O governo português não pode tomar “medidas avulso” para relançar a economia, caso contrário o tiro pode sair pela culatra. O alerta é do economista-chefe do grupo BNP Paribas, em entrevista ao Observador após um encontro com jornalistas, numa visita recente a Lisboa. William de Vijlder diz que Portugal tem de intensificar as reformas estruturais e tem de flexibilizar o mercado de trabalho — e saber explicar à população porque é que um mercado de trabalho flexível é importante. Não está preocupado com a subida do salário mínimo, mas avisa que é crucial subir nos rankings da competitividade. A incógnita é o que acontecerá quando o Banco Central Europeu (BCE) deixar de comprar a dívida portuguesa, já que não é previsível que os ratings subam nas outras agências além da DBRS.
Como avalia a política macroeconómica recente do governo, nomeadamente decisões como aumentar o salário mínimo numa altura em que é necessário ganhar competitividade?
Houve melhorias nos últimos anos, acho que isso é importante salientar. Nesta fase, acredito que não devemos sobrevalorizar em demasia a decisão de subir o salário mínimo, num contexto em que a inflação está a subir. Além disso, a taxa de desemprego tem caído nos últimos anos e existe crescimento, portanto, todas estas coisas devem ser reconhecidas. Ao mesmo tempo, é claro, temos de ser realistas e reconhecer que existem necessidades de reformas estruturais que são significativas.
Ouvimos falar muito em reformas estruturais. Do seu ponto de vista, em concreto, o que é que Portugal precisa de fazer?
Temos de encontrar formas de subir nos rankings de competitividade. Tem de ser fácil abrir uma empresa. E é crucial que exista um mercado de trabalho com flexibilidade. As pessoas têm de compreender que um mercado de trabalho flexível significa que, se perder o trabalho, a flexibilidade existente significa que terei mais facilidade em encontrar um novo trabalho. É exatamente isso que os dinamarqueses fizeram, daí que se fale tanto do “modelo dinamarquês”.
O mercado de trabalho em Portugal não é suficientemente flexível para que o país cresça mais?
Com o perfil demográfico de Portugal, tal como em outros países, os esforços têm de ir no sentido de impulsionar o crescimento do PIB potencial, e isso passa pela flexibilização do mercado de trabalho, em parte. Quando se tem uma população a envelhecer, em teoria, tem-se um crescimento potencial mais fraco e adivinha-se um fardo maior sobre o setor público. Daí a necessidade de dinamizar o crescimento potencial. O desafio deve ser como tornar o ambiente mais conducente a que as empresas invistam, as empresas nacionais e as estrangeiras.
Outro fator que alguns analistas sublinham é a incerteza em torno da política fiscal.
A incerteza fiscal é muito importante, e incluo também aí a incerteza sobre a regulação de determinados setores e, ainda, a incerteza sobre os incentivos às diferentes atividades. É muito importante que o governo perceba a importância de apresentar uma estratégia abrangente, de um assentada. Porque se a política for a de apresentar medidas avulso, periodicamente, isso pode ser pior porque as empresas tenderão a esperar e inibir os investimentos, porque se acredita que dali a algum tempo os incentivos serão maiores e, portanto, vale a pena esperar. Isso aconteceu em França.
Por vezes lemos declarações críticas, por parte de pessoas como o ministro alemão Schauble ou Klaus Regling, do fundo de resgates do euro, sobre uma pretensa “inversão de rumo”. Visto de fora, qual é a sua perceção global sobre como o governo está a fazer as reformas estruturais recomendadas pelos credores internacionais?
Lendo o último relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre Portugal, vemos que existem muitas recomendações e vemos que nem sempre há uma execução plena do que é pedido. O enfoque dos investidores estará sobre aquilo que o governo cumpre, realmente. Mas há que sublinhar que, para muitas empresas, Portugal tornou-se uma economia muito atrativa nos últimos anos. Qualquer coisa que a política consiga fazer para estimular isso é essencial. Contudo, é necessário ter em mente que quando se tem uma dívida pública a rondar os 130% do PIB, uma dívida de 150% do PIB nas empresas e, também, famílias endividadas, temos uma economia que é menos reativa a um ambiente de taxas de juro baixas, porque já existe muita dívida, e uma economia que é mais vulnerável a episódios de abrandamento do exterior e de subidas nas taxas de juro.
Mas do que leu no relatório do FMI, o que lhe chamou mais a atenção?
A mim surpreendeu-me o comentário sobre a questão do crédito malparado na banca, que não é um problema só em Portugal. Podemos especular que seja criada uma entidade europeia para gerir estes ativos, o que seria ótimo, mas não podemos contar com a iniciativa europeia para resolver estes problemas neste momento.
Mais alguma coisa que o tenha surpreendido?
Além disso, saltou-me à vista que existe uma dinâmica de inflação diferente entre os bens transacionáveis, onde há muito pouca inflação, e no setor não transacionável existe mais inflação.
O que é que isso nos diz?
