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Toda a gente conhece o “Clube dos 27” – Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse – mas o “Clube de 2016” não lhe deve nada: David Bowie, Prince, Leonard Cohen e, agora, George Michael. E o ano ainda não acabou. Não se pode dizer que estivessem no auge da carreira: apesar de continuar a gravar, Bowie há muito que não dava concertos; Prince dava concertos mas há muito que não gravava um álbum com impacto significativo e só Leonard Cohen, curiosamente o mais velho dos quatro, continuava a gravar e a dar concertos, mesmo que os seus melhores trabalhos já tivessem alguns anos.

O caso de George Michael encerra outras curiosidades: não lançava um álbum de originais desde 2004 e, ao contrário de Bowie, por exemplo, continuou a dar concertos e a ser notícia de tablóide pelos recorrentes problemas com as autoridades. Em 2011, durante uma tournée pela Europa, esteve internado num hospital austríaco com uma pneumonia. Safou-se por um triz. A pergunta era: alguma vez George Michael voltaria a ser o que tinha sido? Mas, afinal, o que é que George Michael tinha sido?

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Wham!

Em 1996, Robbie Williams, ex-membro da boy band Take That, lançou-se numa carreira a solo. As perspectivas não eram animadoras. Nicky Wire, baixista dos Manic Street Preachers, disse numa entrevista que Williams era tão mau que, para começar a sua nova aventura, tinha escolhido uma música de outra pessoa. A canção, para quem já não se lembra, era “Freedom”, um original de George Michael. Sarcasmo à parte, a escolha fazia um certo sentido. Dos cinco elementos da banda, Robbie Williams não era, por assim dizer, o mais dotado, artisticamente falando. A grande esperança era Gary Barlow, cuja carreira a solo, ao contrário do esperado, rapidamente se afundou. A escolha de “Freedom” era, por isso, uma declaração de princípios: Williams queria libertar-se da imagem de ídolo das adolescentes e passar para outro nível. Escolheu uma canção que falava de liberdade e que era da autoria do modelo ideal dessa passagem de um público de adolescentes histéricas para um público adulto mais sofisticado: George Michael.

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[a versão de Robbie Williams para “Freedom”]

Madeixas, bronzeados mediterrânicos, calções curtíssimos, dentes branquíssimos e canções pop tão contagiosas que podiam figurar na lista de doenças da OMS: “Club Tropicana”, “Young Guns (Go For It!)” e “Wake Me Up Before You Go-Go”. Foi assim que os Wham!, a dupla composta por Andrew Ridgeley e George Michael, conquistaram o mundo no início dos anos 80. Os telediscos tinham qualquer coisa de Verão eterno e despreocupado, como um anúncio da Coca-Cola com “sensação de viver”. Era irresistível mas, àquele ritmo, era coisa para não durar mais do que dois ou três verões. O segundo álbum da banda, Make it Big, de 1984, incluía a universal “Careless Whisper”, que apontava já um novo caminho, um caminho que George Michael haveria de percorrer sozinho: mais soul, mais sério, mais adulto. Entretanto, já tinham lançado aquele que será talvez o maior clássico moderno de Natal, “Last Christmas”, uma canção que continuará a ser cantada enquanto houver pinheirinhos, presentes e Pai Natal.

A solo

Em 1987, antecipando o seu primeiro álbum a solo, George Michael gravou um dueto com a rainha do R&B, Aretha Franklin, mostrando claramente para onde queria ir, musicalmente falando. “Faith”, esse álbum de estreia, foi um enorme sucesso em todo o mundo e catapultou George Michael para o patamar do super-estrelato e das super-polémicas. “I Want Your Sex”, o primeiro single extraído do álbum, uma canção que hoje até nos parece cândida, foi banida de muitas rádios pela letra explícita. Enquanto George Michael se tornava ainda maior do que os Wham! tinham sido, Andrew Ridgeley retirou-se para uma pacata quinta na Cornualha, onde ainda hoje mora, longe dos holofotes e a viver dos direitos das canções do duo. Por várias vezes, Michael lamentou não ter tomado a mesma decisão de se retirar, mas na altura seria difícil perceber que o caminho da glória e da auto-destruição eram o mesmo.

