Índice
Índice
Francisco Assis chega ligeiramente atrasado ao Hotel Ipanema Park, no Porto, pede uma Coca-Cola Light e diz: “Estou pronto”. Depois de ter criticado duramente a formação do Governo das esquerdas a seguir às legislativas, esteve em silêncio durante vários meses. Agora, na véspera do congresso do PS — que se realiza no próximo fim de semana em Lisboa –, volta às críticas. Durante mais de uma hora, falou ao Observador sobre todos os defeitos deste Governo, sobre o facto de o PS estar “atrofiado” pelo BE e pelo PCP, sobre o erro de considerar Pedro Passos Coelho um neoliberal radical — e sobre o talento de António Costa. “Infelizmente, tem todo esse talento ao serviço de um péssimo projeto.”
Ao longo destes seis meses de Governo, o PS tornou-se num partido mais radical? Ou o Bloco de Esquerda e o PCP tornaram-se mais moderados?
Não penso que o Bloco de Esquerda e o PCP tenham alterado significativamente o seu comportamento em questões essenciais. Também não acho que se tenha verificado uma radicalização do PS. A razão fundamental pela qual me opus a este entendimento foi por ser uma aliança contra-natura entre partidos que têm perspetivas muito diferentes e até antagónicas em relação a questões essenciais: o modelo económico, o modelo de organização política e social e a questão europeia. São três aspetos centrais em relação aos quais as divergências são muito grandes. Ora essas divergências permanecem. Ao longo destes seis meses, o BE e o PCP tiveram até a preocupação de vincar essas posições claramente diferentes das do PS. No PS tem havido algumas alterações: uma reorientação política e estratégica, porventura até programática, extremando um bocadinho mais as posições, radicalizando-se um pouco mais. Mas a verdade é que não há uma radicalização no sentido de o PS subverter alguns dos seus princípios fundamentais.
A sua análise inicial não foi “irritantemente pessimista”?
Não foi pessimista. Nada mudou. Digo exatamente o que disse há seis meses. O Governo sobrevive. Nunca tive dúvidas de que o Governo ia sobreviver. Nunca fiz uma previsão catastrofista em termos de tempo de duração. Os governos não são avaliados pela sua duração, mas pelo que fazem. A minha preocupação foi em relação ao que resultaria da formação de um Governo desta natureza. O facto de ter sobrevivido seis meses não é para mim surpresa. Seria uma surpresa se não tivesse sobrevivido.
O PS radicalizou-se menos do que estava à espera?
Não estava à espera disso. Esta coligação, sendo contra-natura, é atrofiadora em relação ao PS. O PS mantém-se no poder, mas os partidos extremistas — BE e PCP –, alcançam algo ainda mais importante que é a possibilidade de condicionarem o poder do PS. Isso parece-me que se concretizou ao longo destes seis meses. E vai concretizar-se ao longo do tempo em que esta solução sobreviver. Esse é o grande problema. Nunca pensei que o PS viesse a radicalizar-se. Pareceu-me que o PS ficaria profundamente manietado devido a esta dependência de dois partidos que têm divergências profundíssimas em questões que não são menores e que se manifestam no dia-a-dia da governação.
BE e PCP “atrofiam a capacidade reformadora do Governo”
Como e em que áreas se manifestam?
Manifestam-se atrofiando completamente uma capacidade reformadora do Governo. Há três ou quatro áreas fundamentais. Somos a favor de um Estado-providência. Mas temos consciência de que precisa de ser constantemente reformado. Por exemplo, na Saúde é preciso fazer reformas até para garantir a própria sustentabilidade a prazo do SNS. Não acredito que numa solução desta natureza isso se possa fazer. Impede tudo, porque estes partidos têm uma posição ortodoxa, arcaica e fechada do que deve ser um serviço público. A questão da Segurança Social: por muito que se diga que com o crescimento económico só por si se resolve o problema da sustentabilidade a prazo da Segurança Social, sabemos que não é assim. É uma área onde, devido à evolução demográfica, às transformações tecnológicas em curso e à mudança de organização da própria sociedade é preciso fazer permanentemente reformas, que estão a ser debatidas por essa Europa fora. Partidos socialistas e sociais-democratas estão a discutir essas reformas. Não creio que com estes parceiros parlamentares seja possível fazer qualquer reforma. O sistema político é outra área em que não é possível fazer uma reforma séria. Já foi assumido que estamos impedidos de fazer reformas do sistema político quando elas também se justificam, embora eu atribua mais importância às primeiras.
