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© Hugo Amaral/Observador

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Morrissey: o bom, o muito mau e o execrável vilão

Perante a edição de um novo álbum, de um filme sobre a sua adolescência e de novas declarações incendiárias de Morrissey, Pedro Gonçalves talvez tivesse preferido ficar sossegado. Não ficou.

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Quis o destino, e adivinha-se que além do destino também uma entidade dedicada ao marketing cultural, que “England is Mine” fosse estreado nas salas de cinema portuguesas a 16 de Novembro, uns nédios quatro meses depois de mostrado ao mundo pela primeira vez. Não é particularmente custoso imaginar a dúvida dos distribuidores a respeito do sucesso comercial do biopic realizado por Mark Gill. Na sua mente, três palavras combinadas em sequência: “Ninguém quer saber”. Embora legítimo, o receio terá sido mitigado por uma casualidade: a edição, a 17 de Novembro, o dia a seguir à estreia, de Low in High School, o 11.º primeiro álbum em nome individual de Morrissey. Se Los Angeles tem desde 2017 o seu Morrissey Day (10 de Novembro), Portugal tem desde a passada semana a sua Morrissey Week. Esta gente sabe o que anda a fazer.

Se na aparência e em tudo o mais “England is Mine” e Low in High School são obras totalmente distintas, há, além da proximidade das datas com que chegaram a Portugal, algo que as acasala num plano, digamos, conceptual: nada têm a ver com os Smiths. E se no caso de Low in High School só alguém muito doente poderia esperar o contrário, a respeito de “England is Mine” a conversa pode ser outra.

Um pequeno filme não merece um grande ecrã

Mark Gill, realizador de “England is Mine”, disse já por diversas ocasiões que não quis fazer um filme sobre Morrissey na qualidade de vocalista dos Smiths. Quis, ao invés, contar a história de um adolescente em guerra contra o determinismo do contexto do seu final da década de 70 do século XX – Stretford, subúrbio de Manchester, a mundanidade sem poesia, o quotidiano sem canções e um círculo familiar e social só pontualmente resgatado do seu desinteressante conservadorismo. O adolescente queria escrever canções e cantá-las. Gill queria apenas contar uma história de adolescência.

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[o trailer de “England is Mine”:]

Na autobiografia que Morrissey publicou em 2013, a melhor porção de texto e contexto está contida nas páginas que antecedem a formação dos Smiths. Sobre a sua infância e a sua adolescência, Morrissey escreve e descreve como poucos conseguirão fazê-lo em língua inglesa. Ou em qualquer outra. Fá-lo com pormenor e nota artística insuperável. Mas nem com esta riqueza servida em prateada bandeja Mark Gill conseguiu fazer um entusiasmante filme biográfico.

A sua intenção de romancear os tempos que antecederam ao rompante fulgor dos Smiths serve, naturalmente, para justificar a ausência no filme de canções da banda de Morrissey, Johnny Marr, Andy Rourke e Mike Joyce. Não serve, porém, para justificar um filme irremediavelmente tépido, álbum de fotografias de clichés de adolescência, exercício de estilo de um fã e vizinho de Morrissey na época em apreço que, por razões insondáveis, tratou por perder a irrepetível oportunidade de impregnar de fulgor a história de uma das mais estimulantes figuras da cultura popular britânica num momento tão tenso quanto a sua adolescência e numa época a fervilhar de erupções culturais – vede, para este efeito, a passagem do filme pelo hoje lendário concerto dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall de Manchester em Junho de 1976.

É tão sensato esperar ver Morrissey numa campanha de publicidade da McDonald’s ou a caçar elefantes em África quanto tentar encontrar imparcialidade e distanciamento na relação entre o autor desta prosa e a música, a influência e a importância dos Smiths (e de parte do que o seu vocalista fez posteriormente) na cultura popular. Perdão: na vida.

Restarão, por esta altura, poucos dias para que em Portugal “England is Mine” possa ser ainda visto numa sala de cinema. O que, convenhamos, é uma excelente notícia. O esquecimento da obra é a única eventual garantia de que esta história pode um dia ser narrada no cinema com a arte que merece. Não é forçoso que seja sustentada pelo beneplácito e a colaboração de Morrissey, como esta não foi. Basta que seja narrada com a arte que merece.

Aviso

É tão sensato esperar ver Morrissey numa campanha de publicidade da McDonald’s ou a caçar elefantes em África quanto tentar encontrar imparcialidade e distanciamento na relação entre o autor desta prosa e a música, a influência e a importância dos Smiths (e de parte do que o seu vocalista fez posteriormente) na cultura popular. Perdão: na vida.