Sem ter explorado com detalhe o que causa isso, diria que é algo que temos de monitorizar porque pode estar, por um lado, a pesar no poder de compra das famílias e travando o consumo, ou, por outro lado, pode estar a significar um aumento dos salários e um impacto negativo sobre a competitividade. E o facto de ser no setor não-transacionável preocupa-me porque já estou nesta profissão há muitos anos e, por regra, quando um país perde competitividade isso começa sempre por um aumento dos preços no setor não-transacionável que não é correspondido pelo setor transacionável.
O que mais lhe tem chamado a atenção sobre a situação macroeconómica de Portugal?
Houve uma melhoria da competitividade salarial nos últimos anos, que agora estabilizou mas ainda está em níveis bastante melhores do que noutros países. Por outro lado, houve uma descida da taxa de poupança, ao mesmo tempo que a procura externa caiu, o que pode ser um sinal de que as pessoas estão mais confiantes quanto ao futuro ou, por outro lado, pode ser um sinal de que ainda têm dificuldades e não conseguem poupar tanto.
Mas porque é que alguém há-de poupar muito, com taxas de juro de zero?
Pois… Como sabe, Mario Draghi e os seus colegas têm sido muito criticados na Alemanha por esta penalização dos aforradores. Mas podem acontecer duas coisas. Por um lado, podemos poupar menos porque é menor o custo de oportunidade de não poupar. Contudo, também pode acontecer que se poupa mais porque se sabe que não se vai poder gerar património graças aos juros, ou seja, consome-se menos, o que pode ser mau para a economia. Mas, em Portugal, estou preocupado com a descida da taxa de poupança.
O governo diz que a subida das taxas de juro é um fenómeno transitório. Há um desejo de que as taxas baixas permaneçam mas, também, uma noção de que as compras do BCE vão terminar. Portugal vive uma corrida contra o tempo?
A corrida que o país enfrenta, contra o relógio, está relacionada com aquilo que se pode fazer para baixar a dívida/PIB. As taxas de juro baixas têm tido um impacto positivo sobre as finanças públicas de vários países mas a velocidade com que isso baixa a dívida é lenta. Por isso é que é tão importante o denominador, isto é, o crescimento. Uma dívida pública demasiado alta coloca o país muito vulnerável a momentos em que o crescimento desacelera ou se cai numa recessão. É por isso que os prémios de risco exigidos pelos investidores são elevados. A única forma de responder a isso é controlar o endividamento e estimular o crescimento.
Qual é o principal receio dos investidores em relação a Portugal, no que aos mercados diz respeito?
Julgo que o receio é que Portugal possa perder o rating da DBRS. Porque uma coisa é analisar a quantidade de dívida que se quer comprar de um emitente com mais ou menos dívida, com mais ou menos crescimento, com mais ou menos défice. Aqui temos um risco muito concentrado numa decisão de uma agência de “rating”, o que cria aquilo que os mercados chamam um “tail risk”.
O objetivo é o de fazer com que as agências, além da DBRS, subam o rating. Acha que é provável que as outras agências tirem Portugal de lixo?
Não é fácil dizer o que vão fazer as outras agências. Mas tendo em conta que foi visível muita preocupação quando a DBRS ia produzir uma atualização, se calhar é muito cedo para esperar que outras agências melhorem os seus ratings.
Então os juros vão continuar a subir?
As taxas devem subir, ainda que acredite que não em demasia, quando o BCE parar de comprar a dívida — o que será um tópico muito debatido à medida que nos aproximarmos do final do ano. É óbvio que juros mais elevados têm impacto, e um impacto que se alastra aos custos de financiamento na economia real. É interessante constatar que o risco de o BCE poder atingir limites na compra da dívida portuguesa está a levar a uma subida dos spreads (prémios de risco na dívida pública). Isso diz-nos que quando o programa, como um todo, terminar, as taxas podem subir. Não podemos dizer com certeza que será uma subida enorme, mas há que lembrar que vamos entrar num ambiente diferente.
O que vai acontecer quando o BCE deixar de comprar dívida portuguesa?
Quando chegarmos a uma situação em que o BCE deixou de comprar, é previsível que haja algum aumento dos prémios de risco. O que, sim, vai colocar Portugal numa situação mais difícil. Portanto é crucial que a política faça o que puder para estimular o crescimento. Só se consegue ter mão nos juros se se fizer as coisas certas para estimular o crescimento. É assim que funciona. Estamos a entrar numa nova era na política monetária, portanto temos de ter noção que entre agora e os próximos três anos, a certa altura a política monetária mais apertada vai “morder”. E se o nível de partida das taxas de juro já é 4%, então fica-se numa situação mais desafiante do que se as taxas de juro estivessem mais baixas, como é óbvio.
O facto de Portugal não ter rating de qualidade nas três principais agências não inibe o BCE de comprar, porque também reconhece a DBRS, mas importa para a procura pelos investidores. É possível continuar muito mais tempo sem esses ratings?