Um Governo do PSD/CDS teria sido mais reformista que este?
Não, não acho isso. Provavelmente teria sido num sentido em que eu não consideraria o mais adequado. A prova é que não foi. O que fez foi numa perspetiva que me merece muitas críticas.
A seguir às eleições, defendeu que o melhor era manter no Governo a coligação de direita e o PS na oposição. Concorda com as reformas políticas propostas por Passos Coelho?
Disse isso em função dos resultados eleitorais… concordo com umas e com outras não… basta concordar com as posições históricas do PS nessa matéria e as posições de António Costa nesse domínio merecem a minha adesão. Mas não podem ser aplicadas neste momento. Fiz essas afirmações em função da apreciação dos resultados eleitorais. O PS não era o vencedor das eleições. Não era o partido com a maior representação parlamentar. Não há que confundir isso com a capacidade de sobreviver. Não se deve confundir a capacidade de sobreviver com a capacidade de governar o país. Se estou aqui a falar convosco é porque ao longo destes seis meses mantive uma certa distância e reserva, inclusive participava num programa de uma estação televisiva e decidi sair…
Porque é que decidiu sair?
Não estava em condições de fazer a defesa semanal do partido a que pertenço, mas também não estava com vontade de estar todas as semanas a contestar essa opção, que foi uma opção democrática. A maior parte do PS seguiu por aquele caminho.
Não faz falta ao PS haver pessoas que critiquem as opções tomadas?
É o que estou a fazer. Haverá outras, não sei. Aqui há dias vi umas declarações de Sérgio Sousa Pinto. É importante que haja esse debate no interior do PS. Estou aqui porque me parece importante, neste ambiente de pré-congresso, exprimir o meu ponto de vista. De outra maneira, as pessoas podiam pensar que eu estava a optar por um silêncio quase cúmplice em relação a uma solução com a qual continuo a não concordar em absoluto.
Vai falar no congresso. O que é para si uma hora aceitável para discursar?
Espero falar. Sou delegado por inerência, por ser deputado no Parlamento Europeu. Espero falar na tarde de sábado.
Não tem medo de ser apupado ou pateado?
Não. Nem penso que vá acontecer. Já passei por muitas coisas em 30 anos de vida política. Já passei por situações mais complexas. Por isso não tenho medo nenhum disso e acho que não há risco de acontecer. O PS é um partido democrático, tolerante e aberto, que sempre soube conviver com diferentes perspectivas.
“Não sou delirantemente otimista, mas não sou irritantemente pessimista.”
Concorda, por exemplo, com Teodora Cardoso, que assinalou que pode haver um novo resgate?
Não tenho uma perspetiva tão pessimista. Nos momentos decisivos, o primeiro-ministro decidiu de forma responsável, assegurando o respeito pelos nossos compromissos europeus, valorizando o diálogo em detrimento do confronto na relação com as instâncias europeias e com os nossos parceiros europeus. Estou convencido de que essa linha de orientação irá prevalecer. Certamente terá as suas consequências na estabilidade da solução governativa. Mas estou convencido que se António Costa algum dia tiver de fazer uma opção entre a fidelidade a esta linha de orientação ou a necessidade de assegurar a sobrevivência desta coligação, optará pela primeira solução. Estou convencido de que as probabilidades de isto acontecer são muito elevadas.
Concretizando o que está a dizer, se a Europa impuser…
Não é uma questão de a Europa impor. Não podemos colocar a questão assim…
No caso de haver medidas adicionais, a coligação não vai aceitar…
Não é só a questão das medidas adicionais. Nós mantemos um diálogo permanente com a Europa. Estamos integrados no espaço europeu e temos compromissos que assumimos com a Europa. Acho má essa forma de, por vezes, colocarmos as questões em Portugal, como se a Europa fosse uma instância exterior que nos impõe indevidamente determinadas linhas de orientação. Nós temos compromissos. Estamos inseridos num projeto comum. É evidente que não estamos impedidos de procurar salvaguardas para os nossos interesses e pugnar por uma modificação das regras, se percebermos ao longo do tempo que elas não são as mais adequadas.
