidos mais tarde.” Para a diretora escolar, hoje em dia vivemos na “era dos três P”, uma vez que os pais “protegem, permitem e proporcionam”, três características cujo equilíbrio parece ser difícil de alcançar. O falar e pensar as emoções chega, então, a mais de 100 crianças daquele jardim-escola, sendo que o de Alvalade (do grupo João de Deus) também está de olhos postos na iniciativa.
Em Lisboa, na rede pública, também existem soluções semelhantes, que consideram os sentimentos das crianças e dos adolescentes um processo tão importante quanto a aquisição de conteúdos. No Agrupamento de Escolas do Alto do Lumiar existe o projeto “Luta por Valores”, onde curiosamente o kickboxing está associado ao pensamento emocional. “Trabalhamos a integração de regras e o respeito pelo outro, isso faz-se através do desporto”, diz Maria Caldeira, diretora do agrupamento que fica num Território Educativo de Intervenção Prioritária (TEIP), referindo que a prática aplica-se sobretudo a alunos mais reativos, com problemas disciplinares, do primeiro ciclo.
É também no primeiro ciclo de uma escola deste agrupamento que existe ioga e meditação três vezes por semana, prática que pretende alcançar o aumento da concentração e o saber ouvir o outro — acontece em colaboração com a Universidade de Aveiro, que está a monotorizar os resultados. Maria Caldeira fala ainda do programa “Eu e os outros”, aplicado no contexto da sala de aula, onde os professores fazem role playing com os alunos, usando histórias que derivam sempre de um problema. E como se isto não bastasse, em 2o18 o agrupamento planeia apostar na formação de pais.
“Falamos de emoções antes de falar de tudo o resto. Isto tem um impacto direto na autoestima e na capacidade de a criança responder ao meio que a envolve”, acrescenta Margarida Silveira Rodrigues, diretora da Escola Raiz, em Lisboa, que faz parte do modelo HighScope — proveniente dos Estados Unidos, tem sensivelmente 50 anos e está validado cientificamente. “Uma das suas áreas é o desenvolvimento social e emocional, não na forma de uma disciplina, mas está integrado no programa. Tanto a formação dos professores como o modo de ensino tem por base este tipo de desenvolvimento”, esclarece, deixando claro que é natural e recorrente a pergunta “O que estás a sentir?”. Margarida Silveira garante que assiste ao aumento da capacidade de resiliência das crianças, que aceitam mais facilmente o erro.
Também Vera Sebastião, da Escola das Emoções, e Maria Caldeira falam em resultados positivos. Certo que continuam a existir comportamentos impulsivos, admite a primeira, que nota que as crianças se tornam mais consequentes e, por isso, pedem desculpa mais facilmente. “É o começo de tudo. Os pais estão muito felizes”, continua. Já as crianças e os adolescentes debaixo da alçada do Agrupamento de Escolas do Alto do Lumiar têm, por norma, vários problemas de disciplina e são provenientes de famílias destruturadas, mas também elas e eles parecem beneficiar num sentido relacional.
Soft skills para “enfrentar os desafios do século XXI”
No relatório “Competências para o progresso social — O poder das competências socioemocionais”, publicado no fim de 2015 pela OCDE e citado no livro A Escola Certa para o Seu Filho, lê-se que as crianças precisam de “um conjunto equilibrado de competências cognitivas e socioemocionais para serem bem-sucedidas na vida moderna”. O relatório em questão fala nas chamadas soft skills (competências socioemocionais), defendendo que “a capacidade de atingir objetivos, de trabalhar eficientemente em grupo e de lidar com as emoções” vai ser “essencial para enfrentar os desafios do século XXI”.
Num artigo publicado no blogue TED-Ed, que diz respeito a uma iniciativa na área da educação associada às conferências TED, investigadores citados referem que as capacidades emocionais deveriam ser tão importantes na educação das crianças como é a matemática, a história ou a ciência. Há pesquisas que sugerem que pessoas com capacidades emocionais mais apuradas têm melhores resultados nas escolas, mas também melhores relações e menos comportamentos de risco. No mesmo artigo, datado de fevereiro de 2017, lê-se que existe um esforço nas escolas norte-americanas para ensinar “aprendizagem social e emocional” (“social and emotional learning, SEL”, em inglês), ainda que haja um maior enfoque em capacidades como cooperação e comunicação.