Há um custo de não pertencer aos índices a que se devia pertencer. Portugal está fora dos índices de obrigações dos países desenvolvidos, por não ter rating. Isso faz com que Portugal esteja limitado aos investidores mais ágeis, capazes de fazer investimentos fora dos índices, e é por isso que o rating da DBRS é tão importante. Mas esse é um dinheiro muito volátil, hoje está cá e amanhã pode não estar. A maior parte do dinheiro está nos investidores passivos, pelo que recuperar os ratings deve ser uma ambição importante das autoridades — significaria ter um conjunto de investidores passivos, e bolsos profundos, que compram para acompanhar os índices.
À entrada em 2017, como olha para o investimento nos mercados? Quais são as principais questões?
Bem, se tivéssemos falado há um ano e eu lhe tivesse dito que tinha visto uma bola de cristal e que os britânicos iam votar para sair da União Europeia e que Donald Trump seria Presidente dos EUA, se calhar teria concluído que o melhor era concluir o nosso encontro assim que possível. O Brexit é algo assustador e, quando a Trump, bem, não sabemos o que ele significa.
Mas, num cenário-base, qual é a sua opinião?
Estou relativamente otimista em relação ao crescimento global porque estamos a ver algo que não vemos muitas vezes: segundo um índice do Citigroup, temos visto uma preponderância de surpresas positivas nos indicadores económicos nos EUA, na zona euro e nos mercados emergentes. Ou seja, nos três blocos em simultâneo — é muito raro.
Quem é William de Vijlder?
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O economista-chefe do Grupo BNP Paribas iniciou a carreira no Departamento de Estudos Económicos do Banco Geral da Bélgica e tornou-se Chefe de Estratégia de Investimento na divisão de gestão de ativos em 1989. Depois, passou para o setor privado — para o banco Fortis e, quando este banco se fundiu com o BNP Paribas Investment Partners, em 2010, foi para a Comissão Executiva da instituição. Em 2013 passou a vice-presidente e é desde setembro de 2014 economista-chefe do Grupo.
É doutorado em Economia pela Universidade de Ghent, na Bélgica, onde é professor titular de Finanças e Economia desde 1991. Em 2014 foi escolhido como um dos principais 500 LinkedIn Influencers, em todo o mundo.
A bolsa dos EUA tem subido desde a eleição de Trump, sobretudo graças a expectativas de que a política fiscal irá estimular o investimento empresarial e, também, o consumo. Vê alguns riscos para esta expectativa, acha que a bolsa pode estar a precipitar-se?
É verdade que as empresas norte-americanas parecem mais confiantes mas existem alguns pontos de interrogação. Um deles é sabermos que muitas empresas têm aproveitado os juros baixos na dívida para recomprarem ações no mercado. Isso tem sido um fator de suporte para as bolsas, mas se os juros subirem isso poderá deixar de acontecer tão intensamente. Além disso, receio que possa existir um efeito soufflé, em que os empresários avancem todos para grandes investimentos, ao mesmo tempo, e depois podemos chegar a um momento em que para tudo. E se se der muito “combustível” à economia, sabendo-se que ela está neste momento com pleno emprego [taxa de desemprego abaixo de 5%], isso pode fazer subir a inflação muito rapidamente, o que pode obrigar a Reserva Federal a fechar a torneira da liquidez bruscamente. Depois, há, claro, receios em torno do possível protecionismo a nível global.
E na zona euro, que no ano passado acabou por ser algo dececionante?
Na zona euro também temos vindo a ter surpresas positivas. E um efeito que não podemos subestimar é a China, cujo crescimento tem suportado a atividade na zona euro. Além disso, acho que existe, finalmente, uma perceção de que a zona euro está lentamente a acelerar e que estamos num período de crescimento que começou ali em finais de 2013. Julgo que as empresas estão, finalmente, a acreditar na história de uma recuperação na Europa. E do lado do consumidor ainda se sente, em vários países, um impacto positivo dos preços mais baixos da energia e dos combustíveis e, também, dos juros baixos no crédito. Por outro lado, há fatores de incerteza: além de Trump e do Brexit, temos as eleições em França e na Alemanha, temos de ter em conta que a política monetária não vai ser tão expansionista como nos últimos anos.
Mas também temos fatores de incerteza, como as eleições em França e Alemanha.
Sim. Há uma teoria, estudada inclusivamente pelo FMI, que diz que se os investidores forem mordidos uma vez pelo cenário imprevisto (e em 2016, isso aconteceu duas vezes, com o Brexit e com Trump), na próxima vez irão ter mais cautelas. Isso aplica-se aos mercados financeiros, que como sabemos refletem e influenciam a economia real, mas também se aplica aos investidores empresariais.
Voltando a Trump, quais são, em concreto, os seus maiores receios?
Sabemos que vai haver algum estímulo fiscal, sabemos que vai haver alguma comunicação via redes sociais que por vezes pode causar alguma instabilidade, sabemos que a política monetária irá apertar mais rapidamente do que se previa e sabemos que a política comercial poderá ter algumas alterações. Portanto, temos coisas positivas e coisas negativas, mas os mercados só estão a focar-se nos riscos positivos. Mas isso pode mudar, porque, por vezes, as “ondas” de mercados só se concentram numa coisa de cada vez, normalmente nos fatores de mais curto prazo. Podemos ter uma viragem rápida.