Acha que o Governo anterior foi subserviente?
Julgo francamente que foi em muitos momentos. Foi uma opção que fez deliberadamente e erradamente. Do meu ponto de vista, poderia ter tido outra atitude, e podia ter tido outra exigência no quadro europeu. Tenho essa visão crítica sobre o Governo anterior. Agora, entre essa posição e a que o Syriza teve nos primeiros três ou quatro meses da sua existência, há um meio-termo que é mais adequado.
Quando o Governo for posto perante a necessidade de ter de tomar medidas adicionais para cumprir o orçamento e o Tratado Orçamental, António Costa vai ter muita dificuldade que os partidos de esquerda o aceitem… Será esse o momento definidor?
Não antecipo o momento… Muito provavelmente essa situação vai ocorrer, mas quando, e em torno do quê em concreto, não quero pronunciar-me sobre isso. Não tenho os dados da execução orçamental para poder antecipar ou não a necessidade de recorrer a medidas adicionais para alcançar os objetivos a que nos comprometemos com as instituições europeias. Também sou um otimista… não sou…
Só não é “irritantemente” otimista…
Não sou delirantemente otimista, mas não sou irritantemente pessimista. Tenho algum otimismo. Quem está na vida política tem de olhar com algum otimismo para as coisas. Senão projetamos desconfiança em relação às soluções a que estamos associados.
Quais são os números para os quais olha com mais confiança: para os 2,2% de défice do Governo ou para os 2,7% de previsão da Comissão Europeia?
Neste momento, não tenho nenhum dado da execução orçamental para me pronunciar. Os dados que tenho sobre o primeiro trimestre são do conhecimento público. Há alguns motivos de preocupação, mas o ministro das Finanças tem tido uma atitude no sentido de desdramatizar a situação. Vamos esperar e vamos ver.
“Cisão histórica no relacionamento com a direita”
O próprio primeiro-ministro já começa a dizer que algumas coisas podem não correr bem…
Ele coloca a questão em termos mais profundos. A nossa relação com a Europa não é apenas em termos de números, de cumprirmos ou não as metas orçamentais. Há compromissos mais vastos. A seguir ao referendo britânico, aconteça o que acontecer em termos de resultado, a Europa vai ser confrontada com a necessidade de se reinventar. E dentro de um ano vai haver eleições em França e depois na Alemanha. Daí, também vai resultar uma necessidade de reinvenção do projeto europeu. Há muitas pessoas do centro-esquerda e do centro-direita, sobretudo em França e na Alemanha — que são de facto os dois países fulcrais para o sucesso do projeto europeu –, que preconizam a criação de uma espécie de núcleo duro europeu. Uns consideram que pode ser a zona dos países que entraram na moeda única. Outros acham que deve ser uma zona mais pequena, dos países fundadores mais Portugal e Espanha. A verdade e que se vão colocar novas questões em termos de modelo de organização europeia. Vai haver propostas para um maior federalismo em torno destes países, o que significa maior partilha de soberania. As divergências sobre estes assuntos serão muito profundas. E uma governação não é alheia a tudo isto. Uma governação de um país tem de integrar tudo isto. Quando digo que há fatores de risco enormes é a isso que me estou a referir.
Esta moção de António Costa ao congresso do PS do próximo fim de semana é o texto mais eurocrítico que já se leu no PS, que era o partido mais europeísta do espetro político. Pode-se dizer que o PS é hoje mais eurocrítico que o CDS?
Também não creio que o seja. A parte sobre a Europa não é a parte que eu menos aprecio ou mais deprecio na moção do António Costa.
Qual é a parte que mais deprecia?
Há outras partes que me parecem bastante piores, sobretudo quando se determina como o PS se deve posicionar, estabelecendo uma oposição radical em relação a uma direita que é circunscrita às suas dimensões xenófoba e racista, por um lado, e neoliberal, por outra. Considera-se que agora os nossos grandes aliados são os partidos de extrema-esquerda. Aí é que está a chave da interpretação de tudo isto. E aí, sim, há uma mudança muito significativa do PS. Há aqui uma cisão histórica no relacionamento institucional com a direita em Portugal. Não precisamos de deixar de ser um partido de centro-esquerda para mantermos um diálogo sério com os partidos situados à nossa direita. São partidos de uma direita democrática e de uma direita liberal que nos devem merecer todo o respeito.