[“I Want Your Sex”, de George Michael]

O lançamento do álbum Listen without Prejudice Vol.1, em 1990, marcou uma viragem ainda mais acentuada na carreira de George Michael. Em busca do respeito artístico, desapareceu dos seus próprios vídeos – uma heresia para um sex symbol cuja imagem garantia, por só, alguns milhões de cópias vendidas – e, pouco tempo depois, lançou-se numa guerra suicida contra a própria editora, a Sony, que acusou de não o promover adequadamente (no video de “Fastlove”, de 1996, surgem uns auscultadores da marca “Fony”). A batalha arrastou-se por vários anos nos tribunais e, no fim, quem perdeu foi o cantor. Durante seis anos, não lançou nenhum álbum, embora se tenha mantido no topo graças fundamentalmente a dois momentos: o dueto com Elton John na canção deste, “Don’t Let the Sun Go Down on Me”, e a extraodinária actuação no concerto de homenagem a Freddie Mercury, onde rebentou com a escala ao cantar o hino gospel “Somebody to Love”.

O regresso

Então, em 1996, regressou em grande forma com Older, primeiro disco da DreamWorks Records de David Geffen, um álbum marcado pela luto pela morte do namorado mas também revelador de maturidade artística. Mesmo não conhecendo um sucesso global equivalente ao dos álbuns anteriores, Older deu 6 singles que entraram para o top 3 na tabela de vendas do Reino Unido, um feito que ainda não foi igualado. O álbum era dedicado a Anselmo Feleppa, o companheiro que tinha morrido três anos antes, e, para o músico, as canções tinham tantas referências ao amor no masculino que sentiu que estava a assumir a sua sexualidade sem ter de a revelar directamente aos jornalistas.

O que acabou por acontecer em 1998, com o célebre incidente da casa-de-banho em Los Angeles. A forma como lidou mediaticamente com o episódio é uma lição de relações públicas. Ao contrário das celebridades que, hoje, na era das redes sociais, pedem desculpa por tudo e por nada, fazem verdadeiros actos de contrição por qualquer conduta menos apropriada ou até por uma frase infeliz, George Michael falou abertamente sobre o caso (veja-se a entrevista a David Lettermann, em que brincou ao considerar a esquadra de Beverly Hills a melhor de todo o mundo ocidental e falou sem pudores dos seus hábitos sexuais) e deu a volta ao texto com o vídeo da canção Outside, recusando quer o papel de culpado, quer o papel de vítima.

Em perda

No entanto, em todo o processo alguma coisa se quebrou porque na verdade George Michael nunca mais atingiu o mesmo nível artístico. De 1998 a 2016, lançou apenas mais um álbum de originais, Patience (2004) e, nos últimos anos, o cantor foi notícia mais por problemas com as autoridades do que pelo seu trabalho: foi detido por várias vezes na posse de drogas e ficou proibido de conduzir por cinco anos. Em 2011, teve de cancelar a sua digressão europeia por causa da pneumonia que o deixou entre a vida e a morte.

Por tudo isto, não se pode dizer que a morte de George Michael seja uma surpresa. Dos tempos festivos dos Wham!, quando era um jovem gay no armário, aos momentos mais sérios da sua carreira a solo (como “Jesus to a Child”), e já depois de assumir a sua homossexualidade, a figura pública de George Michael foi-se tornando progressivamente sombria e aquele sorriso fácil e franco que era a sua imagem de marca transformou-se num ricto esforçado e obrigatório. Em entrevista ao The Guardian, em 2009, o próprio reconhecia que havia nele uma força auto-destrutiva com a qual lidava sobretudo com drogas que, por sua vez, agravavam os seus problemas. Fazia um esforço para trabalhar e voltar ao activo, mas alguma coisa o arrastava de volta para o buraco negro da depressão.

Não vale a pena especular sobre o que o matou porque, o que quer que tenha sido, começou a matá-lo há muito tempo. Também não vale a pena lamentar tudo aquilo que não nos deu porque, a exemplo de Bowie, Prince e Cohen, deixou o suficiente para ser lembrado com admiração. E as especulações e os lamentos são também inúteis porque, na realidade, artistas como George Michael não nos devem nada, nem explicações, nem sequer mais música. Nós é que lhes devemos muito. Talvez seja essa a razão da nossa tristeza quando partem: ter uma dívida que agora já não podemos pagar.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015