Nem de propósito, a Comissão Nacional para o Desenvolvimento Social, Emocional e Académico, do Aspen Institute divulgou descobertas preliminares que fazem parte do mais recente relatório, onde se lê que o desenvolvimento social, emocional, cognitivo, linguístico e académico está “profundamente ligado” e que todas estas áreas “são centrais para a aprendizagem e para o sucesso”.
Segundo a neurocientista Mary Helen Immordino-Yang, citada num artigo de 2016 do The New York Times, a emoção é essencial à aprendizagem e não deve ser subestimada ou tida como uma moda. “É literalmente neurobiologicamente impossível pensar profundamente sobre coisas que não nos interessam.” Francisco Esteves, professor catedrático na Mid Sweden University, na Suécia (além de investigador do CIS-IUL) esteve presente nas I Jornadas Internacionais do Pensamento Emocional, realizadas no passado dia 2 de fevereiro no ISCTE-IUL, onde, falando sobre pensamento emocional, alertou para o facto de o processamento cognitivo ser muito mais afetivo do que neutro e que, muitas vezes, os processos racionais são influenciados pela componente afetiva que não deve ser, por isso, ignorada.
“Os seres humanos são emoção, esse elemento vital da nossa existência”, esclarece ao Observador Helena Marujo, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e uma das principais investigadoras em Portugal na área da Psicologia Positiva. É ela quem diz que, enquanto sociedade, existe uma cada vez maior preocupação intelectual, sendo que “minorámos tudo o que tem que ver com a experiência do sentimento”. Qualquer desempenho depende do nosso bem-estar, diz, acrescentando que ninguém consegue aprender com emoções negativas.
Para a especialista em psicologia positiva, a ideia de trazer as emoções para dentro da sala de aula não só faz sentido como é algo “incontornável”. “Uma criança valorizada pelos colegas e professores sente esperança e tudo isso são experiências emocionais que têm uma influência cognitiva”, defende, ao mesmo tempo que diz que deveríamos apostar numa educação mais holística. “É preciso relembrar que a educação é um processo relacional, acontece entre pessoas, mesmo numa era altamente tecnológica.”
Há lugar para as emoções na sala de aula?
A preocupação com as emoções dos mais novos não está desprovida de argumentos e são muitos os que apontam o dedo ao atual modelo de ensino. “O ensino transmissivo das palestras habituais nas nossas escolas está completamente inadequado”, defende Margarida Silveira, da Escola Raiz, que entende que a inteligência emocional deve ser trabalhada em contexto escolar, embora não na forma de uma disciplina. “Acho que em qualquer ensino se pode fazer um trabalho sobre as emoções”, diz. O argumento é partilhado por Maria Caldeira, do Agrupamento de Escolas do Alto Lumiar, que refere que o treino das competências emocionais deveria ser transversal a tudo e que deveria começar nas escolas, sejam elas públicas ou privadas. “Pode ser uma atividade extracurricular, mas o importante é que em todas as disciplinas isto aconteça. Se os alunos estiverem sensibilizados para isto há ganhos ao nível do sucesso académico, mas criar uma disciplina de treino de competências emocionais não faz sentido”, esclarece a diretora do agrupamento.
Sobre isto, fonte oficial do Ministério da Educação garante ao Observador que áreas como desenvolvimento pessoal e relacionamento interpessoal são hoje “reconhecidas como pré-requisitos para a aprendizagem, mas também como finalidades do processo de aprendizagem”. Para o Ministério da Educação, “estes projetos são uma ferramenta muito adequada para responder a este desafio colocado pelo perfil do aluno”, sendo que a “opção pela inclusão destas áreas assenta no consenso internacional de que os alunos serão tanto mais sucedidos na sua vida ativa quanto forem capazes de trabalhar com autonomia, de se relacionarem bem consigo próprios e com os outros“.
A espanhola Ana Peinado, que esteve nas já referidas jornadas, diz que o trabalho dos professores passa por “colocar sementes no coração das crianças”, isto é, “formar pessoas de maneira íntegra”, pelo que questiona o modelo de ensino que se centra apenas na partilha de conhecimento e na inteligência matemática — segundo a psicóloga, que desenvolve a sua atividade em programas de desenvolvimento emocional em centros infantis, básicos e secundários, existem diferentes tipos de inteligência, considerando crianças mais vocacionadas para a natureza, para a escrita, para o desporto, etc, às quais os professores se deveriam adaptar. “Dos bons professores recordamos sempre as características afetivas”, disse diante de um auditório praticamente cheio. “O problema do ensino não é tanto o aluno não querer ir às aulas. Há professores que também não querem ir”, continuou. É ela quem garante que as chaves para educar com inteligência emocional passam por descobrir o talento de cada aluno, servir de motor de arranque para as suas competências e fazer com que toda e cada criança se sinta “útil, valorizada e querida”.