Este PS deixou de ser de centro-esquerda?
Grande parte do PS reconhece-se no centro-esquerda. Por isso, acho que o PS nunca deixará de ser de centro-esquerda. Esta liderança, de facto, colocou o partido um pouco mais à esquerda. Mas a questão profunda é esta. Nos últimos 40 anos modernizámos a economia portuguesa, transformámos a sociedade portuguesa e criámos o Estado-Providência em Portugal, na base de uma colaboração institucional entre o centro-esquerda e o centro-direita. Fizemos várias revisões constitucionais, sem as quais era impossível a nossa plena integração no projeto europeu.
Não vê nenhuma vontade neste momento do PS de dialogar com o centro-direita?
Há responsabilidades de parte a parte. Não são apenas do PS. São também do PSD, sobretudo na fase em que governou o país. Mas julgo que agora há uma afirmação perentória por parte do PS de que os grandes inimigos estão à direita. É assim mesmo. A frase é mais ou menos esta. Há uma espécie de esquizofrenia nisso. No Parlamento Europeu, todas as semanas promovemos grandes entendimentos de fundo com os partidos do centro-direita que nunca existem com a extrema-esquerda. Introduz-se aqui uma certa esquizofrenia, um certo delírio. Isto tem consequências. É delirante e absolutamente absurdo considerar como parceiros os partidos de extrema-esquerda e um partido declaradamente comunista, nostálgico dos tempos soviéticos. Não é com esses dois partidos que podemos conceber um projeto de renovação dos ideais europeus.
PSD e CDS não são completamente neoliberais
Há no PS alguns jovens que estão a ascender no partido, como Pedro Nuno Santos, que têm algumas posições próximas do Bloco, por exemplo na renegociação a dívida…
O Pedro Nuno Santos, nesse aspeto, já reconheceu que não tinha razão na altura em que disse isso. É um grande defensor do acordo com o BE e o PCP, mas daí a identificá-lo com o BE vai uma enorme distância.
Acha que este PSD e este CDS são partidos extremistas e radicais ultra-liberais com os quais é impossível falar?
Não acho, vamos ser claros sobre isso. Houve um momento em que Pedro Passos Coelho se apresentou ao país como alguém que procurava ter uma identidade mais liberal, em concreto no projeto de revisão constitucional que apresentou. Julgo que a circunstância de ter governado o país durante quatro anos o levou a perceber que qualquer projeto neoliberal está condenado ao fracasso em Portugal. Há muitas resistências em múltiplos setores da sociedade portuguesa. Há divergências entre nós e a direita, mas não podemos salientar a nossa própria identidade política demonizando para além do razoável aquilo que são as relações com os partidos de direita. Admito que tenha havido uma governação que possa ter dado azo a esse tipo de receios. Mas não acho que o CDS ou o PSD possam ser considerados partidos completamente subordinados a uma orientação neoliberal ou xenófoba.
Perguntas rápidas para respostas rapidíssimas
↓ Mostrar
↑ Esconder
Como primeiro-ministro: José Sócrates ou Passos Coelho?
Quando fui confrontado com essa escolha, fi-la: apoiei o eng. José Sócrates.
Como presidente da Câmara do Porto: Rui Moreira ou Rui Rio?
O dr. Rui Rio teve aspetos positivos na governação da cidade, neste momento evidentemente que apoio o dr. Rui Moreira.
Como líder do PS: António Costa ou António José Seguro?
Em momentos diferentes respondi de maneira diferente. Tudo depende muito do momento.
Como poeta: Manuel Alegre ou Herberto Helder?
Com todo o respeito, que é muito, pela dimensão política de Manuel Alegre, a minha resposta é muito simples: eu considero Herberto Helder o maior poeta português das últimas décadas. Aí, na dimensão estritamente poética, não tenho a mais pequena dúvida em escolher o Herberto Helder.
Na gastronomia: moules de bruxelas ou tripas à moda do Porto?
Não é por bairrismo, mas prefiro as tripas à moda do Porto.
No futebol: Ronaldo ou Messi?
Têm características muito diferentes, mas no futebol funciona sempre a emoção, portanto, Ronaldo.