Assisti a seis concertos de Morrissey, dois e um décimo deles tão perto do palco quanto a Física o permite. Foi aí que vi, entre outras coisas, fãs de várias partes do mundo – elementos do séquito que se intitula Moz Army – partilharem creme para as mãos para os momentos em que o único Deus em que acreditam lhes estende a sua. E foi aí, nessas ocasiões religiosas, que comecei a olhar para as canções de Morrissey de uma perspetiva particular: tentando imaginar quais, entre as que publica a cada novo álbum, serão alguma vez cantadas, sentidas e choradas como são, por exemplo, “Speedway” e todas as que resgata da discografia dos Smiths para os palcos no século XXI. O que nos leva a Low in High School.

[“Spent the Day in Bed”, primeiro single de Low in High School:]

Cinco em doze

Morrissey tem o hábito de queixar-se do tratamento que a indústria musical lhe dedica. Não é de hoje – uma das surpresas a retirar da sua autobiografia é a sua obstinação, durante a carreira dos Smiths, com o lugar a que os singles e os álbuns da banda chegavam na tabela inglesa de discos mais vendidos e a procura de bodes expiatórios para resultados que não fossem o número um.

Pouco importa se, dado o nível de dedicação de milhares de fãs espalhados pelo mundo, lhe fosse há muito possível pagar cinco álbuns e a consequente promoção em escassas horas de um qualquer crowdfunding: Morrissey aprecia ser adulado, não apenas por quem o ouve, mas igualmente por quem o edita. O que fará com que por estes dias viva em estado de levitação, dados os encómios que lhe dirigiu a BMG, para não referir a liberdade que lhe atribuiu para criar a sua própria etiqueta – a Etienne – para a edição de Low in High School. Não nos esqueçamos que World Peace is None of Your Business, o álbum anterior a este, foi retirado do mercado pouco depois de lá ter chegado por alegadas divergências com a Harvest, etiqueta da Universal Music.

De regresso a 2017, hoje Morrissey tem grandiosas pop-up shops com o seu nome e é editado em quatro cores de vinil, CD, cassete e formatos digitais, alguns desses incluídos em packs que incluem T-shirts e merchandising diverso. Não é difícil perceber que, com convicção ou com a mais liminar intenção de impressionar o outro num primeiro encontro, a BMG investiu numa relação.

[Pop-up shop dedicada a Morrissey em Londres:]

O percurso de Morrissey a solo forneceu a quem lhe presta atenção um ensinamento particularmente útil: gerir expectativas é actividade que deve surgir antes da audição de qualquer novo álbum. Porque, lamentavelmente, obras maiores como Viva Hate (1988), Vauxhall and I (1994) e You Are the Quarry (2004) encontram oposição fácil em desinspiração e irrelevância. E é por via das expectativas que Low in High School começa bem. Muito bem, até.

Começa com uma rajada de cinco canções que, imagino, encontrarão o seu caminho até ao momento em que, de braços estendidos e creme nas mãos, muitos farão soar as suas vozes nos concertos que não forem cancelados pelo mundo fora. Descontado o tom paternalista com que nos instiga a ensinar a nossa prole a reconhecer e desprezar a propaganda, “My Love, I do Anything for You” é um pontapé na porta, uma grandiosa cavalgada que nos faz pensar coisas bonitas.

“I Wish You Lonely”, que lhe sucede, é uma robusta e metralhada caça ao refrão, elemento primordial escondido entre monarquia, oligarquia, heroína e caça à baleia. Depois vem “Jacky’s Only Happy When She’s Up On Stage”, a melhor canção de todo o disco. Clássico instantâneo na melodia da voz, repetição de palavras de ordem, a delicadeza sensível daquilo que parece ser a vida de uma actriz e que, feitas as contas, não será mais do que um nome carinhoso para a Union Jack, a bandeira inglesa. “Exit, exit!”, com que se despede até ao desvanecimento, transformar-se-á facilmente ao vivo em “Brexit, Brexit!”.

A capa de “Low in High School”, de Morrissey (BMG)

“Home is a Question Mark” é o regresso aos dias em que Morrissey alcançava esse estado superior que é a empatia com quem lhe dedica tempo e coração. Porque, em contida velocidade sobre uma guitarra dedilhada que nos remete para um Marr que Morrissey não quer seguramente lembrar, nos diz coisas sobre o sentimento de pertença, de identificação e falta dela, sobre a nobre arte de viver em solidão. E se aquelas palavras finais não se ouvirem em coro em todas as salas do universo conhecido, então nada mais fará sentido.