“Os educadores não têm formação para trabalhar desta forma. Ficam sensibilizados, mas não sabem como fazê-lo. O que pretendemos ao trazer as emoções para a educação é chegar às massas de alunos através de professores e educadores em termos de prevenção”, acrescenta Vera Sebastião, da Escola das Emoções. É aqui que entra também a Associação Prevenir, que desde 2002 está apostada na formação de professores e educadores ao nível da inteligência emocional e das competências socioemocionais — a primeira permite distinguir, identificar e gerir emoções, a segunda engloba competências como a assertividade, a autoestima e o autocontrolo.
A atuação da associação abrange idades desde dos três aos 14 anos, isto é, do ensino pré-escolar ao segundo ciclo. Em causa estão parcerias com câmaras municipais, juntas de freguesia e até agrupamentos escolares que contactam esta entidade no sentido de formar os seus docentes. Os métodos e os materiais disponibilizados variam consoante a idade dos alunos: se no pré-escolar há objetos como o baralho dos sentimentos, no primeiro ciclo existem livros de banda desenhada, desenvolvidos em parceria com a Porto Editora. “Damos formação aos professores e educadores ao longo do ano letivo, sendo que a formação tem uma base teórica e prática, consoante os temas a trabalhar na sala de aula”, explica ao Observador Margarida Barbosa, psicóloga educacional e presidente da Associação Prevenir em Portugal (a irmã gémea está sediada em Espanha).
Em ambiente escolar, os professores trabalham a vertente emocional uma vez por semana no âmbito da disciplina “Educação para a Cidadania”. Margarida Barbosa esclarece que a periocidade tem-se traduzido em resultados positivos a curto e longo prazo. A curto prazo, a relação entre alunos melhora, o vocabulário emocional aumenta e a aprendizagem torna-se, no geral, mais fácil, adianta. A longo prazo, os alunos começam a falar de uma forma mais otimista e acabam por reconhecer mais facilmente as emoções nos outros.
Só em Portugal, já mais de 20 mil crianças beneficiaram dos métodos da Associação Prevenir, que não estão, no entanto, imunes a críticas. Num artigo do El País, de 2016, o professor e autor do livro “Contra a Nova Educação” Alberto Royo alega que este tipo de pedagogia se foca numa “felicidade ignorante”, ao mesmo tempo que afirma que o “fim último da escola é transmitir conhecimentos”. “Sempre é mais atrativo dizer que os alunos vão ser empáticos, felizes. Adquirir conhecimentos e estudar é menos sugestivo.” Margarida Barbosa, da Associação Prevenir, está longe de concordar com este argumento, afirmando que os professores com quem se cruza sentem cada vez mais necessidade e vontade em trabalhar as emoções. “Se isto fosse obrigatório em Portugal, seria uma coisa muito bem recebida”, defende.
Mas será que trabalhar sentimentos na sala de aula pode de alguma forma distorcer o papel que a sociedade deu à figura do professor? Nesse ponto, Margarida Barbosa é rápida a esclarecer que os programas da associação têm sempre uma vertente que permite o envolvimento da família. Para a psicóloga educacional, não basta ensinar português ou matemática, por exemplo, mas também atuar preventivamente nas escolas de modo a evitar comportamentos de risco e problemas de indisciplina. “Sempre existiram comportamentos de risco, mas hoje em dia os professores podem, com esta formação, preveni-los ou resolvê-los.” “A educação das crianças está entregue à família, mas também à escola. A educação nas escolas tem de ser a continuidade da educação em casa e vice-versa”, acrescenta Vera Sebastião. “A escola aproveita que a criança em grupo consegue perceber melhor o certo e o errado por comparação.”
Aprender a lidar com os medos e as frustrações tem sido a mais-valia da “educação emocional” na casa de Maria Ana, a mãe do pequeno Jaime, que à medida que o tempo vai passando, e as emoções vão sendo identificadas, reconhece-lhe mais maturidade nas diferentes situações. “Cá em casa trabalhamos muito o falar sobre o que sentimos. Trabalhamos, inclusive, com os dois irmãos. Acho que a escola lhe deu boas ferramentas.”