António Costa usa uma frase na moção em que diz ter havido um “vírus da fé excessiva na auto-regulação dos mercados” no PS. Acha que o PS tem necessidade de fazer esta autocrítica?
Não, não acho…
O secretário-geral está a pôr em causa uma abertura a um certo liberalismo económico desenvolvido no tempo de António Guterres e de José Sócrates…
Olhando para trás, não vejo nenhum momento na história do PS em que o partido se tivesse deixado contaminar por um suposto vírus dessa natureza. Acho essa linguagem imprópria do PS. Parece-me uma importação do estilo de linguagem mais característico de outras organizações partidárias. É impróprio do PS essa ideia de um vírus que nos afetou.
António Costa pensa isto? Ele esteve nesses governos, que tinham esse vírus. Ele também foi contaminado?
Acho que pensará algo parecido com o que estou agora aqui a dizer. Não é possível olhar para estes anos e ver isso. Acho que se aplica mais a nível europeu. E mesmo a nível europeu não encontro. O que se procura dizer é que a terceira via britânica foi afetada pelo neoliberalismo. O que também é uma mentira, porque a terceira via não era neoliberal. Quanto muito, pode dizer-se que tem dimensões liberais. O socialismo democrático tem tradições liberais. Isso é mesmo uma questão que nos diferencia dos partidos comunistas. Sempre fomos fiéis a uma parte substancial da herança liberal do pensamento político europeu. Esse é um elemento de diferenciação. É parte da nossa identidade. Mesmo os governos de Blair aumentaram o investimento público e na educação. Contribuíram para uma transformação da sociedade britânica. Blair acabou por sair com a sua imagem muito prejudicada por causa da questão do Iraque. Mas se formos ver com rigor, sem preconceitos, qualquer acusação de neoliberalismo à governação de Tony Blair e Gordon Brown é completamente surreal.
Concorda com as várias reversões que têm sido feitas das políticas do anterior governo?
Acho que têm que ser avaliadas caso a caso. Haverá algumas que se justificam…
Quais é que que se justificam?
Não quero entrar na avaliação do pormenor das políticas, aí devo manter alguma reserva. Não quero entrar numa apreciação caso a caso. Há uma oposição em Portugal que tem essa função. A minha divergência é de fundo e é nesse quadro que me quero manter.
“A verdade é que as vacas não voam”
E qual é a sua avaliação política sobre um outro assunto: acha que António Costa pôs realmente vacas a voar?
A verdade é que as vacas não voam. E a verdade é que a vaca que voou naquela circunstância era um brinquedo — porque as vacas, de facto, não voam.
Mas António Costa conseguiu pôr PCP e o BE a aprovar um Orçamento do Estado que jamais em tempo algum seria aceite por estes partidos. Não acha que isto é uma vaca voadora?
Não, não é. Não é. Uma vaca voadora seria uma figura de estilo que corresponderia a uma transformação muito profunda. Não acho que estejamos perante uma transformação muito profunda por parte desses dois partidos. Nas questões de fundo subsistem divergências que são muito grandes e manietam completamente a ação do governo. E impedem, por exemplo, que haja um discurso mais claro sobre questões que são hoje fundamentais. Qual é hoje o problema fundamental do país? É um problema de investimento. Nós temos, historicamente, do ponto de vista económico, um problema de rarefação de capital.
Esta solução governativa assusta os investidores externos?
Não é uma questão de assustar os investidores externos, é uma questão de o discurso que é produzido a partir do Governo e por o próprio PS não valorizar essa necessidade de atração de investimento. Aliás, a moção de António Costa revela isso. Eu olhei para a moção e não vi lá nada de muito significativo. Não há uma especial preocupação com essa questão.
Há uma frase sobre empreendedorismo…
Há uma frase sobre empreendedorismo, não há nenhuma reflexão sobre a questão do crescimento económico, sobre a necessidade de criação de condições destinadas a aumentar a atração do investimento privado externo. Criou-se um ambiente mental que não é propriamente o mais favorável ao tratamento desses assuntos. E essa é a questão essencial do país. Se nós não temos crescimento económico nos próximos anos, se não criamos condições para termos crescimento económico — e não estou a falar de um crescimento económico com números que já não são possíveis…
… Não é com base no consumo…
Também pode ser algum dele com base no consumo. Acho que um dos erros do Governo anterior foi ter desvalorizado excessivamente essa componente. Mas é óbvio que não pode ser só pelo consumo, tem que haver um forte incentivo ao investimento.