As boas notícias terminam, infelizmente, ao som do primeiro single retirado de Low in High School. “Spent the Day in Bed” é um golpe clássico (e por isso baixo) nestas coisas da pop. Anunciada ao que vem com uma despudorada e curta sequência de notas num piano eléctrico, volta a emaranhar-nos num labirinto estrutural que nos diz que nada obriga o criador a limitar-se a um refrão por canção. Tudo é refrão em “Spent the Day in Bed”. Oxalá tudo fosse também menos primário do que o conselho que nos dá: deixar de ver notícias. Se já leu até aqui, emérito leitor, merece ficar por aqui. Low in High School devia, ele próprio, ficar por aqui.

[O melhor de Low in High School em 4:19]

Se é verdade que as canções de um álbum não são habitualmente compostas pela ordem em que são editadas, Low in High School agiganta-se na tarefa de demonstrar o contrário. Porque o que a partir de “I Bury the Living” se passa é um conjunto de sete saídas precárias do estado de inspiração. Morrissey e a banda que o acompanha soam, a partir daqui, como a tripulação de uma embarcação em busca de um farol que se apagou nos minutos anteriores.

Nesse contexto, destacam-se naturalmente “I Bury the Living”, penosos sete minutos de medley anti-guerra que só elevam o rosto do chão quando trazem à memória o dia em que os Clash descobriram o dub; “The Girl from Tel Aviv”, que se aventura na ginga do tango sem nada que o justifique ou sustente; “When You Open Your Legs”, que, descontado o título, estraçalha uma louvável ambição de crooner com uma ameaça de pasodoble; e “Who Will Protect Us From the Police”, um hino à incapacidade de sonhar com algo mais do que a literalidade e, sobretudo, uma homenagem à secular actividade que é fazer canções sem a mínima ideia de onde para a melodia. “In Your Lap”, “All the Young People Must Fall in Love” e “Israel” (não se espante o emérito leitor por encontrar um padrão na voz de Morrissey face ao conflito israelo-palestiniano) são, nos seus melhores momentos, apenas olvidáveis.

Morrissey em palco, ou quando deus dá uma mãozinha

Getty Images

Low in High School é bastante eficaz a cumprir uma tarefa: a de tornar claro que, infelizmente, cada novo álbum de Morrisey só é levado em ombros às portas do panteão por dois tipos de pessoas: as que não conhecem a música que está para trás e as que, toldadas por uma cegueira religiosa, depositam os critérios num jazigo e despejam na internet a espuma da raiva que sentem por quem não encontra virtude na desorientação. Os tais que passam creme nas mãos para que Morrissey lhes estenda a sua. Se algo de grave me acontecer num futuro próximo, entre eles estará seguramente o responsável.

Um trágico epílogo

Morrissey, como é por demais sabido, há muito que representa mais do que a música que faz. É as palavras que escreve e, nos anos mais recentes, em larga escala as palavras que diz. Nem toda a gente precisa de assessores de comunicação. Mas, Morrissey, não é vergonha ter um em 2017.

Em declarações recentes ao Spiegel Online, ao mesmo tempo que se diz contrário a todo o tipo de abuso físico ou sexual, Morrissey relativiza os actos de que são acusados Harvey Weinstein e Kevin Spacey. Questionando as motivações das vítimas do primeiro e trazendo à lembrança a expressão “pôs-se a jeito” no caso da primeira alegada vítima do segundo. Que, recorde-se, tinha 14 anos quando se terá visto num quarto com o actor americano.

E, sendo verdade que haverá sempre quem procure razões para perdoá-lo, há quem anuncie o fim de uma longa ligação à música e à persona do ex-vocalista dos Smiths.

Se aquilo que, durante muito tempo, pode ter-se assemelhado a uma inclinação política e moral para direcções que a clarividência repudia, no momento presente não será absurdo ver em Morrissey apenas alguém que diz o que necessário for para viver à altura da sua reputação de corajoso bardo anti-consensos. Amar os animais e atribuir aos chineses a categoria de sub-espécie, piscar o olho a Marine Le Pen e ao UKIP, associar levianamente terrorismo e imigração, perverter a razão no que ao conflito israelo-palestiniano diz respeito e encontrar justificação e alibi para comportamentos javardos constituem capítulos de relevo de um compêndio já considerável. E, sendo verdade que haverá sempre quem procure razões para perdoá-lo, há quem anuncie o fim de uma longa ligação à música e à persona do ex-vocalista dos Smiths.

Naturalmente descontados os problemas de saúde e os tratamentos a que se submeteu para travar um cancro, Morrissey cancelou 123 concertos desde 2012. No caso mais recente, porque estava frio no palco onde daria um concerto em Paso Robles, na Califórnia. Ainda não tenho bilhete para o meu sétimo concerto de Morrissey. Infelizmente, não por recear que cancele. Mas por não ter ainda percebido se estou disponível para sofrer.

Pedro Gonçalves é criativo publicitário e crítico de música

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