Educação: “Os bons princípios devem ser aplicados sem fundamentalismos”
Em relação ao Presidente da República: acha que o apoio que tem dado ao Governo é mais por amor ou por interesse?
Penso que o Presidente da República tem exercido bem as suas funções. Tem sido equilibrado. Ninguém pensaria com certeza que, uma vez eleito Presidente da República, tivesse como prioridade criar dificuldades a um Governo que está legitimamente em funções. Não vejo neste relacionamento do Presidente da República com o Governo nenhuma forma indevida de favorecimento aos partidos que estão neste momento a governar Portugal. É um relacionamento normal e faço até um balanço muito positivo do que foram estes primeiros meses de ação do professor Marcelo Rebelo de Sousa.
Mesmo naquela área onde o Presidente da República mais tem contrariado o Governo, que é a educação?
Não quero entrar na apreciação de políticas governativas. Direi apenas que os bons princípios devem ser sempre aplicados sem fundamentalismo. Mesmo os bons princípios rapidamente se degradam quando são aplicados de forma fundamentalista.
Está a falar dos contratos de associação com alguns colégios privados. Acha que as novas medidas foram aplicadas de forma fundamentalista?
Acho que se tem que avaliar as questões caso a caso. Tem que haver boas justificações para as decisões que são tomadas. Eu não ponho em causa a validade do princípio geral, mas tem de haver uma grande inteligência e uma grande seriedade na aplicação dessas questões. Em relação ao Presidente da República, tem tido uma relação correta com o Governo. Não compete ao Presidente ser oposição, era o que faltava. Também obviamente não pode ser o primeiro apoiante acrítico, mas também não me parece que seja.
Voltando à Educação. Já percebi que queria sair desse tema, mas há aqui também uma questão estrutural do sistema político, que é a de saber se nós temos neste momento um Governo manietado na sua ação por interesses de algumas áreas sindicais.
A minha apreciação genérica sobre as condições em que o PS governa aplica-se depois a todos os casos particulares. E a minha perspetiva é esta: o PS, com este acordo, alcançou o poder; os partidos à nossa esquerda alcançaram algo ainda mais importante, que foi a capacidade de condicionar fortemente o exercício desse mesmo poder. E isso há de ter repercussões em todas as áreas. E de facto tem. Não tenho a mais pequena dúvida.
Em que outras áreas?
Em praticamente todas.
“Não faço uma boa avaliação da ação de António Costa como primeiro-ministro”
Escreveu um artigo a elogiar o ministro dos Negócios Estrangeiros quando Augusto Santos Silva fez uma intervenção em que tornou muito claro que Portugal era um país da União Europeia e da NATO. Mas é curioso porque na moção que António Costa vai levar ao congresso do PS a palavra NATO não aparece.
Eu reparei nisso também.
Acha que foi esquecimento?
Não acho que tenha sido esquecimento. Acho que as pessoas que elaboraram a moção revelaram de facto grande zelo em procurar, por um lado, justificar a solução em vigor e, por outro, em nada fazer, nada escrever, quase nada pensar que a pudesse pôr em causa. Acho que quem escreveu a moção estava altamente condicionado por esta questão. Provavelmente por isso é que não há nenhuma referência à NATO. Coisa diferente tem sido a atuação do ministro dos Negócios Estrangeiros. Eu não quero estar aqui agora também a salientar as áreas em que o Governo tem tido uma posição mais positiva. Mas abrirei duas exceções. Uma em relação ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que tem conduzido a política externa portuguesa no essencial de forma correta — e até com coragem, face à natureza da solução governativa em que participa. Em segundo lugar, a ministra Maria Manuel Leitão Marques, que tem desenvolvido uma excelente ação no seu ministério e tem avançado com um programa sério e sólido de simplificação administrativa. Mas não quero fazer mais considerações.
Só mais uma: já abrimos exceções para dois ministros, devíamos abrir outra para o primeiro-ministro. António Costa tem sido um bom primeiro-ministro?
Vou dizer-lhe o que penso sobre isso. Quando fui à Comissão Política Nacional, em novembro, terminei a minha intervenção dizendo: “Já que não posso confiar na solução governativa, que não confio, ao menos confiarei em ti, António Costa. Confio na tua inteligência, na tua preparação e nas tuas qualidades”. E eu diria que nem a coligação me desiludiu nem o primeiro-ministro. Nada esperava de bom da coligação e ela não me surpreendeu — a meu ver, ela não trouxe nada de bom ao país. E o dr. António Costa não me desiludiu enquanto personalidade política: é um homem de grande talento, de grande inteligência, com uma boa preparação. Apenas lamento que um homem desta dimensão, neste momento, esteja condenado a governar em circunstâncias que são tão negativas, até do ponto de vista da restrição da sua própria liberdade de atuação como primeiro-ministro. Portanto, dir-lhe-ia que continuo a fazer uma boa apreciação da sua personalidade política, continuo a considerá-lo uma das grandes figuras da nossa vida política, mas se me pergunta qual é a avaliação que eu faço da sua ação como primeiro-ministro, essa avaliação não é dissociável de toda a avaliação que faço do processo — não pode ser boa.
Temos estado a falar da história do Partido Socialista. O PS teve até hoje quatro primeiros-ministros: Mário Soares, António Guterres, José Sócrates e António Costa. Se tivesse que os colocar numa lista, como é que os ordenava?
Não ordenaria, porque foram primeiros-ministros em circunstâncias muito diferentes. Acho que aquele que foi primeiro-ministro em circunstâncias verdadeiramente mais difíceis foi Mário Soares. E acho que aí revelou uma extraordinária dimensão. No país há muito a ideia de que Mário Soares foi um grande Presidente da República mas não terá sido assim tão bom primeiro-ministro. Eu tenho uma ideia completamente diferente. Acho que foi um bom Presidente da República mas foi muito mais importante como primeiro-ministro e foi um grande primeiro-ministro, governou o país em momentos absolutamente nevrálgicos: em 1976, numa fase pós-revolucionária; e em 1983-85, na sequência de governações falhadas da direita que tinham deixado o país numa situação muito grave. Eu diria que se tivesse que estabelecer um pódio, colocaria lá o dr. Mário Soares. Quanto aos outros dois, acho que foram bons primeiros-ministros, com personalidades muito diferentes. O eng. António Guterres governou o país numa altura pós-cavaquismo, de criação das condições de integração de Portugal na moeda única. E estou convencido que quando se fizer uma avaliação distanciada do que foi a ação do eng. Sócrates se tenderá a valorizar muito mais aspetos positivos da sua ação, sobretudo no primeiro governo.
Portanto, a sua ordenação seria: Mário Soares, António Guterres, José Sócrates…
Não é assim, não é assim. Primeiro: Mário Soares, claramente. Os restantes não vou comparar, sobretudo António Costa, que ainda está no governo. Mas vou dizer-lhe uma coisa em relação a António Costa. Se me pergunta: “Ele tem a dimensão, as qualidades políticas, intelectuais, desses três?” Tem, não há a mais pequena dúvida. Agora, infelizmente, tem todo esse talento ao serviço de um péssimo projeto.
Francisco Assis: vai voltar a candidatar-se à liderança do PS?
Não tenho essa intenção. Tenho vindo a exprimir as minhas posições porque tenho essa obrigação.
Mas não está no seu horizonte voltar a candidatar-se…
Não, não está. Mas é evidente que quem toma posições e assume um discurso crítico, como eu tenho assumido, tem de estar disponível, como estive antes. Se me perguntassem um mês antes de ter decidido ser candidato a secretário-geral há uns anos, teria dito que não. Essas coisas não se antecipam. O que posso dizer é que nunca fiz nada na vida política subordinado à ideia de me apresentar algum dia ao cargo de secretário-geral.
Mas não sente uma urgência de fazer alguma coisa para que as coisas mudem?
Por isso fiz o que tinha a fazer. Ainda antes da concretização desta aliança fiz um apelo, mas os socialistas não me seguiram. E eu tive que tirar as minhas ilações e remeti-me a este silêncio. Agora, estamos em congresso e sinto obrigação de voltar a dizer o que penso, até para que não fique a ideia de que por qualquer razão optei pelo silêncio — e podia até haver a suspeita de ter razões menos nobres para o fazer. Agora, é óbvio que não há condições nenhumas nesta fase da vida partidária para quem quer que seja se apresentar como alternativa. Não faz sentido nenhum. O partido está no Governo há seis meses, a maior parte dos militantes do PS continuam satisfeitos com esta solução. Seria um ato profundamente irrefletido estar a ponderar qualquer candidatura fosse ao que fosse nesta fase. No futuro, não sabemos.
Rui Moreira: “A coligação autárquica no Porto é a única em que me reconheço”
Vêm aí as eleições autárquicas: o que é que acha que o PS deve fazer no Porto?
O PS neste momento participa praticamente numa coligação com o movimento que ganhou as eleições e que apoia o dr. Rui Moreira. O balanço que o PS faz dessa coligação é muito positivo e, por isso, acho normal que o PS venha a apoiar a sua candidatura.
Sente-se muito mais à vontade com essa coligação, que até está mais próxima do CDS que a do Governo.
Sim. Eu digo por vezes a amigos que esta é verdadeiramente a única coligação em que neste momento me reconheço. Quando às vezes me perguntam se eu apoiaria esta coligação eu respondo: “Esta apoio”.
E no resto do país? A moção de António Costa abre a porta a coligações à esquerda.
A nível autárquico não tenho nada contra essas coligações, até sou a favor. Fui das primeiras pessoas no PS a preconizar isso. Porque, de outra maneira, em muitos sítios o PS fica com muitas dificuldades em disputar o poder sempre que o PSD e o CDS se coligam, e coligam-se com relativa facilidade. Não se pode é governar o país com mentalidade de coligação autárquica.
Barrigas de aluguer: “Não ficaria nada escandalizado se o Presidente vetasse os diplomas”
Ainda não falámos das questões fraturantes. Em dez moções setoriais apresentadas no congresso do PS, três põem questões fraturantes, como a liberalização das drogas, a legalização da prostituição e a eutanásia. Acha que é uma forma de competição com o BE?
Não acho que sejam questões tão fraturantes quanto isso. E a prova é que, na última votação na Assembleia da República de um tema fraturante, uma grande parte do PSD votou a favor, inclusivamente o dr. Pedro Passos Coelho.
E qual é a sua opinião sobre esses temas?
Em relação à eutanásia, a minha posição filosófica e de princípio é favorável. Julgo que depois tem que haver uma regulação jurídica muito exigente e muito rigorosa. Quanto à legalização da prostituição, tenho sérias dúvidas. E na questão das drogas leves também. Sobre essa matéria, li há dias umas declarações muito interessantes do dr. João Goulão, que é um eminente especialista, e insuspeito de qualquer tipo de conservadorismo, dizer uma coisa muito simples: “Tenham calma, há passos que têm de ser dados com muita ponderação”. Em relação a questões que foram recentemente discutidas na Assembleia da República, tenho dúvidas em relação à forma. Há uma coisa que me causa alguma apreensão…
Está a falar da procriação medicamente assistida (PMA) e das chamadas “barrigas de aluguer”?
Julgo que houve uma grande precipitação. E, pela informação de que disponho, a solução encontrada é mal formulada do ponto de vista jurídico e pode suscitar muitos problemas de interpretação e de aplicação em planos relevantíssimos que têm mesmo que ver com aspetos essenciais da dignidade humana. Eu concordo com a discussão, mas tenho dúvidas em relação à forma muito precipitada como por vezes estes assuntos são tratados e resolvidos. Eles exigem uma discussão na sociedade portuguesa que não se fez.
É o preço a pagar pela coligação?
Eu acho que isto ultrapassa até um bocadinho a coligação. É o preço a pagar por alguma cedência a um certo espírito de modas. Eu sou a favor da discussão, mas tudo isso tem que ser muito bem pensado sob pena de nós, indo atrás da última moda, estarmos de facto a cometer erros muito graves. Anda muita precipitação no ar. Eu, por exemplo, não ficaria nada escandalizado se o Presidente da República vetasse os diplomas que foram aprovados há dias.
Não acharia isso uma declaração de guerra às esquerdas?
Não só não acharia uma declaração de guerra…
… acharia bem?
Se isso contribuísse para evitar precipitações e para que houvesse um debate mais profundo na sociedade portuguesa sobre esses assuntos ficaria satisfeito com uma decisão dessa natureza.
[Veja aqui a entrevista completa a Francisco Assis]